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Capítulo I Língua materna, língua segunda e língua estrangeira: da definição

1.2. Aquisição e aprendizagem

O contraste a estabelecer entre os conceitos de aquisição e aprendizagem poderá fazer-se remetendo para as noções de LE e L2, abordadas no capítulo anterior. Deste modo, a aprendizagem estaria mais próxima da LE pois requer um estudo consciente das regras gramaticais, em virtude de um processo que está pensado para que, após o ultrapassar de algumas etapas, permita um domínio mais ou menos proficiente da língua não materna (LNM) em estudo; por outro lado, a aquisição associar-se-á mais facilmente ao conceito de L2 pois aponta para um conhecimento não orientado da língua, graças a um contacto diário a que está sujeito, já que o falante contará com uma participação não diferida nos diversos actos comunicativos dessa mesma língua. É neste sentido que aponta o Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (QECRL), distinguindo a formulação inconsciente das regras gramaticais que decorre da aquisição, do seu estudo específico em ambiente controlado que representará a aprendizagem; assim, e de acordo com o QECRL (2001: 195,196),

“‘aquisição da língua’ [associa-se] ao conhecimento não orientado e à capacidade de utilização de uma língua não materna, resultantes quer da exposição directa ao texto quer da participação directa em acontecimentos comunicativos § [, enquanto que] ‘Aprendizagem da língua’ [será o] processo pelo qual é obtida uma capacidade linguística como resultado de um processo planeado, especialmente pelo estudo formal, num ambiente institucional.”

Ainda assim, não raras vezes podemos encontrar a utilização destes dois termos de forma indistinta, como se de sinónimos se tratassem, talvez em função do entendimento que Vygotsky (1979) defendeu, associando a aquisição à língua materna e a aprendizagem a qualquer língua estrangeira que, cumulativamente, alguém acrescentasse às suas competências. Em alguns momentos, extrapolou-se da teoria de Vygotsky da aquisição da LM para a aquisição de uma outra língua, fazendo até depender o sucesso da aprendizagem de uma outra língua da forma como tinha sido adquirida a LM e da competência e domínio que dela se demonstrasse. Vygotsky defendia ainda, contribuindo assim decisivamente para a indissociação dos conceitos que aqui tentamos delimitar, a necessidade da existência da aprendizagem de uma língua adquirida, isto porque os frutos de um processo efectivamente mais consciente serão substancialmente mais efectivos do que aqueles que advêm de

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processos um pouco mais inconscientes. Poderá, eventualmente, ser essa a razão pela qual a psicolinguística aponta para uma correlação de resultados entre a aquisição da LM e a aprendizagem de uma LNM, como o próprio Vigotsky (1979: 105) apontara já em estudos anteriores, baseados na teoria da associação, complementaridade essa também indicada por Batoréo (2005).

No mesmo sentido, isto é, apontando para a necessidade de interacção entre aquisição e aprendizagem, encontramos a proposta advogada por Sim-Sim (2002), quem após a definição de aquisição e aprendizagem, os considera conceitos diametralmente opostos porquanto um, a aquisição, é entendido como a apropriação subconsciente, em virtude da exposição directa ao código linguístico não pressupondo, portanto, a existência de um mecanismo formal de ensino e que é, em grande medida, universal, como se pode comprovar pela sequência por que passam todas as crianças, desde o nascimento “até à mestria linguística de um falante adulto, por alturas das puberdade” (Sim-Sim, 1989) e outro, a aprendizagem, é entendida como um conhecimento consciente, em função da existência de um ensino formal da língua. Ainda de acordo com o entendimento formal da autora, os resultados alcançados são necessariamente diferentes, na medida em que também os processos o foram. Assim, a aquisição favorecerá o aparecimento de resultados mais automáticos e de falantes com uma maior fluência face ao processo associado à aprendizagem, cujos resultados se centram maioritariamente em maiores índices de consciencialização de língua e de apropriação, seja lexical ou sintáctica; é face a estes resultados que Sim-Sim (2002) defende uma interacção entre ambos os processos, sendo essa interacção operada pela escola, cujo papel será o de uniformizar os diferentes domínios e as diferentes variantes, fruto de processos de aquisição necessariamente diversos. Nesse caso, há que sublinhar que potenciais dificuldades de adaptação serão mais frequentes quão maiores forem as diferenças entre a casa e a escola posto que esta estará mais vocacionada para a criação de estruturas e capacidades metalinguísticas, ao levar o aluno a reflectir sobre o conhecimento implícito que este possui sobre a língua, moldando-o até à existência de indícios da sua adequação a situações novas e, por isso, diferentes das zonas de conforto linguístico onde o aluno inicialmente se incluía.

