• Nenhum resultado encontrado

Delimitação da ideia de limite temporal da coisa julgada

1. Notas introdutórias

1.1 Delimitação da ideia de limite temporal da coisa julgada

O estudo da coisa julgada no tempo é um assunto relativamente pouco explorado pela doutrina nacional, considerando alguns autores que se trata, na verdade, de um pseudoproblema.450 Conforme será aprofundado, boa parte da doutrina não identifica significativa distinção entre os chamados limites temporais451 e os limites objetivos da coisa julgada, razão pela qual acaba por não dedicar grande atenção ao seu estudo destacado.

Analisando os autores que trataram da questão, foi possível perceber que não há uniformidade a respeito do que se entende por limites temporais da coisa julgada, obrigando inicialmente a se ajustar o discurso, de maneira a identificar com precisão aquilo que será objeto deste estudo. Foi possível identificar, pelo menos, duas formas de entender a limitação temporal da coisa julgada:452

a) Definição do marco temporal a partir do qual as partes não mais poderiam alegar fatos novos no curso da demanda, fazendo com que fatos supervenientes sejam considerados não integrantes da eficácia preclusiva da coisa julgada. Uma espécie de termo a quo que extromete do alcance da coisa julgada os fatos doravante ocorridos;453

450 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais. São Paulo, n.

416, p. 09-17, 1970, p.15.

451 Há doutrinadores que se referem a limites cronológicos (“limiti cronologici”) ao invés de limites temporais.

MENCHINI, Sergio. Il giudicato civile. 2. ed. Torino: UTET, 2002, p. 233.

452 MONIZ DE ARAGÃO, Egas. Sentença e coisa julgada. Rio de Janeiro: Editora Aide, 1992, p. 198.

TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 88-95. CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: Entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 93-98.

453 Esse é o sentido adotado por Castro Mendes, senão vejamos: “Com isto, pretendem significar que a situação

tornada indiscutível só o é com relação a certo momento – que, em direito português, é o momento do encerramento da discussão em 1.ª instância, ex vi do art. 663 n. 1.” (CASTRO MENDES, João de. Limites

objectivos do caso julgado em processo civil. Lisboa: Ática, 1968, p. 59). Assim também: GUIMARÃES, Luiz

Machado. Preclusão, coisa julgada, efeito preclusivo. Estudos de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro, 1969, p. 26-27.

b) Definição do marco temporal a partir do qual novos fatos não mais serão regidos pela decisão transitada em julgado e, por consequência, não estarão acobertados pela eficácia da coisa julgada. Aqui, um termo ad quem, até quando fatos jurídicos futuros receberão os influxos da res iudicata.

Sob o primeiro enfoque, as atenções estão voltadas para o momento em que as partes não mais poderão alegar e provar fatos no curso do processo, de maneira a definir o marco inicial a partir do qual novos fatos possibilitam o ajuizamento de futura demanda, sem o óbice da coisa julgada. “A chegada a este marco temporal faria com que a disciplina da coisa julgada estivesse atrelada à situação fática até então existente, à conjuntura observável naquele preciso instante.”454

Imagine-se, por exemplo, o pagamento de uma dívida. Caso esse pagamento tenha ocorrido antes de instaurado o processo, ou no seu curso até o julgamento dos recursos ordinários (marco temporal), não poderá a parte, posteriormente ao trânsito em julgado, ajuizar uma demanda a fim de inibir a execução do crédito reconhecido judicialmente, pois os fatos ocorridos anteriormente ao referido marco temporal serão considerados deduzidos e repelidos (art. 474, CPC). Entretanto, caso o pagamento seja realizado após o referido “limite temporal da coisa julgada”, será considerado um fato novo, não integrante do seu limite objetivo, nem alcançado pela sua eficácia preclusiva, apto, portanto, a fundamentar nova demanda capaz de obstar a cobrança da dívida.455

Provavelmente, partindo de tal enfoque, há autores que consideram que ocorre uma limitação temporal da coisa julgada quando, diante de relações jurídicas instantâneas que aconteceram no passado e foram objeto de julgamento, operam-se alterações nos efeitos da decisão. Aponta-se como exemplo “o credor que leva à penhora bem do devedor”, perdendo o “seu direito material expropriatório, mediante o adimplemento da obrigação.”456

Segundo essa

454

CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: Entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 94. No mesmo sentido: MONIZ DE ARAGÃO, Egas. Sentença e coisa julgada. Rio de Janeiro: Editora Aide, 1992, p. 199.

455 TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 88-89.

MENCHINI, Sergio. I limite oggettivi del giudicato civile. Milano: Giuffrè Editore, 1987, p. 303. Esse tema é o principal objeto das atenções de Menchini, trabalhando o autor as mais diversas situações que podem ser consideradas integrantes dos limites objetivos do julgado.

