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Importantes distinções Conteúdo, eficácia e efeitos da decisão judicial

6 Coisa julgada e seu objeto (Coisa julgada sobre o que?)

6.2 Importantes distinções Conteúdo, eficácia e efeitos da decisão judicial

Aprofundar o estudo da coisa julgada, especialmente quando se tem a pretensão de investigar os seus limites temporais, constitui tarefa que tem como pressuposto uma noção bem consolidada de três elementos imputáveis à decisão judicial: seu conteúdo, sua eficácia e seus efeitos. Tornar precisos tais conceitos é simplesmente fundamental para que se possa levar adiante uma teorização séria a respeito da coisa julgada, pois é imprescindível identificar sobre o que incidirá a sua autoridade. Só assim é possível manifestar alguma insurgência contra as reais tentativas de flexibilização da garantia, bem como lidar com tranquilidade com as alterações que podem sofrer aqueles elementos que por ela não são atingidos.

Deve-se lembrar, por relevante e como premissa, a lição de Barbosa Moreira de que toda teorização sobre a coisa julgada deve ter presente que se trata de “instituto de finalidade essencialmente prática: destina-se a conferir estabilidade à tutela jurisdicional dispensada. Para exercer de modo eficaz tal função, ela deve fazer imune a todas as contestações o resultado final do processo.”. Ou seja, importante identificar em que consiste tal resultado final a que se refere, que deverá ficar imune para que se alcance a estabilidade colimada.

É interessante ter em vista que a resposta que se dê a tais questões deve resistir a uma comprovação empírica, sob pena de se tornar inútil. Melhor explicando, não se pode afirmar teoricamente que determinado efeito ou eficácia de sentença se tornará imutável se, na prática, é impossível impedir a sua perpetuação. Perceba-se o ponto com uma indagação: como

se pode afirmar que a eficácia executiva da sentença se torna intangível pela autoridade da coisa julgada se, na prática, podem-se constatar inúmeras situações que a suprimem, a exemplo da prescrição?209

Pois bem, inaugura-se a investigação pelo conteúdo da sentença. Trata-se do elemento interno, integrativo, que faz do ato judicial um ato decisório. Sem o conteúdo, comprometida estaria a própria existência do ato jurídico.210 Seguindo a clássica teoria trinária da tutela jurisdicional, há sentenças de conteúdo declaratório, constitutivo ou condenatório. Assim, quando um juiz proferir uma sentença condenatória, será reconhecido o direito subjetivo a uma prestação postulada em juízo (conteúdo declaratório) e será determinada a entrega do bem (conteúdo condenatório).

É a partir do conteúdo do julgado que se identifica a norma jurídica concreta, reconstruída pela decisão judicial, que será apta a reger a relação jurídica conduzida ao Judiciário. Trata-se de importante etapa do iter da tutela jurisdicional dos direitos que, não obstante, ainda não chegou ao final, carecendo ainda da produção dos seus regulares efeitos na vida das pessoas, de maneira que o ordenamento jurídico seja efetivamente observado.211 Para tanto, o comando judicial deve ser dotado de alguma eficácia.

A eficácia de uma sentença é a sua aptidão para produzir efeitos.212 É da própria natureza da sentença, enquanto ato estatal dotado de autoridade e destinado a regular as situações da vida submetidas ao Poder Judiciário, a existência de uma eficácia intrínseca, que

209

Veremos que foi justamente essa impossibilidade de comprovação empírica que fez ruir em solo nacional e no além-mar a teorização proposta por Enrico Tullio Liebman.

210 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Conteúdo e efeitos da sentença: variações sobre o tema. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v.35, p. 204-212, 1985, p. 204.

211 “Não há mais como aceitar as teorias clássicas sobre a ação, inclusive a teoria de Liebman, já que a ação não

ode mais se limitar ao julgamento do mérito. O direito de ação, além de exigir o julgamento do mérito, requer uma espécie de sentença que, ao reconhecer o direito material, deve permitir, ao lado de modalidades executivas adequadas, a efetividade da tutela jurisdicional, ou seja, a realização concreta da proteção estatal por meio do juiz.” (MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 221).

