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Os limites objetivos da coisa julgada Peculiaridades

3 Relações jurídicas de trato continuado

3.3 Regime jurídico da coisa julgada

3.3.2 Os limites objetivos da coisa julgada Peculiaridades

Ganha relevo a aplicação das noções antes expostas dos limites objetivos da coisa julgada quando se está diante de decisões que versam sobre relações jurídicas de trato continuado, pois, para verificar se tal espécie de decisão será aplicada a fatos jurídicos que surjam após o seu trânsito em julgado, dever-se-á investigar se se podem identificar os contornos objetivos da demanda apreciada nos novos fatos jurídicos ocorridos.

Repare-se que quando estamos tratando de relações jurídicas instantâneas, em regra, a estabilização decorrente da coisa julgada apenas se circunscreve aos fatos jurídicos decididos no processo onde se formou. Assim, a norma jurídica concreta regerá

543 Repare o leitor que não se refere a tempo (enquanto presente as circunstâncias...), mas apenas ao objeto do

julgamento.

544 DE LA OLIVA SANTOS, Andrés. Objeto del proceso y cosa juzgada en el proceso civil. Navarra: Thomson

Civitas, 2005, p. 250.

545 MENCHINI, Sergio. Il giudicato civile, p. 245. FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Ensaios de direito processual.

exclusivamente as relações jurídicas já ocorridas e individualizadas na demanda.546 Seus limites objetivos estão devidamente delimitados e estabilizados a partir da lide apresentada, em especial do seu pedido e da sua causa de pedir. Em regra, não se cogita em aplicar tal norma concreta a diversas relações jurídicas futuras, simplesmente porque a demanda sobre a qual houve o pronunciamento judicial é tão específica que o seu resultado não se subsumirá aos fatos jurídicos ulteriores. Revela-se, a princípio, inútil, em relação a fatos jurídicos futuros. Caso ajuizada nova demanda para tratar desses novos fatos, não se cogitaria do óbice da coisa julgada, tendo em vista que, mesmo que a nova relação jurídica fosse muito parecida com aquela apreciada por decisão judicial transitada em julgado, por se tratar de comando declaratório específico, seria improcedente qualquer tentativa de estender os efeitos do julgado anterior aos novos fatos jurídicos. A causa de pedir seria outra.547

Imagine-se que uma instituição financeira cobra de certa pessoa dívidas decorrentes de vários contratos de abertura de conta corrente. Ajuizada demanda que trata apenas de um dos contratos e obtida sentença declaratória de inexistência de relação jurídica, pois essa pessoa jamais contratou com o banco, poder-se-ia imaginar que tal julgado se aplicaria aos demais contratos? Evidente que não, pois o seu conteúdo declaratório é tão específico que não pode ser estendido a diversas relações jurídicas.

No entanto, quando se cuida de relações de trato continuado tal inutilidade não ocorre. Por mais que se esteja tratando de fatos jurídicos ocorridos após a decisão transitada em julgado, esse decisum irá lançar seus efeitos sobre eles, apesar de não os ter apreciado. Na verdade, efetivamente os fatos não foram investigados (porque nem sequer tinham ocorrido!), mas a situação jurídica das partes foi analisada e normatizada, fazendo com que os fatos novos já nasçam submetidos à sua disciplina.

Esse é o ponto. Os novos fatos serão regidos pela norma anteriormente reconstruída na decisão declaratória, aparecendo a coisa julgada como um bloqueio à rediscussão do conteúdo dessa norma. Trata-se de um interessante diálogo entre a eficácia da

546

PONTES DE MIRANDA. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo V: arts. 444 a 475. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 198. PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa julgada civil. 4. ed. rev. atual. e ampl. com notas do Projeto de Lei do Novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 86.

