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Capítulo III A escrita: da planificação à revisão

3.5. Escrita desenvolvida e escrita em desenvolvimento

Decorrente das críticas já antes enunciadas a diferentes métodos, pela notória falta de preocupação para com os escreventes principiantes, começou a desenvolver-se a preocupação com o que acontece com este tipo de escreventes, que demonstram mais dificuldades e, por outro lado, assente num modelo de análise alternativo, o modo como devem ser encaradas as metodologias e técnicas utilizadas por alguém com uma proficiência escrita bem mais desenvolvida. Nesse sentido, Bereiter & Scardamalia (1987: 8-12) adoptaram os termos knowledge telling e knowledge transforming para responder às diferentes necessidades apresentadas por cada um dos grupos antes referidos. Pretendeu-se, assim, distinguir um escrevente que, pela sua falta de domínio da paleta de técnicas de escrita, se centra de imediato na escrita dos que, fruto da sua experiência mais vasta e técnicas mais

17 Referimo-nos aqui à terminologia adoptada por Bereiter & Scardamalia (1987). 18 Referimo-nos aqui à terminologia adoptada por Bereiter & Scardamalia (1987).

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apuradas, conseguem preparar-se e preparar o seu texto em função de objectivos que vão desenhando em momento prévio ao da escrita.

A nomenclatura utilizada por Bereiter & Scardamalia foi vertida para português como

modelo de explicitação de conhecimento (Carvalho, 1999: 77) visto abarcar, de modo quase

exclusivo, as estruturas cognitivas já existentes evitando, ao máximo, a introdução de tudo o que possa afigurar-se como a origem de novos problemas para a tarefa a realizar; escrever resumir-se-á, assim, “à expressão de todo o que o sujeito sabe sobre um determinado assunto, fluir automático e linear da memória” (ibidem: 87), sendo este tipo de escrita também conhecido como escrita em desenvolvimento.

Figura 2 - Modelo de explicitação de conhecimento Scardamailia & Bereiter (1987: 8)

Representation of

Assignment

Knowledge

Telling Process

C

O

N

T

E

N

T

K

N

O

W

L

D

G

E

D

I

S

C

O

U

R

S

E

K

N

O

W

L

D

G

E

Construct memory

probes for topic and

genre

Retrieve content and

genre information

update mental

representation of

text

write notes

draft

appropriate

FAIL

PASS

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O segundo método recebe o nome de modelo de transformação do conhecimento (ibidem: 77) na medida em que escrever é considerado um processo que visa a interacção contínua e permanente entre o conhecimento e o processo de escrita, contribuindo para o incremento de ambos, mediante a constante resolução de problemas e o reprocessamento do conhecimento ou, como defende Carvalho, “o conteúdo resulta de um processo de resolução de problemas em que se assiste à interacção entre dois espaços: o do conteúdo (…) e o retórico.” (ibidem: 77), associando-se, assim, a uma escrita desenvolvida.

Figura 3 - Modelo de transformação do conhecimento Scardamailia & Bereiter (1987: 12)

Vejamos, então, de que forma se distinguem, entre si, ambos os métodos; para tal apresentaremos as diferentes vertentes de cada um em função dos três momentos de produção textual, preconizados por Flower & Hayes e já antes estudados com detalhe.

Representation of

Assignment

Problem analysis

and goal setting

Content

knowledge

knowledge Discourse

Content

problem

space

Rethorical

problem

space

Knowledge telling

process

Problem translation

Problem translation

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Planificação

No que concerne à planificação existem óbvias diferenças entre ambos os processos, especialmente em virtude do carácter abstracto inerente a esta primeira etapa, de activação, de um texto escrito. Ao ser uma abstracção, esta é levada a cabo apenas num plano mental pelo que requer algum treino para que dela possam colher-se frutos. Efectivamente, para que o nível de abstracção de um escrevente possa ser útil à realização de uma planificação adequada, exige-se alguma automatização que, nitidamente, apenas poderá ser alcançada se os níveis iniciais de conhecimento e consequente aplicação, ao nível da redacção, estiverem já cimentados. Como esta domina todo o processo de escrita de um escrevente em desenvolvimento não permite, neste período inicial, a abertura a outras fases do processo de escrita em virtude do risco de bloqueio, dado que, potencialmente, poderá desviar do foco de atenção do elemento nuclear do texto, a redacção em si mesma. As dificuldades de um escrevente cujo progresso em termos de escrita se enquadre no da explicitação do conhecimento são ainda explicadas, ao nível da planificação, pela diversidade de aspectos que estão em jogo, como sejam o da definição das estruturas associadas ao género do texto, da geração e posterior organização de conteúdo e da adaptação do texto a um leitor.