Cabe aqui ainda sublinhar o facto de que, nesta circunstância específica, a autora apontava este caminho, de síntese entre aquisição e aprendizagem, como uma opção válida para a LM; contudo, não será descabido mobilizar esta modelo quer para a LNM, quer para a L2, posto que ambas poderão recolher benefícios de ambos os caminhos, contribuindo cada um deles com inegáveis mais-valias para o aperfeiçoamento linguístico dos falantes, na medida em que se complementam de um modo irrepreensível pois cada um concorre para a criação e posterior evolução de competências linguísticas que, podemos dizer, não são disponibilizadas pelo outro. Podemos, deste modo, concluir que no entendimento de Vygotsky (1979), Bialystok (1981), Krashen (1981) e Littlewood (1984) aquisição e aprendizagem representam esses dois processos de desenvolvimento de aptidões linguísticas, considerando a

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aquisição como uma imersão e, por isso mesmo, portadora de um cariz subconsciente em virtude de que, quando ocorre, não existe uma percepção dessa mesma aquisição, isto porque o foco de atenção está colocado apenas e só na mensagem que é transmitida. É essa a razão pela que o falante não possui qualquer tipo de conhecimento metalinguístico, facto que se inverte quando se perspectiva a aprendizagem, pois este é um processo consciente de apropriação de conteúdos linguísticos, fruto de um “conhecimento explícito” Bialystok (1981) de regras e conteúdos lexicais e semânticos, mobilizados especificamente para a aprendizagem da língua e, por isso mesmo, levados a cabo num ambiente controlado, representando um contacto diferido com a língua alvo, posto que

The general form in which information is represented allows us to know things intuitively without being aware of the formal properties of that knowledge. For example, we know a great deal about language that defies mental examination, but the knowledge is demonstrated by our ability to produce correct, coherent utterances. (ibidem: 34)

Krashen (1981) centra-se um pouco mais sobre a questão da aprendizagem, fazendo depender os resultados do empenho demonstrado pelo falante na medida em que os enunciados produzidos são o fruto de uma assimilação – ou não – consciente de léxico, regras e contextos semânticos especificamente provocados. Este facto acaba por ser aprofundado pelo autor, que defende uma maior aproximação da aprendizagem à aquisição, na medida em que como o ensino está desligado de situações reais de comunicação, os conteúdos aprendidos são substancialmente mais limitados por se encontrarem fora do arco comunicacional. Do entender do autor, a aquisição permite ao falante ganhar em fluência e competência comunicativa, enquanto que a aprendizagem poderia desempenhar o papel de “monitor” (Krashen, 1978: 1) ou editor por representar o conhecimento consciente das regras, permitindo a execução de correcções prévias ou posteriores à produção de enunciados.

A assunção da existência de um monitor faz com que se desconsidere a aprendizagem consciente aquando da produção de enunciados em L2 na medida em que apenas serão aplicadas as regras aprendidas caso se reúnam três condições, como defende Araújo (1998), sendo elas as de tempo, focalização na forma e conhecimento da regra. Assume-se, assim, que por forma a ultrapassar potenciais debilidades derivadas da aquisição, estes três elementos possam contribuir para uma melhoria substancial da qualidade do enunciado produzido, isto porque para uma aplicação eficaz e eficiente do monitor seria essencial a existência de tempo que permitisse pensar, organizar, reorganizar e aplicar as regras necessárias; seria ainda essencial que o utilizador colocasse a ênfase na perfeição da forma em virtude da focalização no como a comunicação está a ser feita, elemento fulcral no estabelecimento da comunicação; finalmente o conhecimento da regra parece ser o que mais dificilmente poderá ser alcançado posto que a aprendizagem de uma língua evocará apenas uma pequena fracção do total do acervo gramatical que esse mesma língua possua, e mesmo essa porção poderá não ser total e integralmente assimilada pelo aprendente.