547 “Estes novos fatos ou direitos constituirão numa nova causa de pedir e a demanda, ipso facto, será diferente.”

sentença e a eficácia da coisa julgada. Enquanto a primeira confere normatividade para o futuro, a segunda impede que se discuta esse regime jurídico em vigor.548

Diante desse cenário, cumpre investigar no que consistirão os limites objetivos da coisa julgada formada, aptos a (im)possibilitar uma futura demanda judicial tratando dos novos fatos ocorridos sucessivamente. Para tanto, concentre-se especialmente no capítulo declaratório do julgado, pois é aqui que se irá encontrar a norma jurídica individual a ser observada no futuro. Necessário assim que se atente para a situação jurídica definida no julgado que passará a reger as relações das partes.

Nessa definição dos contornos da situação jurídica reconhecida pela decisão, conforme já anunciado na primeira parte desse estudo, não se deve atentar apenas para a parte dispositiva da decisão, mas também lançar a atenção para a fundamentação do julgado e, ainda, para o pedido e a causa de pedir formulados pelo autor. Sim, pois os contornos da demanda proposta e a forma como foi apreciada aparecem como importantes elementos delimitadores do alcance do preceito erigido, de maneira a orientar o intérprete do julgado sobre quais os fatos jurídicos futuros que serão regidos pela norma jurídica concreta.

Se é verdade que no sistema processual brasileiro aquilo que consta da fundamentação do julgado não é tocado pela autoridade da coisa julgada, é o próprio art. 469 do CPC que revela a sua importância para definir o alcance da parte dispositiva da decisão. Ademais, em razão do princípio dispositivo (adiante aprofundado), que enseja a adstrição da sentença à postulação veiculada (pedido e causa de pedir), a análise de tais elementos da demanda também não pode ser olvidada quando da especificação dos limites objetivos da coisa julgada. A partir de tais nortes, tem-se o instrumental necessário para estabelecer os contornos do capítulo declaratório do julgado, cuja eficácia se lançará para o futuro.

Pois bem. Para que uma decisão possa gerar efeitos em relação a fatos jurídicos por ela não apreciados, é necessário que o seu conteúdo declaratório tenha por objeto algo que seja comum a todos os fatos jurídicos que se formam posteriormente. Tem de haver, pois, uma homogeneidade quanto aos elementos essenciais que consubstanciaram o objeto da controvérsia e do julgamento, de maneira que a declaração firmada tenha aptidão para reger

548 PORTO, Sérgio Gilberto. Ação rescisória atípica. Instrumento de defesa da ordem jurídica. São Paulo:

todos esses fatos uniformemente. Deve-se identificar uma espécie de núcleo essencial549 que se repetirá nos fatos jurídicos que se sucederem e, portanto, que devam ser regidos pela mesma decisão transitada em julgado.550

Repare-se que as conclusões a respeito de tal núcleo essencial deve ser suficiente, por si só, para proporcionar o resultado da demanda ajuizada. Ou seja, deve haver uma relação direta de causa e consequência entre o núcleo essencial da demanda e a sentença declaratória, de forma que a identificação do núcleo essencial em fatos jurídicos futuros permita a utilização do silogismo e, então, a aplicação da norma jurídica concreta.

Veja-se como o referido núcleo essencial se revela importante para a definição do alcance da norma jurídica individual que regerá as relações entre as partes. Em uma demanda declaratória em que se postula o reconhecimento da isenção tributária na importação de bens de capital, é prolatada sentença de procedência. Nesse caso, a eficácia declaratória do julgado se limita à importação de bens de capital, sendo vedado às partes tentar atribuir seus efeitos a qualquer outro tipo de importação. O núcleo essencial pode ser identificado como “isenção na importação de bens de capital”. Caso, porém, o autor realmente estivesse importando um bem de capital, mas seu pedido se apresentasse um pouco mais amplo, no sentido de que fosse declarada a sua isenção para qualquer tipo de importação, a sentença de procedência logicamente conteria um núcleo essencial também mais amplo (menos denso). Nesse segundo caso, se estaria diante da seguinte delimitação: “isenção na importação”. Com efeito, a depender do alcance do núcleo essencial formado, se poderá identificar quais os fatos jurídicos poderão ser por ele regidos.