212 Expressamos aqui qual a ideia de eficácia que adotaremos ao longo da exposição, diante da pluralidade de

sentidos que a doutrina costuma lhe conferir. “Em Direito, o termo eficácia não é unívoco, sendo bastante comum observar que a doutrina emprega a expressão eficácia ora para designar a idoneidade ou a aptidão do ato para produzir seus efeitos típicos, e ora como o conjunto de efeitos típicos realmente produzidos pelo ato. Talvez até como forma de acomodar o dissenso, alguns autores passaram a entender que esses dois aspectos constituem, na verdade, dois sentidos distintos da expressão eficácia: um jurídico, ou normativo, ou abstrato, ou formal e o outro sociológico, ou social, ou concreto, ou real, respectivamente. (MARTINS, Sandro Gilbert. Processo,

lhe possibilitará a projeção dos efeitos desejados.213 Assim, pode haver decisões que, uma vez prolatadas, imediatamente manifestam sua imperatividade por meio de uma eficácia plena ou tenham essa aptidão postergada, geralmente em razão de impugnações veiculadas pelas partes. Nesses casos, apesar de a autoridade do julgado não poder manifestar-se de imediato, tem-se uma sentença plenamente identificada em seu conteúdo, existente, válida, porém sem aptidão para produzir todos os seus efeitos.214

Para que um ato produza os efeitos que lhes são próprios, é necessário que estejam presentes ou ausentes certos fatores (suspensivos, extensivos ou resolutivos), que não se confundem com os seus elementos essenciais ou constitutivos.215 Assim, mesmo diante de um ato jurídico perfeitamente constituído, já integrante, pois, da esfera jurídica de uma pessoa, sua eficácia pode ser deslocada para um momento posterior, estendida para outros sujeitos ou mesmo suprimida posteriormente (deseficacização)216, sem qualquer ingerência nos seus elementos constitutivos. O ato jurídico permanece incólume, apenas a sua aptidão de produzir efeitos é que cessa. Eventual ineficácia não se liga necessariamente a algum defeito do ato praticado. Se é verdade que alguns defeitos podem gerar futura ineficácia, o contrário não se confirma, pois a ineficácia não decorre sempre de um vício no ato ou mesmo o macula de alguma forma.217

Escusas pela reiteração, importante deixar claro que uma decisão judicial pode ter aptidão para produzir efeitos imediatamente, ter postergada a sua eficácia para momento futuro ou mesmo ter essa eficácia suprimida. “De se notar, então, possível existir força sem efeito, ou com a mutilação do efeito por ato da parte, conquanto impossível a hipótese contrária (efeito

213 LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa julgada. Trad.

Alfredo Buzaid e Benvindo Aires, trad. dos textos posteriores à edição de 1945 com notas relativas ao direito brasileiro vigente de Ada Pellegrini Grinover. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 287-288.

214 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, n. 28, p. 15 e ss. jul. 1983, p. 16.

215 MARTINS, Sandro Gilbert. Processo, procedimento e ato processual: o plano da eficácia. Rio de Janeiro:

Elsevier, 2012, p. 91.

216 “O ato jurídico também pode vir a perder toda a eficácia que produziu ou apenas deixar de produzir sua

eficácia, mantidos os efeitos produzidos. Designa-se essa perda como deseficacização e ela pode ocorrer por vontade dos sujeitos envolvidos (rescisão, perdão, renúncia, desistência); por força de império, isto é, de decisão da autoridade competente (anulação, revogação); ou até por força de lei (prescrição, decadência, preclusão)”. (MARTINS, Sandro Gilbert. Processo, procedimento e ato processual: o plano da eficácia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 92).

