• Nenhum resultado encontrado

Argentina

No documento Download/Open (páginas 136-140)

4. MECANISMOS DECISÓRIOS DE PARTICIPAÇÃO NO BRASIL E NA

4.3. Argentina

Antes de iniciar esta seção é importante destacar que, diferentemente do Brasil, no qual é possível debruçar-se sobre uma significativa produção acadêmica sobre mecanismos de participação (como os conselhos gestores), no caso argentino o mesmo não acontece. Assim como já constatado por Panfichi e Chirinos (2002) há poucos estudos sobre essa temática em abrangência nacional, inclusive sobre a própria discussão de sociedade civil.

O panorama da Argentina com o retorno da democracia é diferente do caso brasileiro. Como ilustra Cardoso (1984), as políticas econômicas internacionais nesse país operaram sobre uma base social e produtiva que desde o século XIX teve como características marcantes: exitosas economias primário-exportadoras e forte capacidade integradora da sociedade. Tais características guardam relação com a formação histórica das colônias espanholas que eram consideradas regiões complementares às metrópoles e, à semelhança da Europa, possuíam uma burguesia competitiva e uma massa de trabalhadores assalariados tanto no campo como na cidade.

Contudo, a ditadura militar instaurada no período 1976-1983 destruiu instituições democráticas, partidos políticos enraizados em bases populacionais e com longa trajetória, Parlamentos respeitados pela cidadania e sobretudo, o desmonte de uma sociedade relativamente ativa (CARDOSO, 1984).

Nesse período, a ocupação industrial teve queda de 30%, afetando, principalmente, os setores metalúrgicos, de bens de capital, tecidos, couro e, em menor medida, a produção de alimentos, bebidas e tabaco. O desemprego gerou bolsões de pobreza em localidades consideradas anteriormente polos industriais, como Rosário, Córdoba e região metropolitana de Buenos Aires (QUINTAR; ARGUMEDO, 2000).

Outro é o panorama da sociedade brasileira, que se construiu a partir de uma estrutura patrimonialista muito arraigada; a burguesia constituída não se assemelhava com o perfil europeu de estilo competitivo; contava com expressivo contingente de mão de obra escrava no campo em detrimento de uma classe trabalhadora, além de possuir bolsões de pobreza bastante expressivos não só regionalmente, mas também naquelas áreas mais desenvolvidas (CARDOSO, 1984).

Em meados da década de 1950, a estrutura social e produtiva brasileira passou de um sistema econômico agrário-exportador sustentado no café e na cana-de-açúcar em uma economia de subsistência para um estilo de desenvolvimento dirigido pelo Estado (modelo desenvolvimentista) que na década de 1980 alcançou a 8ª economia industrial do mundo. Contudo, a estrutura industrial altamente desenvolvida não se tornou autossustentável financeira e tecnologicamente, e foi nesse período que ocorreu a formação de um consenso quanto à necessidade de inserção em economias globalizadas, assumindo como requisitos a redução das funções do Estado; fortalecimento do mercado; flexibilização das relações trabalhistas; controle inflacionário às custas da exclusão social e da desigualdade de renda (FLEURY, 2005).

No caso argentino, como sintetiza Cardoso (1984), a base produtiva foi desorganizada; o impulso ao crescimento econômico, reduzido; setores das atividades econômica e social foram privatizados e o progresso nas exportações agrícolas beneficiou apenas alguns setores. Diferentemente do caso brasileiro, que vivenciou o chamado “milagre econômico” durante a

116

ditadura militar, na Argentina “teve-se apenas imobilismo e desacerto” (p. 49), não se alcançando uma fase superior de desenvolvimento econômico.

No plano político, os principais partidos extinguidos pela ditadura formaram uma instância de ação contra o regime militar conhecida como Multipartidaria que começou a pressionar pelo retorno do Estado democrático. Frente a essa situação, os militares decidiram recuperar as Ilhas Malvinas e obtiveram apoio e legitimidade por um breve período devido ao seu discurso anticolonialista (QUINTAR; ARGUMEDO, 2000).

Contudo, a derrota sofrida para a Inglaterra na Guerra das Malvinas em 1982 que recebeu o apoio dos Estados Unidos, somada ao comportamento corrupto dos militares em relação às contribuições realizadas pela sociedade argentina no auxílio aos recrutas que estavam na guerra, enfraqueceram a ditadura militar. Assim, no final de 1982, os militares não tiveram escolha e viram-se obrigados a promover a abertura democrática com a convocação de eleições para o próximo ano (QUINTAR; ARGUMEDO, 2000).