Contudo, aquela que parece ser a maior diferença entre uma escrita desenvolvida e uma escrita em desenvolvimento prende-se com a criação de conteúdo, seja ele fruto de conhecimento directo que demonstram uns e outros, seja pelas estratégias de procura e selecção de conteúdos. Um escrevente em desenvolvimento recorre apenas a pistas e indícios sobre o tema em questão, enquanto que, por contraste, um escrevente maduro centra a selecção de conteúdo não apenas em função dos seus conhecimentos como também em função dos objectivos implícitos ao texto que produz, o que leva, necessariamente, a que nem todos os conteúdos sejam integrados num texto e que um escrevente em desenvolvimento gere bastante menos conteúdo do que o exigido. Um texto é, caso o seu autor demonstre já apropriação das técnicas de escrita, escrito em torno de um objectivo e para um leitor/audiência bem marcado; porém, o único objectivo capaz de criar ímpeto na escrita a um escrevente em desenvolvimento é o assunto, excluindo-se da equação qualquer outro elemento, desenvolvendo-o não de um modo estruturado e holístico mas sim planificando localmente apenas para resolver problemas com um elevado grau de imediatismo, sendo a tomada de notas um claro exemplo disso mesmo visto a sua existência excluir, quase integralmente, a planificação que fazem os escreventes mais experimentados.

Redacção

Em termos dos três elementos que compõem o processo de escrita, este é o que, indubitavelmente domina toda a sequência, absorvendo todos os recursos de um escrevente menos experiente e, portanto, em desenvolvimento. Esta preocupação decorre directamente do facto de ser este o elemento nuclear para a criação de um texto visto que dele depende a existência do próprio texto.

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Contudo, existem outros elementos que, para um escrevente em desenvolvimento, lhe podem colocar alguns entraves a uma prossecução efectiva da sua tarefa, dada a quantidade de informação e componentes que devem, obrigatoriamente, entrar na órbita de uma produção de texto, muitos deles até de forma simultânea. A esse nível podemos referir- nos à preocupação, sempre latente, com a coesão do texto e que, como defendem Bereiter & Scardamalia (1987) decorre da linearização que a redacção propõe, visto que

El proceso de redactar se encarga de transformar este proyecto de texto, que hasta ahora era solo un esquema semántico, una representación jerárquica de ideas y objetivos, en un discurso verbal lineal e inteligible, que respete las reglas del sistema de la lengua, las propiedades del texto y las convenciones socio-culturales establecidas. Se trata de un trabajo muy complejo ya que debe atender varias demandas al unísono (los propósitos y el contenido del texto, las restricciones gramaticales, las exigencias del tipo de texto, la ejecución manual, mecánica o informática de la letra, etc.) (Cassany, 2005: 206)

A coesão parece ser, de facto, o elemento diferenciador entre um escrevente em desenvolvimento e um escrevente maduro, possuidor de uma escrita desenvolvida, na medida em que requer que a realização dessa tarefa passe “pela capacidade de detectar, num plano mental, elementos comuns a duas ou mais posições e pela posse de mecanismos linguísticos que tornem possível a sua expressão de forma linear.” (Carvalho, 2001: 76)

Em termos de acréscimo de dificuldade cabe ainda sublinhar que se a planificação pode ser levada a cabo no âmbito de um modelo cooperativo, a redacção, por possuir um carácter mais pessoal, é uma tarefa com um cariz mais individual, correndo o escrevente substancialmente mais riscos do que na actividade prévia em virtude das exigências semânticas e linguísticas decorrentes desta fase do processo.

Revisão

A revisão representa também um elemento diferenciador entre aquilo que é expectável num escrevente que domine já as técnicas e ferramentas da escrita e outro que esteja ainda a iniciar-se nos seus trilhos. Desta forma, a revisão feita por estes é mais concreta e pontual, quase exclusivamente ao nível da ortografia, uma vez que os escreventes não possuem, ainda, a necessária capacidade de abstracção do texto real pois eles “focused their revisions on surface and stylistic concerns” (Yagelski, 1995: 223). Rever, num escritor maduro, implica o contraste entre o texto real e a representação mental que o seu autor tem do mesmo; as dificuldades decorrem, portanto, da súmula das suas representações pelo que, amiúde, um escrevente em desenvolvimento acaba por abdicar desta etapa do processo de escrita pois toda a ênfase recai, unicamente, na produção efectiva do texto na medida em que, e de acordo com Flower & Hayes (1987), as actividades que um escrevente competente deve cumprir passam por uma “conceptual integration and elaboration of the cognitive process involved in revision in a process model (…) organized around the central subprocesses” (ibidem: 233), como o sejam a definição da tarefa, a avaliação, a representação do problema, a detecção do problema, o diagnóstico e a selecção de estratégias de revisão.

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Podemos, por fim, acrescentar algumas diferenças de base entre a explicitação do conhecimento e a transformação do conhecimento. Assim, no que concerne ao modo como se pressupõe a resolução de problemas, podemos referir que no primeiro método se elenca tudo o que se sabe sobre o tema, de modo linear, desconsiderando o destinatário do texto, enquanto que, num segundo método, interagem os âmbitos do conteúdo (conhecimentos sobre dada temática) e do retórico (objectivos que se supõe que sejam alcançados).

