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Capítulo I Língua materna, língua segunda e língua estrangeira: da definição

1.1. Diferenças conceptuais e epistemológicas entre língua materna, língua

1.1.1. Língua materna

De acordo com Saussure (1995: 35), a língua é um sistema homogéneo de signos que suporta a fala, funcionando esta como actualização da própria língua sendo, contudo, “uma coisa adquirida e convencional”. Assim, a língua materna (LM) apelará, garantidamente a um outro conceito, o de “socialização” (Grosso, 2005: 608) na medida em que sua aquisição decorre de uma determinada imersão social, cujo veículo transmissor é, geralmente, a família. A criança será, portanto, desde o seu nascimento, agente e paciente da acção da LM que lhe transmitirá e lhe fará interiorizar, ao longo da infância, um mesmo código linguístico, para além de intuições – também elas linguísticas – associadas à sua forma e utilização. Esta capacidade, apenas demonstrada pelo ser humano, possibilita-lhe a aquisição, de forma espontânea e célere, da língua da comunidade em que passam os primeiros anos de vida, permitindo-lhe utilizá-la seja como ouvintes, locutores ou interlocutores, recorrendo a ela seja em casa, seja entre pares. Podemos assim delimitar a LM como a língua que se aprende desde os primeiros dias de vida e que acabará por funcionar como o elo de uma corrente, identificando os indivíduos com a sua comunidade, o seu espaço geopolítico, enfim, o seu país.

O rótulo de LM derivará, grandemente, do facto de que se considere, por antonomásia, “mãe” como símbolo de família, núcleo central, como já vimos, das primeiras aprendizagens realizadas ao nível linguístico; como defende Marques (2005: 606), a LM, como língua de berço, “é aquela que usamos e foi adquirida, num primeiro tempo, e, posteriormente, e de forma assaz rápida, sedimentada num conhecimento e num procedimento formal mais rigoroso”. Contudo, qualquer possível definição trazida à colação até ao momento impacta contra algumas limitações que impedem uma abordagem holística e uma definição cabal de LM, em virtude das possíveis ambiguidades do conceito e da falta de delimitação de fronteiras do mesmo. Deste modo, e considerando que todos os contributos alvitrados até ao momento reportam para conceitos como a afectividade e o domínio, noções estas que podem oferecer algumas imprecisões aquando da definição do conceito de LM, convém aprofundar e clarificar este mesmo conceito, mobilizando noções com um mais baixo grau de abstracção.

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A suposição de que a LM se baseia no conceito de “afectividade” pode oferecer à sua definição um carácter algo dúbio uma vez que poderá remeter quer para a língua falada pela mãe, como à utilizada pelo pai; não haverá nenhum tipo de hesitação caso cada um dos progenitores recorra ao mesmo idioma mas este aspecto pode levantar algumas questões no caso da existência de mais do que uma língua, isto é, caso o sistema linguístico utilizado pela mãe não coincida com o do pai; uma outra questão poderá levantar-se em função daquilo que se entende como “domínio” de uma língua, como aquela que melhor se domina, isto porque uma língua, dada a dinâmica que lhe é inerente, não poderá nunca entender-se como algo estático que possa ser controlado e, portanto, dificilmente poderíamos associar-lhe o conceito de “domínio”.

A definição do conceito de LM, ainda que em contextos monolingues, pode afigurar-se como um desafio complicado de gerir; contudo, se à sua tentativa de definição se associar um carácter plurilingue, essa mesma definição transformar-se-á, obrigatoriamente, numa tarefa substancialmente mais complexa. Neste âmbito, Mackey (1992) define três critérios para a definição de LM, o de primazia que comporta a primeira língua aprendida e a primeira compreendida, o de domínio, isto é, a língua cujo domínio é mais efectivo e, finalmente, o de associação que pressupõe a partilha de elementos comuns entre elementos de um determinado grupo cultural. Dabène (1994), por seu lado, opta por colocar a ênfase nos conceitos de falar, definido como as potencialidades de um indivíduo e a aplicação prática que o mesmo faz delas, língua reivindicada que engloba as atitudes e representações para com a língua, fazendo dela um elemento de identidade e língua descrita critério que pressupõe o manancial de descoberta de que o aprendente dispõe.

Para Sim-Sim (1998), é evidente que, durante a infância, aquando da exposição à língua, a criança acaba por fazer uma aquisição natural e espontânea, aquisição essa universal e não ensinada, o que leva a que se denote um crescimento linguístico, facilitado pelas regras de estrutura e uso que vão sendo absorvidos pela criança que aprende, desta forma, o seu primeiro sistema de comunicação. Assim, poder-se-á considerar como LM de um indivíduo “o sistema adquirido espontânea e naturalmente, e que identifica o sujeito com uma comunidade linguística” (ibidem: 25). Este conceito é corroborado por Gonçalves (2003) que defende a LM como um instrumento de socialização na medida em que promove a inserção do falante na comunidade linguística que o rodeia, em actividades de interacção social, por forma a satisfazer as suas necessidades comunicativas. Considera-se, então, lato

sensus, como LM a que a criança fala, a língua utilizada no ambiente familiar, aquela em que

o falante possui maior índice de competências ou até a língua da comunidade onde o falante se integra. Podemos, assim, englobar todos os aspectos antes referidos como concernentes à língua onde se desenvolve a educação da criança. Contudo, há que ressalvar a possibilidade de que a criança seja educada por pessoas que falem línguas diferentes, sejam eles os pais ou outras pessoas; neste caso, considerando a aquisição simultânea de duas línguas consideram- se, ambas, LM, situação essa que conformará uma condição de bilinguismo.

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O bilinguismo poderá, até, funcionar como uma resposta positiva face a potenciais diferentes dimensões multiculturais e/ou multilingues, como é o caso de línguas em regime de co-oficialidade em alguns países. De facto, se tivermos em consideração que uma língua funciona como reflexo do mundo, do nosso mundo, isso apenas significará que os diferentes usos da língua poderiam conformar diferentes formas de conceber a realidade: valores, modelos, costumes e as relações pessoais e familiares que se estabelecem. Deste modo, todos os aspectos que compõem culturalmente uma sociedade acabarão por ter uma relação directa, uma ligação efectiva, permanente e vinculativa com a sua própria língua, criando assim uma relação directa entre diversidade linguística e diversidade cultural, pelo que existe um contributo directo, a este nível, para o enriquecimento do património cultural de um grupo de pessoas, visão esta que, de alguma forma, acaba por contribuir para uma mais nublosa definição de LM, dadas as constantes trocas culturais e processos de aculturação que ocorrem e, com eles, a evolução das respectivas línguas.

Considera-se, assim, que o processo de aprendizagem de uma LM é um sistema contínuo, que se inicia na infância mas que se prolonga pela vida adulta, factor que poderá ser cotejado pela capacidade de produzir um número infinito de enunciados, algo que, em última instância, proporciona uma aprendizagem potencial ao longo da vida de um falante. Esta aquisição é, de acordo com Sim-Sim (1997: 44), “o mais impressionante empreendimento que o ser humano realiza durante a infância”, em virtude da “rapidez com que a criança se apropria da língua” da comunidade onde se insere, para além do facto de todos estes procedimentos serem universais e iterativos.