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Visão um pouco diferente daquela que nos é apresentada pelos autores antes citados é a de Klein (1986) que delas diverge no sentido em que pressupõe a existência de dois modelos, complementares, dependentes directamente da aquisição; assim, a aquisição que se produza de forma natural, fruto de interacções sociais será não-guiada, enquanto que a existência de um processo marcadamente controlado e avaliado será uma aquisição guiada, cujo prolongamento acaba por ser a aprendizagem. Esta dicotomia é, ainda, associada pelo autor à diferença entre LE e L2, porquanto a primeira é “aprendida fora do seu meio de uso habitual [e a segunda] adquirida, em geral, no meio em que é falada” (Klein, 1986: 33). Contudo, a grande maioria dos autores, entre os quais destacamos Mclaughlin (1987), Ellis (1994) e Py (1994) defende que a oposição entre aprendizagem e aquisição se centra na explicitação – ou não – das regras gramaticais que funcionam como a matriz de uma língua. Assim, a aprendizagem poderá considerar-se como uma abordagem mais formal e consciente de uma língua e para a qual concorrem enunciados que, regra geral, são veiculados em língua materna e apenas posteriormente transpostos para a língua-alvo. Por outro lado, a aquisição dever-se-á a contactos directos, fruto de situações comunicacionais reais, com a língua-alvo e que implicam uma evolução informal, não diferida e espontânea de competências linguísticas, para além de que deste desenvolvimento não decorre qualquer tipo de esforço de memorização consciente, posto que todo o processo comunicativo se produz já fora do âmbito da língua materna.

Ellis (1994), apesar de definir os campos de actuação dos conceitos de aquisição e aprendizagem de forma bastante próxima dos autores anteriormente citados, associando o primeiro ao conhecimento implícito e o segundo ao conhecimento explícito, acaba por sublinhar o carácter mais relevante da aprendizagem pois esta contribui de forma decisiva para uma maior consciencialização linguística, algo que concorre de forma inegável para uma mais fácil e inequívoca assimilação de léxico, estruturas e, por consequência, da fluência necessária a uma utilização irrepreensível da língua. Parece-nos, contudo, redutor, definir como vector principal de uma correcto uso da língua a sua aprendizagem, na medida em que lhe faltará, em grande medida, a aplicação prática do falante em contexto real. Afigura-se- nos como essencial que, embora o nível de consciencialização seja avultado, o falante coloque em prática os seus conhecimentos fora do ambiente controlado e artificial de uma sala de aula.

Esta pequena dúvida acaba por ser trabalhada por Py (1994), que associa a aprendizagem à exposição do falante a situações de aprendizagem provocadas, fruto de influências externas; contudo, poderão ainda considerar-se outro tipo de aprendizagens dentro de uma sala de aula na medida em que dentro desse laboratório linguístico existem momentos de aquisição sem aprendizagem dado que também é possível encontrar diversos conteúdos que são adquiridos sem que tenha sido veiculado o seu ensino. Com alguma frequência o aluno poderá adquirir conhecimentos de forma quase automática e sem que se denote e existência e de um processo formal de ensino. Por outro lado, o autor define

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aquisição como a exposição natural do falante à língua-alvo, factor que pode contribuir para a melhoria das suas competências; ora, a modulação que aqui é feita encontra-se directamente associada à qualidade e à situação de comunicação que rodeia o falante, na medida em que a aquisição far-se-á de forma distinta, dependendo desse mesmo contexto.

Oxford (1990) também defende a continuidade entre os conceitos de aquisição e aprendizagem na medida em que ambos são essenciais para o aperfeiçoamento das competências de língua pois dão a conhecer de forma holística o sistema e a matriz linguística presentes em cada um dos processos. Assim, cada um deles contribuirá para uma verdadeira proficiência linguística, algo apenas possível através da soma das vantagens inerentes a cada um dos modelos antes mencionados. Deve ainda ressalvar-se que para alguns autores, como o

sejam McLaughlin (2006) não existem grandes diferenças entre aquisição e aprendizagem, na

medida em que o elemento diferenciador entre ambos acaba por ser o contexto onde cada um se evidencia, a aquisição desenrolar-se-á ao abrigo de um contexto mais natural e em ambiente não controlado, enquanto que a aprendizagem acaba por estar mais centrada no contexto escolar, fechada exclusivamente no espaço-aula a que está confinada. Nesse sentido, aquisição e aprendizagem são duas faces de uma mesma moeda, cujas diferenças se centram no cariz mais natural – e por isso mesmo mais implícito e intuitivo – da aquisição, por contraste com a necessidade da realização de algum tipo de esforço por parte do falante, em virtude da existência de um ensino formal que lhe confere uma natureza substancialmente mais reflexiva e, decorrente dessa reflexividade, ao conhecimento linguístico que advém da aprendizagem poder-se-á atribuir-lhe uma vocação de maior explicitação e, por isso mesmo, de maior consistência.

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Capítulo II - Modelos explicativos do