Relativamente ao tempo que decorre até ao início da tarefa, o método de explicitação de conhecimento diz-nos que existe um certo grau de imediatismo posto que a produção textual poderá arrancar logo após o reconhecimento da primeira pista, associada ao tema e tipo de texto; como contraponto, o início da planificação no método de transformação do conhecimento é mais demorado pois o escrevente propor-se-á analisar os objectivos, resolvendo antecipadamente quaisquer potenciais problemas.

Decorrente da planificação poderão, ainda, surgir outras alterações em termos do modo de funcionamento de cada um dos métodos; assim, o texto seguirá o alinhamento e a sequência das notas tomadas antecipadamente, caso o método seja o da explicitação de conhecimentos; contudo, caso analisemos o método que se lhe contrapõe, concluiremos que o resultado formal é diferente das notas iniciais, havendo consideravelmente mais notas do que texto, denotando um processo mais complexo.

Também no que toca à revisão, e às alterações que esta exige, poderemos referir que se afiguram escassas e superficiais se o método analisado for o da explicitação do conhecimento mas são substantivas e consideráveis caso o método seja o da transformação do conhecimento. Devemos, assim, considerar que um texto produzido ao abrigo do método da explicitação do conhecimento está, indelevelmente, associado a um contexto, centrando-se unicamente no emissor, o que origina, de alguma forma, a fragmentação da mensagem e dos objectivos iniciais do texto. Num outro plano, no da transformação do conteúdo, o texto surge independentemente de um conteúdo, centrando-se no leitor, o que contribui, de forma decisiva, para o alcançar da finalidade comunicativa do texto.

Mais recentemente têm vindo a lume algumas teorias que, aproveitando contributos dos modelos antes mencionados, tentam reformulá-los, reciclando-os com contributos mais recentes e revestindo-os com novas roupagens. Deste modo podemos destacar Leist (2006), autora que propôs um modelo baseado em quatro partes que concorrem para a adequada produção de um texto.

Assim, na pré-escrita são utilizadas algumas técnicas ou exercícios que despoletam todo o processo de geração e exploração de ideias e que acabam por fazer com que o escrevente assimile ideias e materiais não só para o texto em produção, como também para o seu próprio processo de aprendizagem.

Um segundo momento será o da escrita de rascunhos, momento no qual se organizam e prolongam as conclusões que antes se alcançaram. Eventualmente, de acordo com a autora,

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este rascunho será único no caso de aluno levar a cabo uma produção textual na sequência, por exemplo, de uma prova escrita de avaliação de conhecimentos.

Para o momento imediatamente posterior ao da escrita de rascunhos, a autora propõe a revisão, actividade que concentra em si mesma escrita, e que partindo do rascunho vai aumentando ou eliminando alguns dos elementos presentes nas etapas prévias. Leist defende ainda que na revisão de uma produção escrita, o escrevente terá sempre em consideração as expectativas do potencial leitor, algo que, como já vimos, deve apenas acontecer no caso de nos depararmos com alguém cuja competência de escrita esteja já desenvolvida posto que, de um outro modo, tal não parece admissível. Ao longo da revisão, o escrevente deverá ainda contar com os contributos do professor ou dos seus pares, que se alcançaram ao longo da análise do rascunho. Este procedimento conjunto acaba por fazer com que o texto possa contar com a) contributos de outras fontes ou de descobertas que o escrevente alcançou, fruto desse confronto; b) a correcção de expressões redundantes ou não adequadas e c) partes do rascunho que pareciam não funcionar no texto em produção mas que, eventualmente, podem fazer com que este seja mais efectivo.

A última etapa, de acordo com Leist (2006) está reservada à edição de todo o processo. Será este o momento reservado à correcção de erros antes de que o escrevente dê por terminada a sua tarefa de escrita. Para além da simples correcção de erros, esta fase implicará uma preocupação com a coerência e a coesão, fazendo com que o texto respeite quer as regras gramaticais, quer as regras definidas para a sua produção.

Também para Leist (2006), à semelhança de outros autores já antes estudados, especialmente nos precursores desta teoria – Flower & Hayes (1983) – deve pressupor-se uma certa dose de recursividade, isto é, a ordem e a sequência destas quatro fases não terá, obrigatoriamente, de ser aquela a que aqui se aludiu, na medida em que um escrevente avança ou retrocede em função das suas próprias necessidades pessoais e não das regras de um modelo de escrita. A inovação patenteada por Leist (2006) parece beber no já anteriormente advogado por Sampson, Rasinski & Sampson (2003), onde já se valorizava a intervenção de pares ao longo da criação de um texto. Em qualquer dessas etapas de revisão, o papel dos colegas acaba por ser decisivo no que concerne ao texto produzido, uma vez que as suas reacções e comentários apoiam o processo de revisão, oferecendo ao texto alguma retro-alimentação, em virtude de se debruçarem sobre se a escrita é clara (ou não), compreensível (ou não) ou até sobre o seu grau de atractividade, como defenderam Sampson, Rasinski & Sampson (2003).

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Capítulo IV - A produção de expressão