456 PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada civil. 4. ed. rev. atual. e ampl. com notas do Projeto de Lei do Novo

linha de entendimento, a coisa julgada seria temporalmente limitada em razão das corriqueiras mudanças que pode sofrer a relação jurídica objeto do julgamento.457-458

O alvo da presente pesquisa não está em tal forma de entender os limites temporais da coisa julgada. Dedica-se ao segundo enfoque, especialmente porque a preocupação se refere à aptidão de algumas sentenças para regular fatos jurídicos que ocorram após o seu advento, tornando-se necessário identificar qual o marco temporal (se é que existe) a partir do qual se podem separar fatos jurídicos (futuros) que são alcançados pela coisa julgada dos fatos jurídicos que não são por ela atingidos.459

De fato, trata-se de um dos aspectos mais interessantes do estudo da coisa julgada, porquanto se vai tratar de situações peculiares em que a decisão não se limitará à apreciação de um ponto isolado no passado, mas versará, sim, sobre uma relação jurídica que terá desenvolvimentos posteriores, gerando novos fatos que serão por ela regidos. Não à toa, a doutrina moderna geralmente cuida dos limites temporais da coisa julgada quando do estudo da sua formação sobre relações jurídicas continuativas, pois a norma concreta que ficará imunizada regerá não só fatos jurídicos passados, mas também eventos futuros que se sucederão em virtude da continuidade da relação substancial apreciada. Assim, o limite temporal da coisa julgada seria alcançado quando fatos novos, diversos daqueles efetivamente apreciados, tivessem lugar, restringindo no tempo a influência da coisa julgada.460 Seria a identificação, pois, do momento a partir do qual a norma jurídica concreta perderia a aptidão

457

Moniz de Aragão se refere a limites temporais da coisa julgada para tratar do marco temporal em que as partes poderiam alegar fatos novos no curso do processo, ou seja, para precisar quais os fatos que estão abrangidos pela coisa julgada. A partir de então, tais fatos podem ser considerados fatos supervenientes aptos a fazer cessar a eficácia da decisão “seja por não integrarem a res iudicata, seja por consubstanciarem outra res”. (ARAGÃO, Egas Moniz de. Sentença e coisa julgada, p. 200).

458 Analisando o tema sob tal perspectiva, aguda é a crítica de Barbosa Moreira, após expor que a segunda

demanda será objetivamente distinta da primeira, convivendo pacificamente as duas coisas julgadas: “Trata-se, a rigor, de um peseudoproblema: a autoridade da coisa julgada, como tal, não se subordina a limite temporal algum.” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ainda e sempre a coisa julgada. Revista dos Tribunais. São Paulo, n. 416, p. 09-17, 1970, p.15). O autor trata do tema quando se dedica ao estudo da eficácia preclusiva da coisa julgada, investigando “o momento até o qual há de ter sucedido o fato para que fique preclusa a respectiva arguição.” (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A eficácia preclusiva da coisa julgada material no sistema do processo civil brasileiro. Revista dos Tribunais. São Paulo, v.441, p.14-23, p. 107, 1972).

459 “Já no caso das cadeias de vínculo regulativas, porque nelas são produzidas regras concretas de

comportamento, não só o tempo de referência será relevante. De fato, o tempo de eficácia das normas produzidas na cadeia, bem como sua resistência no tempo, também serão importantes fatores para a delimitação temporal do espaço de estabilidade.” (CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: Entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 489).

460 Nesse sentido: TESHEINER, José Maria. A eficácia da sentença e coisa julgada no processo civil, p. 162.

PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada civil. 4. ed. rev. atual. e ampl. com notas do Projeto de Lei do Novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 85.

de reger fatos jurídicos futuros (superação da estabilidade461), seja em decorrência de mutações ocorridas em uma relação jurídica continuativa, seja em razão da heterogeneidade dos fatos futuros de relações jurídicas sucessivas.

O ponto merece especial atenção. Repare-se que tal enfoque que é conferido aos limites temporais da coisa julgada manifesta utilidade quando se está diante de demandas que têm por objeto relações jurídicas de trato continuado, tendo em vista que é nesses casos que se terá a peculiaridade de uma decisão reger eventos futuros, distintos, pois, daqueles apreciados.462 A respeito das relações jurídicas instantâneas, conforme se verá, a investigação dos limites temporais não manifesta maior interesse, justamente porque a decisão daí decorrente apenas regerá aquele preciso fato ocorrido no passado, tornando-se despiciendo investigar “até quando” os efeitos da coisa julgada vão reger fatos futuros.

Outline

Documentos relacionados