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Capítulo V A adequação do texto à situação de comunicação

5.3. Texto, textualidade e textualização

5.3.1. Factores semântico-formais

A coerência deve ser entendida como o conjunto de elementos que revestem determinada produção textual com um manto de consistência e aceitabilidade, isto é, quando um texto cumpre os requisitos que lhe conferem a lógica necessária, devendo esta coerência ser alcançada através da organização proposta para os conceitos nele incluídos e as relações que estes estabelecem entre si; ao contribuir de forma indelével para que o texto possua o sentido necessário, a coerência irá necessitar de fundamentar todo e qualquer aspecto semântico, lógico mas também cognitivo, na medida em que um texto pressupõe a partilha de conhecimentos entre a comunidade que o recebe. Assim, parece claro que um texto apenas pode ser rotulado como coerente quando a sua malha conceptual é compaginável com a cosmovisão do seu respectivo leitor, isto porque não lhe bastará, em termos de produção, demonstrar o cuidado devido com as ideias apresentadas, nem com as relações que as mesmas estabelecem ou até como se organizam e articulam as noções aí veiculadas. A coerência prende-se, sim, com a informação que o texto transmite e o seu leitor consegue

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processar pois este deve mobilizar, a partir do texto e das características que o escrevente lhe imprima, os conhecimentos necessários à sua correcta interpretação.

Devemos, então, ter em consideração que o escrevente não deve repudiar, aquando dos processos de planificação, redacção e revisão do seu texto, o papel activo desempenhado pelo leitor pelo que, não raras vezes, muitos dos conhecimentos necessários a uma adequada compreensão e interpretação textuais não se encontram explícitos – com inegável vantagem de economia linguística e eficácia comunicativa – por dependerem de potenciais princípios de dedução e indução por parte do leitor. Ainda assim, parece-nos importante ressalvar um ponto fulcral que decorre do facto de haver uma impossibilidade de que todos os leitores possuam a mesma paleta de conhecimentos, expectativas, interesses e experiências, pelo que cada leitor fará uma interpretação pessoal – e talvez até divergente – do texto em questão, na medida em que o sentido de um texto decorre não só das intenções de quem o produziu, mas também da mundividência e das competências de interpretação de quem o recebe.

Porém, não obstante as evidentes diferenças potenciais em termos de interpretação de um mesmo texto, é possível inferir a existência de elementos comuns, no que concerne ao papel desempenhado pelo leitor, isto é, pese embora as diferentes idiossincrasias, o facto de que se pertença a uma mesma sociedade permite que daí decorra uma partilha de valores e

conhecimentos20 que concorrem para a criação de sentido do texto e, por inerência, de

coerência textual comum que, apesar de parcelar, facilita e permite a comunicação porquanto se encontram partilhadas diferentes áreas de competência, como sejam a linguística, como o vocabulário ou a gramática, a textual, como as distintas tipologias textuais e as suas estruturas características ou, ainda, a competência pragmática, que se reflecte na utilização dos mais comuns recursos estilísticos, para além de outros valores e expectativas que acabam por configurar o contexto social que foi sendo criado ao longo dos anos, e que foi, ele próprio, moldando os indivíduos que nele se inserem e cuja cosmovisão foi sendo neles inscrita ao longo do tempo.

É nesse mesmo sentido que se posiciona Charolles (1978), ao definir quatro condições para a existência de coerência textual, a saber, as regras da repetição (reference), progressão (progression), não-contradição (non-contradition) e relação (relation); assim, a “Méta-règle de répétition (MR I): Pour qu’un texte soit (microstructurellement ou macrostructurellement) cohérent, il faut qu’il comporte dans son développement linéaire

des elements à récurrence stricte.” (idem, ibidem: 14) implicará o regresso, ao longo do

texto, a elementos já referidos pois é necessário que haja, ao longo do mesmo, meios que, pela sua recorrência, permitam que o texto se desenvolva num crescendo de continuidade pelo seu recurso a palavras repetidas, sinónimos, antónimos, hipónimos, hiperónimos, etc. que lhe conferirão continuidade semântica; a “Méta-règle de progression (MR II): Pour qu’un

texte soit microstructurellement ou macrostructurellement cohérent, il faut que son

20 Como já vimos anteriormente, na sequência da análise do texto “O Plano C”, apresentado no sub- capítulo anterior.

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développement s’accompagne d’un apport sémantique constamment renouvelé.” (idem, ibidem: 20) diz respeito a que o texto vá mais além da MR I, incitando à inclusão de novas

informações que façam o texto progredir, acrescentando novas ideias às que já se encontra explicitadas no texto por forma a que o texto possa evidenciar uma sequencialização mais dinâmica e homogénea; a “Méta-règle de non-contradiction (MR III): Pour qu’un texte soit

microstructurellement ou macrostructurellement cohérent, il faut que son développement n’introduise aucun élément sémantique contredisant un contenu posé ou présuposé par une occurence antérieur ou déductible de celle-ci par inférence.” (idem, ibidem: 22) remete para o princípio da compatibilidade entre aquilo que é dito no texto, isto

é, a impossibilidade de afirmar algo e o seu contrário porquanto o conteúdo do texto não pode contradizer-se e deve ser consentâneo com o mundo onde se insere e para o qual remete. Esta não-contradição deve ser evidenciada especialmente através do léxico e pode perigar pelo recurso a vocabulário inadequado, fruto de desconhecimento do significado do mesmo; finalmente, a “Méta-règle de relation (MR IV): Pour qu’une séquence ou qu’un

texte soient cohérents, il faut que les faits qu’ils dénotent dans le monde represente soient reliés.” (idem, ibidem: 31) expõe a teia de relações existente entre as informações

veiculadas no texto, a forma como estas se entrelaçam, fruto do encadeamento conceptual que lhe dá origem, e se evidenciam em função da sua pertinência e congruência.