217 MARTINS, Sandro Gilbert. Processo, procedimento e ato processual: o plano da eficácia. Rio de Janeiro:

sem força). Este ponto, para posterior fixação do objeto da coisa julgada, é de suma importância.”218

Já os efeitos da sentença estão fora do ato, operando-se no mundo sensível. Em clássica lição: “conteúdo e efeito são verdadeiramente entidades inconfundíveis. Aquilo que integra o ato não resulta dele; aquilo que dele resulta não o integra”.219-220

Por exemplo, o efeito de uma sentença declaratória de inexistência de relação jurídica seria o estado de “sujeição das partes, terceiros e Estado sobre aquilo que restou declarado”221

e consequentemente a possibilidade de insurgência contra qualquer ato praticado em sentido contrário. O efeito de uma sentença constitutiva pode ser exemplificado com o próprio contrato anulado e, portanto, com a necessidade de as partes respeitarem aquela nova situação jurídica formada. Por fim, o efeito de uma sentença condenatória seria a expropriação do patrimônio do devedor com a satisfação do direito do credor.

Com belo poder de síntese, Lucon explica didaticamente:222

O conteúdo de uma sentença não se confunde com seus efeitos, que são as alterações por ela provocadas sobre as relações jurídicas existentes no mundo exterior, fora do processo. (...) Por outro lado, os efeitos não são, como se percebe, um atributo das sentenças, mas são as modificações provocadas no mundo dos fatos. (...) A eficácia é a aptidão, “virtude ou poder de (uma causa) produzir determinado efeito” – por isso, constitui a qualidade do ato gerador de efeitos. Já o efeito representa algo atual, demonstrando in concreto o comando emergente do ato jurisdicional.

218 MITIDIERO, Daniel. Coisa julgada, limites objetivos e eficácia preclusiva. Introdução ao Estudo do

Processo Civil – primeiras linhas de um paradigma emergente. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004, p. 185.

219 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Conteúdo e efeitos da sentença: variações sobre o tema. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, v.35, p. 204-212, 1985, p. 206.

220

Pontes de Miranda trata de eficácia como gênero, do qual são espécies a força e o efeito. (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo V: arts. 444 a 475. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 97). Para bem compreender o tema, interessante a conclusão de Daniel Mitidiero: “À guisa de assentar nosso posicionamento sobre o tema, admitimos trabalhar com os conceitos de eficácia, força e efeitos, propostos por Pontes de Miranda, aceitos igualmente por Araken de Assis. Destarte, eficácia é a conjugação das energias constantes do julgado, com os efeitos que, de regra, dimanam destas forças. Internamente, cogita-se força (conceito correlato ao de conteúdo para Barbosa Moreira e eficácia para Ovídio, como dantes esposado); externamente, efeito, sendo o resultado desta soma a eficácia.” (MITIDIERO, Daniel.

Coisa julgada, limites objetivos e eficácia preclusiva. Introdução ao Estudo do Processo Civil – primeiras linhas

de um paradigma emergente. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004, p. 187). Se é bem verdade que o termo eficácia é frequentemente utilizado para designar tanto a aptidão para produção de efeitos, quanto os efeitos do ato (daí a observação do Professor Mitidiero), pensamos de suma relevância distinguir o conteúdo do ato da sua aptidão para produzir efeitos (eficácia).

221

SÁ, Renato Montans de. Eficácia preclusiva da coisa julgada. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 131. No mesmo sentido: MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A coisa julgada. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 09.

222 LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Coisa julgada, conteúdo e efeitos da sentença, sentença inconstitucional

e embargos à execução contra a Fazenda Pública. Revista de Processo, São Paulo, n.141, p. 20-52, nov. 2006, p. 27.

Ovídio Baptista oferece interessante metáfora que auxilia na compreensão dos conceitos expostos: “Evidentemente não se pode confundir a virtude curativa com o efeito produzido pelo medicamento sobre o organismo do enfermo. A eficácia ainda não é o efeito do medicamento”.223

Diante de tais noções, fica claro que a coisa julgada não se confunde com o conteúdo, efeito ou eficácia das decisões judiciais, mas, sim, qualificará a decisão dotada da sua autoridade. A distinção dos três elementos se fez necessária para que se possa investigar quais deles serão alcançados por tal indiscutibilidade. Essa identificação é simplesmente fundamental para teorizar de forma consistente a respeito desse relevante instituto jurídico.

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