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Coisa julgada e a parte dispositiva da decisão

6 Coisa julgada e seu objeto (Coisa julgada sobre o que?)

6.7 Limites objetivos da coisa julgada

6.7.2 Coisa julgada e a parte dispositiva da decisão

O pronunciamento judicial sobre o mérito da demanda, perscrutado dentro da estrutura de uma decisão judicial, poderá ser identificado com certa facilidade. Segundo previsto no art. 458 do CPC, a sentença será composta por três elementos essenciais: o relatório, onde serão expostos os fundamentos do pedido e da defesa, bem como os principais acontecimentos do processo; a fundamentação, na qual serão enfrentadas pelo juiz todas as questões fáticas e jurídicas controvertidas do feito; o dispositivo, que é onde o juiz expõe sua decisão a respeito do objeto litigioso da demanda.

Diante dessa arquitetura da decisão judicial, fica clara a opção legislativa em concentrar na parte dispositiva da decisão a resolução sobre as questões principais submetidas à apreciação judicial que, por consequência, poderá tornar-se indiscutível pela autoridade da coisa julgada.

374 É de se advertir que, no sistema processual brasileiro há situações previstas em lei que têm aptidão de conferir

certa ampliação ao pedido inicialmente formulado, a exemplo da inclusão no pedido das prestações periódicas (art. 290 do CPC), dos pedidos implícitos (honorários advocatícios, juros e correção monetária), da reconvenção e da intervenção de terceiros.

375 Essa observação faz todo sentido em um sistema, como o brasileiro, que se filia à teoria da substanciação da

causa de pedir, segundo a qual não basta a exposição pura e simples da relação jurídica da qual decorre o pedido formulado, mas se faz necessário o amplo delineamento dos fatos jurídicos que dão corpo à relação alegada.

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MITIDIERO, Daniel e OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. MITIDIERO, Daniel e OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. Curso de processo civil: processo de conhecimento. V. 2. São Paulo: Atlas, 2012, p. 283. De forma semelhante: “Risulta cosi evidente lo stretto collegamento intercorrente tra oggeto della domanda, del processo e della decisione.” (MENCHINI, Sergio. I limite oggettivi del giudicato civile. Milano, Giuffrè Editore, 1987, p. 10).

Não se olvide, porém, que também pode haver decisões proferidas na fundamentação do julgado, que dizem respeito ao enfrentamento pelo magistrado de todos os argumentos fáticos e jurídicos expostos pelas partes, bem como das questões prejudiciais que precisam ser definidas como etapa necessária ao julgamento sobre o objeto litigioso do processo. Sobre tais pontos, o art. 469 do CPC foi preciso, ao expor que não adquirem a autoridade da coisa julgada: “I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.” 377

. Assim, por mais relevantes que sejam as conclusões alcançadas pelo magistrado na sua fundamentação, algumas delas até mesmo com aptidão de consubstanciarem objeto litigioso autônomo de outras demandas judiciais, não gozarão da incontestabilidade.

O presente dispositivo revela importância histórica378, pois fulminou ideias anteriormente baseadas no art. 287 do CPC de 1939, no sentido de que as questões prejudiciais decididas pelo juiz também alcançavam a indiscutibilidade da coisa julgada.379

Chega-se, portanto, a uma importante conclusão, pois, com a dicção do art. 469 do CPC, informando as partes da sentença que não se tornarão imunes pela coisa julgada, acaba por precisar que tal indiscutibilidade recairá apenas sobre o dispositivo da decisão, capítulo do julgado no qual é decidido o pedido declinado em juízo e donde emana a norma jurídica concreta definida pelo magistrado. Está-se, pois, diante da identificação no corpo do ato judicial dos limites objetivos da coisa julgada. Nas palavras de Liebman: “è il solo comando

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Segundo Paulo Lucon, citando Taruffo (La motivazione della sentenza civile, n. 5, ed. esp. p. 450), expondo os componentes do conteúdo da decisão judicial: A motivação abrange (i) a interpretação das normas aplicadas; (ii) o reconhecimento dos fatos; (iii) a qualificação jurídica da fattispecie e (iv) a declaração das consequências jurídicas derivante das decisão.” (LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Coisa julgada, conteúdo e efeitos da sentença, sentença inconstitucional e embargos à execução contra a Fazenda Pública. Revista de Processo, São Paulo, n.141, p. 20-52, nov. 2006, p. 21).