Nesse período também surgem novos atores que passam a manifestar suas reivindicações, com destaque para os movimentos por direitos humanos que colocam no centro do debate os desaparecidos, a dimensão ética na prática política e a valorização de acordos básicos da sociedade com os partidos políticos. As organizações sociais, como as “Mães da Praça de Maio” constitui o exemplo mais expressivo com impacto nos meios de comunicação nacionais e internacionais, além de um reconhecimento internacional (ALBUQUERQUE, 2004; FORD, 2007).

O retorno do sistema político democrático em 1983 não culminou, diferentemente do Brasil, na formulação de um novo texto constitucional. No caso argentino, a transição democrática foi caracterizada pela atualização da Constituição vigente conferindo ao documento um feitio propriamente democrático. Segundo Arantes e Couto (2010), tal distinção, se deve à importância que o primeiro texto constitucional datado de 1853 teve para a Argentina na definição do Estado-nação, sendo a Constituição original forte nessa matéria que apesar do país ter sofrido rupturas políticas não foram capazes de alterá-la, mesmo tendo provocado mudanças em aspectos de ordenamento político do país.

Em relação aos mecanismos de participação, logo após o retorno democrático, em 1984, se convoca uma consulta popular em caráter não vinculante tendo como objetivo conhecer a opinião do eleitorado sobre a aprovação ou não do Laudo Beagle, referente a um acordo com o Chile sobre a determinação da linha divisória do Canal Beagle que compreende três ilhas. A decisão sobre a convocação da consulta popular foi objeto de controvérsia no que diz respeito a possibilidade ou não de convocação. De um lado, estavam aqueles que argumentavam que o texto constitucional impedia a iniciativa e, de outro, os que consideravam que, como a iniciativa não teria caráter vinculante, eram grandes as chances do eleitorado não querer se pronunciar sobre a questão. Contudo, para além da controvérsia, a consulta foi realizada e, mesmo o voto não sendo obrigatório, 70% dos eleitores argentinos compareceram às urnas (SABSAY, 2008).

Contudo, mesmo tendo tal iniciativa um significado expressivo para a dimensão da cidadania na Argentina, a incidência destes novos instrumentos de participação direta no cenário público tem sido quase nula. A causa pode estar nas dificuldades para a implementação de tais iniciativas que impõe requisitos difíceis de serem cumpridos. A convocatória das consultas populares fica muito a cargo do Legislativo e do Executivo, o que restringe o seu poder de aplicação pela população devido aos custos gerados para a organização e a mobilização de tal instrumento de democracia direta (SABSAY, 2008).

Este cenário não é característico somente da Argentina, mas atinge também toda a América Latina, segundo pesquisa realizada por Zovatto (2008) quanto à utilização do plebiscito, referendo ou consulta popular na região durante o período de 1978-2007. Os resultados mostram que o uso destes instrumentos em escala nacional tem sido modesto e

117

altamente concentrado em um número reduzido de países. Um primeiro dado diz respeito aos países que utilizam com frequência esses instrumentos: Equador e Uruguai. Outra informação refere-se a quantidade de vezes que foram convocados: 27 das 41 consultas realizadas (66%) estão concentradas em quatro países: 12 no Uruguai; sete no Equador; quatro na Venezuela e outros quatro no Panamá. Em outras palavras: 22% dos 18 países da região concentram 66% das consultas populares realizadas no período de 1978-2007. E um país somente, o Uruguai, concentra 30% do total destas consultas.

A investigação também aponta que a tendência, desde o retorno da democracia no final da década de 1970, é o emprego crescente dos mecanismos de consulta à população nos países latino-americanos. Enquanto na década de 1980 foram realizadas, ao todo, nove consultas populares (21%), nos anos 1990 o percentual alcançado foi de 48%, sendo a maioria para legitimar ou rejeitar reformas constitucionais. A partir dos anos 2000, 11 consultas (27%) foram empregadas: duas na Bolívia; duas no Equador; duas no Uruguai; duas na Venezuela; uma no Brasil; uma na Colômbia e uma no Panamá (ZOVATTO, 2008).