Tem-se, assim, uma norma concreta que define a situação jurídica existente entre as partes, valendo como preceito de conduta a ser observado até ali e dali para frente, desde que os novos fatos jurídicos ocorridos guardem homogeneidade com aquele objeto do julgamento.551

549 Identificado a partir da análise da parte dispositiva da decisão, fundamentação do julgado, pedido a causa de

pedir.

550 “Um critério simples, mas excelente para operar este exame na praxis, é procurar elementos permanentes ou,

de outro lado, elementos temporários ou cambiantes no debate estabilizado.” (CABRAL, Antonio do Passo.

Coisa julgada e preclusões dinâmicas: Entre continuidade, mudança e transição de posições processuais

estáveis. Salvador: JusPodivm, 2013, p. 486).

551 Elucidativas as palavras de Teori Zavascki que, por exprimirem de forma cristalina as noções ora trabalhadas,

Tais noções são realmente preciosas no estudo das relações jurídicas tributárias, pois é comum que as pessoas pratiquem repetidamente atos jurídicos que constituem fatos geradores de tributos. Basta pensar no imposto de renda que anualmente deve ser honrado pelos contribuintes. Caso reconhecida a isenção do referido tributo para uma empresa, não faria sentido que tivesse que ajuizar uma demanda todas as vezes que ocorresse o fato gerador tributário. Ganha relevo, aqui, identificar os limites objetivos de tal julgado, a fim de verificar em que medida poderá gerar efeitos sobre fatos geradores ocorridos posteriormente. Tratando- se de fatos jurídicos homogêneos - leia-se, que apresentem o mesmo núcleo essencial - a decisão antes proferida os regerá, aparecendo a coisa julgada como óbice à discussão do seu conteúdo.

que nascem de um suporte fático complexo, formado por um fato gerador instantâneo, inserido numa relação jurídica permanente. Ora, nesses casos, pode ocorrer que a controvérsia decidida pela sentença tenha por origem não o fato gerador instantâneo, mas a situação jurídica de caráter permanente na qual ele se encontra inserido, e que também compõe o suporte desencadeador do fenômeno de incidência. É sabido que tal situação, por seu caráter duradouro, está apta a perdurar no tempo, podendo persistir quando, no futuro, houver a repetição de outros fatos geradores instantâneos, semelhantes ao examinado na sentença. Nestes casos, admite-se a eficácia vinculante da sentença também em relação aos eventos recorrentes. Isso porque o juízo de certeza desenvolvido pela sentença sobre determinada relação jurídica concreta decorreu, na verdade, de juízo de certeza sobre a situação jurídica mais ampla, de caráter duradouro, componente, ainda que mediata, do fenômeno de incidência. (...) No domínio fiscal, esse tema, ainda hoje controvertido, já se fazia presente nos precedentes que deram origem à Súmula 239 do STF. Num deles, o voto de Castro Nunes, depois de asseverar que a coisa julgada 'se terá de limitar aos termos da controvérsia', observou: 'mas se os tribunais estatuíram sobre o imposto em si mesmo, se o declararam indevido, se isentaram o contribuinte, se houveram o tributo por ilegítimo, porque não assente em lei a sua criação ou porque inconstitucional a lei que o criou, em qualquer desses casos o pronunciamento judicial poderá ser rescindido pelo meio próprio, mas enquanto subsistir será um obstáculo à cobrança'. Mais recentemente, o Ministro Rafael Mayer defendeu orientação semelhante: '... se a decisão se coloca no plano da relação de direito. tributário material para dizer inexistente a pretensão fiscal do sujeito ativo, por inexistência de fonte legal da relação jurídica que obrigue o sujeito passivo, então não é possível renovar a cada exercício o lançamento e a cobrança do tributo, pois não há a precedente vinculação substancial. A coisa julgada que daí decorre é inatingível, e novas relações jurídico-tributárias só poderiam advir da mudança dos termos da relação pelo advento de uma norma jurídica nova com as suas novas condicionantes'. Em nosso entender, também nessa matéria tributária a eficácia prospectiva do julgado pode ser sustentada, sem que venha a configurar julgamento sobre a norma em tese ou sentença com efeito normativo, justamente nisso: em ter a sentença lançado juízo de certeza sobre determinada situação jurídica, concreta e presente, mas de caráter duradouro, como a que diz respeito à natureza das atividades ou ao status fiscal do contribuinte, situação esta na qual se inserem os elementos próximos da obrigação tributária e o das semelhantes relações jurídicas tributárias sucessivas. Os exemplos esclarecem o que se afirma: se uma sentença reconhece que determinada empresa tem natureza jornalística e que, por isso, é imune a tributos o periódico por ele publicado, a declaração de certeza, embora solvendo controvérsia que tem por causa próxima uma exigência concreta e atual do Fisco, abrangerá não apenas as publicações já realizadas, senão também as futuras, uma vez que a controvérsia real, enfrentada e resolvida, foi sobre uma situação jurídica de caráter duradouro, o status fiscal do contribuinte. O mesmo ocorre quando a sentença declara, por exemplo, que as atividades de prestação de serviço de determinada empresa estão sujeitas à contribuição social: dispondo ela sobre uma situação jurídica duradoura, relacionada com o status fiscal, sua eficácia será também prospectiva, para além dos estritos limites da prestação mensal”. (ZAVASCKI, Teori Albino. Eficácia das sentenças na jurisdição constitucional. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 81-101).