Concluímos, com o autor, que a sedimentação e acumulação de experiências linguísticas em sociedade, por parte dos seus utilizadores, acabam por criar uma malha de coerência subliminar que é, posteriormente, aplicada quer à produção, quer à textualização associada a um enunciado pois para que “une séquence soit admise comme cohérent il est necessaire que les actions, états ou événements qu’elle dénote soient perçus comme congruentes dans le type de monde reconnu par celui qui l’évalue.” (Charolles, 1978: 31). Em suma, parece-nos correcto referir que a coerência de um texto decorre grandemente (mas não de forma exclusiva) da sua estruturação interna, que é composta por conceitos e pelas relações que os mesmos estabelecem entre eles mas também advém da conciliação entre esses mesmos conceitos e a sua representatividade, no mundo real, de todo aquele que recebe o texto, como vimos, já, com o exemplo que aludia a um personagem de nome Pedro

que construía castelos de areia.21

Por coesão deverá entender-se, em sentido restrito, a representação linguística directamente associada à coerência, isto é, remete para a forma como são veiculados, no texto, os conteúdos e as relações – implícitas ou explícitas – que os mesmos possam apresentar. Contudo, e tal como tínhamos já referido no âmbito da coerência, a coesão não é exclusiva do texto, não se encontra confinada a este, nem tão-pouco aguarda que o leitor a reconheça, antes deve ser construída por todos aqueles que acabem por contactar com a produção textual em questão. É irrefutável que os recursos linguísticos colocados à disposição do escrevente permitir-lhe-ão colocar em evidência os conteúdos linguísticos e as relações

21 Cf. ponto 5.3., neste mesmo capítulo.

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que os mesmos possam apresentar, mas essas ferramentas servirão unicamente para destacar a coesão do texto, pelo que caberá ao seu leitor elaborar imprescindíveis nexos de relacionamento, encadeamento e conexão, necessários para uma correcta e adequada interpretação do texto.

Podemos, ainda assim, identificar em Bronckart (s.d.) dois campos em cuja actuação se sub-divide a coesão, a “connexion” (idem, ibidem: 20), que funcionaria como uma coesão sequencial e que poderá ir desde a estrutura do texto até à estrutura frásica e a “cohésion nominale” (idem, ibidem: 21) mais associada a potenciais co-referenciações dentro do texto. Considera-se, assim, que a coesão sequencial a que alude Bronckart (s.d.) inclui todos os elementos gramaticais cuja natureza remete para a organização interna do texto, podendo estes agrupar-se em a) advérbios e locuções adverbiais; b) preposições e locuções prepositivas; c) conjunções e locuções conjuncionais coordenativas; e, por último, d) conjunções e locuções conjuncionais subordinativas. Poderão, ainda, observar-se outros conectores que demonstrem e evidenciem as relações entre as diversas informações textuais e que contribuem de forma indelével para uma mais profunda e cuidada articulação dos elementos e segmentos informativo-argumentativos, isto porque um texto coerente depende de procedimentos linguísticos que relacionem o que foi dito com aquilo que vai ser dito, fazendo com que haja uma progressão no texto à medida que vão sendo construídas relações semânticas e pragmáticas entre os elementos veiculados pelo escrevente e aqueles percebidos pelo leitor.

Não devemos, assim, deixar de colocar a ênfase no facto de, também a coesão, pressupor a existência de um leitor para que este possa oferecer um sentido definitivo ao texto, complementando a idealização colocada em evidência pelo escrevente na medida em que podemos identificar algumas ideias cuja interpretação não é, de forma denotativa, proporcionada pelo próprio texto, antes aparenta um carácter conotativo que requer um exercício de associação de ideias por parte de todos os receptores de texto em questão. Parece-nos que tal facto não é demasiado visível porquanto as operações interpretativas da maioria dos textos ocorrem de uma forma inexoravelmente rápida e fácil, o que impede um julgamento eficaz sobre as mesmas, por parte do leitor. Este facto deve-se, grandemente, ao contexto que envolve cada um dos excertos que possa levantar alguma dúvida. Assim, caso retiremos do contexto um trecho, e o analisemos de forma isolada, poderemos mais facilmente verificar de que forma o leitor é levado a processar mentalmente as distintas possibilidades interpretativas que esse mesmo excerto lhe coloca à disposição.