Na Argentina, a reforma constitucional de 1994 pouco inovou em termos de cidadania, quando comparado ao caso brasileiro. Do ponto de vista político-institucional a mudança mais significativa refere-se ao Art. 90 que dispõe sobre o mandato do presidente e vice-presidente da República de quatro anos podendo ocorrer reeleição. Isso quer dizer que a concepção e o exercício do poder político nesse país estão concentrados exclusivamente pela representação política no sistema democrático, assim como prevê o Art. 20: “El pueblo no delibera ni gobierna, sino por medio de sus representantes y autoridades creadas por esta Constitución”.

Em relação a à disposição dos mecanismos de participação cidadã na Constituição da Argentina é garantida a iniciativa popular (ainda não utilizada) pelo Art. 39 e a consulta popular (referendo e plebiscito) pelo Art. 40. Espaços públicos institucionalizados de cogestão entre Estado e sociedade não estão dispostos na legislação nacional desse país. O mesmo acontece nas Constituições da Bolívia, Honduras, Paraguai e República Dominicana, como pesquisado por Jara (2006).

Essa ausência na institucionalização de órgãos colegiados na gestão pública entre Estado e sociedade pode ser explicada também pelo cenário político instável que marcou a Argentina no início da década de 1990. Optou-se pela realização de algumas reformas na legislação nacional e pela manutenção da Constituição de 1853, em detrimento da elaboração de um novo texto constitucional. A explicação pode residir no retorno da democracia ter sido marcado por uma descrença popular frente às instituições políticas. Antes da Reforma Constitucional de 1994, o conflito social disseminava-se pelo país, reproduzindo-se assembleias populares, movimentos piqueteiros, movimentos culturais e a criação de meios de comunicação alternativos. Ainda hoje é visível a insatisfação da população argentina com as instituições políticas (ARAUJO; FERNANDES; FEDALTO, 2012).

Um dos mecanismos de participação na Argentina presente a nível provincial e municipal que encontra na experiência brasileira o seu modelo refere-se ao OP. Considerado uma inovação do ponto de vista democrático, desde então, passou a ser reconhecido como uma experiência bem-sucedida de participação direta e, desse modo, alcançou uma ampla repercussão no cenário político nacional e internacional (FEDOZZI, 1998).

Segundo a Rede Brasileira de Orçamento Participativo, o caso brasileiro inspirou cerca de duas mil experiências a nível mundial, tornando o país uma referência internacional quando o assunto é democracia participativa.7

Na Argentina, o OP constitui uma experiência de participação direta, com destaque para as províncias de Buenos Aires, Córdoba, Corrientes, Entre Ríos, Mendoza e Santa Fe,

7

118

que agregam um conjunto significativo de municípios com essa experiência e integram a Rede Argentina de Orçamento Participativo.8

Segundo investigação realizada por Ford (2007), a implementação do OP na Argentina está relacionada com o calapso da paridade entre o peso argentino e o dólar ocorrido em 2001, que provocou a derrocada econômica e a emergência de diversas manifestações populares nas cidades que reivindicavam mudanças. O presidente na época, Fernando de La Rúa, renunciou ao cargo e abriu caminho para um período de crise político-institucional pela qual sucederam na Argentina cinco presidentes em apenas uma semana. A conjuntura política foi marcada por saques a comércios e repressão policial. A partir daí assembleias auto-organizadas em diferentes localidades do país começaram a se formar e discutir problemas locais e nacionais. Começou, então, a circular a expressão entre a população argentina: “que se vayan todos!” (FORD, 2007: 35).

A crise de 2001 teve importância no cenário político argentino por promover uma ruptura do modelo econômico, político, social e cultural que predominou no país desde pelo menos a ditadura militar iniciada em 1976, alcançando seu ápice na década de 1990. A crise se instalou nos dias 19 e 20 de dezembro de 2001. Milhares de pessoas ocuparam as ruas para manifestar e reivindicar contra a atuação do Estado e a incapacidade do seu quadro de representantes governamentais em prover políticas públicas eficientes. O resultado da fragilidade da governabilidade política foi refletido nas mobilizações, saques, paralizações e emigração de cidadãos argentinos em outros países (FORD, 2007; ACUÑA, 2003).

O cenário político-institucional hoje vivenciado pela Argentina aponta para um mau funcionamento do sistema partidário-eleitoral pelo qual o sistema político democrático é configurado. Parece que há uma crise de representação política, ou seja, um divórcio entre as demandas da sociedade e a capilaridade dos governantes em absorvê-las e responderem com políticas efetivas (ACUÑA, 2000).