Perceba-se que, caso uma lei posterior revogue tal isenção, logicamente aquela decisão transitada em julgado não mais regerá os fatos geradores ocorridos sob a égide da nova lei, justamente porque não é mais uma relação jurídica que preserve o referido “núcleo essencial” que foi objeto do julgamento qualificado pela coisa julgada, mas relação diversa, pois regulada pela nova ordem jurídica. Desta forma, como o núcleo essencial é diverso daquele para os quais a decisão foi projetada, seus efeitos não o alcançam, inexistindo, outrossim, o óbice da coisa julgada caso se pretenda conduzi-los à apreciação judicial.

Analisando a relação alimentícia, semelhante situação ocorre. Aqui há uma relação jurídica que se prolonga no tempo, chamada de relação continuativa, que será regulada por uma decisão judicial. Essa decisão irá reger aquela relação jurídica nos termos apresentados (causa de pedir e pedido), demonstrando-se a necessidade do alimentando e a possibilidade do alimentante. Declara-se a situação jurídica das partes e condena-se à prestação alimentícia. Tal julgado também gerará efeitos futuros, regulando aquela relação enquanto presentes as circunstâncias por ele apreciadas. Caso algum desses fatores se altere com o passar do tempo, não mais estará presente o núcleo essencial dos fatos jurídicos inicialmente apreciados, ou seja, há uma espécie de fuga dos limites objetivos da coisa julgada formada, fazendo com que seus efeitos não possam alcançar os desdobramentos futuros dessa relação continuativa.

Uma peculiaridade, nesse caso (alimentos), é que a lei exige uma ação judicial para demonstrar essa nova configuração jurídica, que é a “ação revisional” de alimentos, como forma de proteger o alimentando. Entretanto, como visto, a questão poderia ser resolvida, como sói acontecer, a partir das noções básicas dos limites objetivos da coisa julgada. A exigência de “demanda revisional”552 constitui apenas uma técnica, entre outras possíveis, utilizada pelo legislador para conferir certa segurança àquele que se beneficia de uma decisão que gera efeitos futuros.

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