378 Deve-se muito aos estudos de Chiovenda a superação da visão escolástica, que conferia grande relevância à

construção lógica do ato sentencial, ao ponto de se entender que era necessário também atribuir a autoridade da coisa julgada aos fundamentos do julgado. Segundo o Autor, tais ideias defendidas por Savigny estavam intimamente ligadas à noção prevalecente à época de que a coisa julgada correspondia a uma “ficção da verdade” e, como consequência, tornava verdadeiro tudo aquilo que fosse tomado como tal pelo magistrado no corpo da decisão. (CHIOVENDA, Giuseppe. Sulla cosa giudicata. Saggi di Diritto Processuale Civile. V. 2. Roma: Società Editrice, 1931, p. 405).

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Sobre o tema: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais e coisa julgada. Rio de Janeiro: Borsoi, 1967, p. 96-117. MESQUITA, José Ignácio Botelho de. A autoridade da coisa julgada e a imutabilidade

da motivação da sentença. São Paulo: Escolas Profissionais Salesianas, 1963. Historicamente, pioneira na

sistematização do assunto foi a obra de SAVIGNY: Sistema del Derecho Romano Actual. Trad. Jacinto Mesia y Manuel Poley. Madrid: Centro Editorial de Gongora, 1839.

concreto pronunciato dal giudice che diviene immutabili, non già l’attività lógica compiuta dal giudice per preparare e giustificare la pronuncia.”380

É bem verdade que a opção legislativa de não estender a indiscutibilidade da coisa julgada às questões prejudiciais resolvidas pelo magistrado geram algumas situações bem delicadas. Por exemplo, caso o juiz considere um contrato nulo e, por consequência, julgue improcedente uma demanda que verse sobre alguma prestação decorrente desse negócio jurídico, nada impede que diversa prestação desse mesmo negócio seja postulada em nova demanda e, não obstante o juízo sobre a nulidade já realizado, estará o juiz do segundo processo livre para reconhecer a validade do contrato e julgar procedente o pedido. Ainda podemos citar uma situação mais grave consistente no reconhecimento da paternidade como questão prejudicial em uma ação de alimentos e, apesar de reconhecida a qualidade de pai, a possibilidade de se discutir, novamente, a decisão em demanda específica de investigação de paternidade.381

Não obstante os citados inconvenientes, não se pode negar que a opção legislativa brasileira visa a preservar ao máximo o princípio dispositivo, representado aqui pelo respeito à delimitação da lide apresentada pelo autor em juízo e à disponibilidade do que deverá ser julgado com força de coisa julgada pelo Poder Judiciário. Se o réu não reconveio para ampliar o objeto litigioso do processo e o autor não requereu expressamente, por meio da ação declaratória incidental, a promoção da questão prejudicial à condição de questão principal, violado estaria o princípio da inércia da jurisdição com a formação da coisa julgada no particular.382-383

Por fim, merece ser aberto um parêntese para uma observação relevante. Os operadores do direito costumam se fixar na ideia de que só o dispositivo da decisão é alcançado pela autoridade da coisa julgada para, muitas vezes, ignorar a motivação do julgado ao expor a que conclusão chegou o juiz no caso concreto. Essa, entretanto, constitui

380 LIEBMAN, Enrico Tullio. Efficacia ed Autorità della Sentenza. Milão: Giuffrè, 1962, p. 41. Tais ideias já

eram perfilhadas por Chiovenda: CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. 2. ed. Trad. J. Guimarães Menegale. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1965, p. 375.

381 Vale registrar que o anteprojeto do CPC que tramita atualmente no Congresso Nacional, diante dos

inconvenientes de haver várias decisões sobre o mesmo tema, estende a coisa julgada a tais decisões.

382

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Questões prejudiciais e coisa julgada. Rio de Janeiro: Borsoi, 1967, p. 96.

383 Em profundo estudo, Antônio do Passo Cabral propõe uma nova visão sobre o tema, perfilhando a extensão

da autoridade da coisa julgada às questões prejudiciais. (CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e

preclusões dinâmicas: Entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. Salvador:

concepção inadequada, pois, não obstante a motivação do julgado não conste da parte do decisum sobre a qual recairá a autoridade da coisa julgada, trata-se de substrato fundamental para compreender os exatos limites da sua parte dispositiva. “O objetivo da força de coisa julgada induz-se não somente por regra geral do julgamento, senão que com a ajuda dos fundamentos da sentença.”.384

“A fundamentação permite a aferição do raio de alcance da parte dispositiva da sentença”.385

Aliás, é o próprio CPC, no art. 469, I, que nos informa expressamente que os motivos não farão coisa julgada, “ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença”. “Quer dizer que os motivos da sentença não constituem objeto da coisa julgada, mas devem ser tomados em consideração para se entender o verdadeiro e completo alcance da decisão”.386

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