Tomemos como exemplo a frase “Fui ver o carro que está à venda. Está impecável mas é muito caro.” A interpretação que pode ser feita desta frase não decorre de nenhuma realidade expressa de forma clara e inequívoca no texto, aliás, o recurso ao adjectivo “impecável” indica até um parecer favorável relativamente ao objecto da compra. Porém, o recurso à conjunção coordenativa adversativa “mas” deixa em aberto, ao leitor do referido excerto textual, o campo das possibilidades interpretativas. Podemos, deste modo, inferir

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que a) o carro, apesar de “impecável” não vale o montante pedido; b) o comprador não tem condições financeiras para adquirir a viatura; ou ainda c) o comprador pode ser rotulado de avarento por não pretender aplicar o seu dinheiro na aquisição de uma viatura, apesar desta se encontrar “impecável”. Para além dos aspectos aqui referidos, o leitor pode, ainda, deduzir nova informação a partir do texto, ainda decorrente da colocação em evidência da palavra “mas” que, por si só, aponta para a não conclusão do negócio, apesar de nenhum desfecho ser evidenciado pelo emissor – que sonega essa mesma informação – mas que, apesar disso, dá a entender que a conclusão lógica do seu texto seria “… e por isso não o comprei.” Este caso, como tínhamos já referido, pretende representar o facto de que, não raras vezes, o emissor poderá deixar em suspenso alguma informação para que o seu leitor comunique com ele, através do texto, e o possa completar, em virtude da sua própria interpretação que, obviamente, poderá diferir de leitor para leitor.

Relativamente à coesão nominal, esta prende-se com as conexões que os diferentes elementos linguísticos constituintes do texto mantêm entre si, desenvolvendo relações de interdependência significativa porquanto um requeira a existência de outro para a tomada plena de sentido. Estas relações de interdependência podem denominar-se de anáforas ou catáforas caso o referente surja, respectivamente, antes ou depois do termo ou expressão para o qual remete. A estas relações de interdependência que “explicitent les relations de solidarité existant entre des unités qui partagent une ou plusieurs propriétés référentielles” (Bronckart, s.d.: 21), o autor denomina-as de “fonction d’introduction” (idem, ibidem) e de “fonction de reprise” (idem, ibidem) que podem ser directamente associadas às noções de catáfora e anáfora. Podemos, ainda, encontrar no âmbito das cadeias de referência a que aqui aludimos duas outras situações que contribuem para a coesão textual, ao desenvolverem cadeias de relação e de interdependência dentro do enunciado, como sejam a elipse, na qual o termo anafórico não se encontra lexicalmente evidenciado e a co-referência não anafórica que pressupõe a existência de duas ou mais expressões associadas ao mesmo referente mas com uma total ausência de dependência referencial entre elas.

Assim, e por forma a ilustrar as quatro categorias a que aludimos, podemos oferecer como exemplos algumas frases nas quais estes nexos de coesão sejam visíveis, sendo que tais exemplos serão apresentados sob a forma de quadro por forma a facilitar o evidenciar das relações que os elementos frásicos mantêm entre si.

ex. frase cadeia de

referência

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ii Confesso que quando o vi, pensei, aquele carro deve ser muito caro. catáfora

iii

O carro que quero comprar é muito desportivo, ø tem todo o

equipamento de segurança e ø dá-me todas as garantias de um bom negócio. Os pneus e a suspensão oferecem uma segurança inabalável.

elipse

iv

No dia 30 de Dezembro, o Júlio comprou finalmente o carro. O pai do Edu, no dia seguinte já estava a caminho do sul de Espanha ao volante do seu Jaguar.

Co-referenciação não anafórica

ex. frase

v

O comprador desentendeu-se com o vendedor do carro por causa da

sua obsessão com aquela marca específica.

Do comprador? Do vendedor?

Passamos, então, a avaliar as diferentes possibilidades constitutivas de referenciação, colocadas em evidência por alguns destes exemplos. No ex. i podemos verificar a existência de um referencial dependente, por “o” retomar o valor referencial do referente, “o carro”; no ex. iv verifica-se uma co-referência pois existe uma relação de hiponímia/hiperonímia entre os elementos, isto é, “Jaguar” possui um sentido mais restrito, em oposição ao sentido mais lato de “carro” que funcionará como hiperónimo de carro; no caso do ex. iii a relação anafórica é sustentada por uma relação de holonímia/metonímia, isto é, requer uma relação semântica que expresse a ligação do todo pela parte ou da parte pelo todo, como é o caso dos “pneus” ou da “suspensão” relativamente a “carro”; por vezes há ainda a necessidade do recurso à interpretação do antecedente, como no ex. iv, porquanto o valor referencial da expressão “dia seguinte” apenas se constrói com base na marca temporal “30 de Dezembro”, anteriormente enunciada. Podemos, ainda, e relativamente ao ex. v, fazer sobressair que, não raras vezes, a existência de algumas perturbações posto que a existência de um elemento anafórico “sua obsessão”, utilizado num contexto que possa referir-se a dois termos antecedentes “o comprador” e “o vendedor”, quebra a coesão e, por conseguinte, provoca um texto com algum grau de ambiguidade e, por essa razão, susceptível a distintas interpretações.

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