O processo de democratização na Argentina, assim como no Chile e no Uruguai, foi assumido por partidos políticos e acordos institucionais, o que acabou por dificultar uma renovação das organizações sociais, como também a emergência de novos atores políticos. No Brasil, ao contrário, a luta pelo retorno da democracia incorporou as lutas populares e sindicais em diversos setores, também caracterizadas pela participação de diversos segmentos sociais, que dinamizaram o tecido social com suas reivindicações por autonomia e a resolução de problemas (ALBUQUERQUE, 2004).

Ao levar em consideração esse contexto de refundação democrática na Argentina, no qual o mecanismo partidário-eleitoral teve uma importância relevante na trajetória política de participação nesse país, pode-se considerar que ocorreu um rompimento dos laços de confiança dos cidadãos argentinos com os políticos eleitos para a gestão da coisa pública. Os reclamos sobre a autonomia dos representantes com respeito aos seus representados acabaram sendo o motivo considerado para a falta de transparência e de práticas de corrupção, somados ao não cumprimento das promessas eleitorais e da exclusão do cidadão como peça chave na governabilidade democrática (ACUÑA, 2000).

A opinião pública é construída em torno da apatia política, da descrença com a representação política, do desejo pelo afastamento da vida pública, das práticas corruptas pelos governantes e da incapacidade da classe política em exercer as suas funções. Parece que a frase “o povo governa através de seus representantes” adquire um sentido maior para a sociedade argentina. Isso porque parecem valorizar a ideia que os políticos eleitos uma vez no governo são aqueles mais qualificados para deliberarem, já que possuem um alcance maior e melhor das informações (ACUÑA, 2000).

8

119

A questão parece residir na frustração da representação política que historicamente configurou a relação da sociedade argentina com o Estado. A conjuntura atual leva a crer que a relação de confiança esperada pelos governados frente aos governantes eleitos foi desfeita devido à falta de transparência pública; escândalos de corrupção político-partidária e autonomia dos representantes que não mais consideram as preferências dos cidadãos (ACUÑA, 2000).

O fortalecimento dos sistemas políticos representativos consiste não somente na institucionalização de mecanismos de participação decisórios entre Estado-sociedade. Essa constitui uma medida necessária, mas não suficiente para assegurar a sustentação da democracia participativa. Portanto, alguns aspectos podem ser considerados quando o assunto é o fortalecimento da democracia não somente enquanto regime político, mas enquanto prática social (JARA, 2006).

Um primeiro aspecto relevante diz respeito à incorporação da participação em uma perspectiva mais ampla de direitos que define a própria dimensão da cidadania, uma vez que isso envolve uma mudança na relação Estado-sociedade. Desse modo, a democracia participativa encontra sua sustentação em dois polos: de um lado, tem-se a obrigatoriedade pelo Estado de cumprir os direitos por meio da implementação de políticas públicas e, por outro, está a sociedade, em exercer o dever inerente a dimensão da cidadania de exigir, acompanhar, fiscalizar e cobrar o cumprimento dos direitos (JARA, 2006).

Outros elementos também são relevantes com a finalidade de construir as bases para a democracia participativa e consolidar a democracia representativa. São eles: (1) necessidade de manter politizada a participação, ou seja, permitir a ampliação da esfera política decisória, não temendo a realização de conflitos que podem surgir na disputa por interesses; (2) não monopolizar o político nos políticos, mas ampliar e inserir um espectro amplo de atores sociais, assim como preconizar o pluralismo e a inclusão que definem a gestão social, na tomada de decisão política; (3) disseminar a institucionalização de esferas públicas participativas, como conferências, conselhos, colegiados, OP etc., que detém funções garantidas em legislação constitucional para decidir políticas, exercer o controle social, e com isso fortalecer a transparência pública (JARA, 2006).

Para concluir o caso argentino, um dos caminhos para a reversão desse quadro pode estar relacionado com a reconstrução da cultura política participativa. Torna-se necessária a sua dinamização e refundação no próprio núcleo societário por meio da organização social e da emergência de novos atores sociais. Somado a isso, tem-se a combinação entre delegação do poder aos representantes governamentais, característico da democracia representativa, com a institucionalização de mecanismos decisórios participativos entre Estado e sociedade, fruto da construção de uma democracia participativa.

No documento Download/Open (páginas 136-140)