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Esfera pública: constructo inicial

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2. DEMOCRACIA DELIBERATIVA E ESFERA PÚBLICA

2.3. Esfera Pública: uma Construção Habermasiana

2.3.1. Esfera pública: constructo inicial

O prefácio à obra “Mudança Estrutural da Esfera Pública” anuncia a realização de uma investigação limitada à estrutura e função do modelo liberal da esfera pública burguesa, discorrendo sobre sua origem e evolução. Portanto, o corte temporal da obra refere-se ao período do século XVIII ao XX, marcado por transformações na esfera estatal, com o predomínio de aparato administrativo e burocrático, palco para o surgimento de uma vida pública pela classe burguesa que até então não possui prestígio frente ao poder público, assim como a aristocracia.

O período na Europa, especialmente em França, Alemanha e Inglaterra, marca o desenvolvimento da imprensa, quando, desde a segunda metade do século XVII, os “jornais políticos”, assim denominados, tinham emissão diária. Notícias de âmbito da administração do Estado também eram publicizadas; decretos e portarias eram noticiados, o que logo se tornou útil aos interesses do poder público. Contudo, o público leitor era constituído pelas “camadas cultas” da sociedade, não estando ao alcance do “homem comum”. Com isso, “esta camada “burguesa” é o autêntico sustentáculo do público, que, desde o início, é um público que lê” (HABERMAS, 1984, p. 37).

A esfera pública burguesa refere-se a uma esfera pública política, que surgiu a partir de uma esfera pública literária, do estabelecimento de um público burguês que conversa sobre literatura e arte. Essa esfera pública literária não possui conotação política, mas expressa uma natureza pública, a partir do debate construído em torno das experiências privadas de subjetividade oriundas da esfera privada da família (LUBENOW, 2007).

Assim, uma esfera pública de ordem burguesa é compreendida como uma

esfera de pessoas privadas reunidas em um público; elas reivindicam esta esfera pública regulamentada pela autoridade, mas diretamente contra a autoridade, a fim de discutir com ela as leis gerais da troca da esfera fundamentalmente privada, mas publicamente relevante, as leis de intercâmbio de mercadorias e do trabalho social (HABERMAS, 1984, p. 42).

As pessoas privadas mencionadas por Habermas são formadas pelo público burguês, as famílias, em sua esfera íntima, que começam a se constituir enquanto um público leitor, culto e crítico, que discute e problematiza questões que infringem a centralização de poder do Estado. Sua origem provém de um público literário que intermedia, através da opinião pública, o Estado e as necessidades da sociedade. Inicia-se, então, um processo de constituição de uma esfera pública enquanto um campo de tensão entre Estado e sociedade, mas que não se configura enquanto uma instância política (HABERMAS, 1984).

A mudança ocorre, uma vez que a burguesia é considerada a primeira classe que exerce o poder independente do controle do Estado diferenciando-se de outras classes na história, dado que renuncia ao exercício direto do governo e reivindica o conhecimento sobre as ações do Estado. Isso contribuiu para dar um caráter público às relações entre Estado e sociedade, ou melhor, surge uma esfera constituída por indivíduos que buscam submeter decisões da autoridade estatal à crítica racional (AVRITZER; COSTA, 2004).

A burguesia se legitimava enquanto público crítico nos salões, cafés e associações que marcam o cenário da intelectualidade da época. Enquanto era excluída dos postos de comando do Estado, a burguesia assumia aos poucos todas as posições chave na economia e conquistava uma igualdade junto à nobreza nesses espaços onde a intelectualidade se fazia presente. Condições institucionais se faziam presentes para a organização da burguesia

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enquanto um público pensante e crítico que compunha a esfera pública: (1) igualdade de status para a formação de uma sociabilidade; (2) problematização de setores que até então não eram questionados; (3) público aberto que se constituía por leitores, ouvintes e espectadores, detentores de posses e de formação acadêmica. O “público” de fato não se fazia presente nestes espaços e era formado, sobretudo pela população rural e iletrada. Na Inglaterra, por exemplo, a formação escolar primária, quando existente, era inferior à percentagem de analfabetos:

(...) as massas não só em grande parte analfabetas, mas também tão pauperizadas que nem sequer poderiam comprar livros. Elas não dispõem de um poder de compra suficiente para ter acesso, ainda que modesto, ao mercado de bens culturais (HABERMAS, 1984, p. 53-4).

Concomitante a esse cenário, difundiam-se as revistas e os jornais dedicados à arte e à crítica cultural, que se transformavam em objeto de discussão nestes espaços fechados ao público intelectual burguês, ganhando publicidade temas como obras filantrópicas, melhorias no sistema de ensino, comportamento ético, polêmicas contra vício de jogo, fanatismo e péssimo gosto dos letrados, sabedoria de vida em relação à filosofia acadêmica, enfim, o público leitor o tem a si mesmo como tema (HABERMAS, 1984).

O que Habermas (1984) procura mostrar é que a partir dessa esfera pública literária, constituída a partir dos cafés, salões e associações literárias, uma crítica à cultura dominante é construída e, posteriormente, assume uma conotação política frente à sociedade aristocrática. Os jornais atuam como instrumentos de comunicação que favorecem a publicidade dessa crítica literária e cultural e acabam por propiciar um processo de discussão no qual questões políticas e econômicas também se fazem presentes (LUBENOW, 2007).

Portanto, inicia-se a emergência de uma esfera pública política no século XVIII como amadurecimento daquela esfera pública literária que se originava do século XVII, esta última marcada pelo predomínio do discurso literário construído com base nas experiências de subjetividade da esfera íntima. Surge então, uma esfera do social, na qual pessoas privadas constroem um discurso político e alcançam uma opinião pública crítica que entra em disputa com o poder público. Pode-se dizer que o desenvolvimento da esfera pública burguesa ocorre por uma tensão entre Estado e sociedade, sendo parte de um setor privado, do avanço de uma economia de mercado. Tal separação entre Estado e sociedade remete a uma transformação de cunho político e social quando comparada com a época feudal, caracterizada pela concentração do poder político e pela forte intervenção do Estado na economia e na sociedade. Com a esfera pública liberal burguesa, projeta-se uma mudança estrutural nas relações entre público e privado (HABERMAS, 1984).

É importante destacar que nesse período há a construção de um discurso racional- crítico com conotação política no âmbito da esfera pública burguesa. A construção de um discurso crítico frente ao aparelho estatal no início do século XVIII alcançou publicidade em artigos e jornais cada vez mais lidos. As ideias e assuntos discutidos foram baseados em interesses particulares, isto é, naqueles que atendiam as necessidades do público burguês (CALHOUN, 1990).

A partir da segunda metade do século XVIII, há reformas eleitorais em países como Inglaterra, Alemanha e França que permitem a participação política de camadas da população mais pobres como forma de compensar no âmbito político uma igualdade de oportunidades que não acontece no setor econômico. É neste período também, que o Estado assume cada vez mais funções, além daquelas já tradicionais, como defesa, manutenção da ordem, política de cobrança de impostos etc., o que provoca uma ampliação da prestação de serviços públicos e, consequentemente, uma reestruturação da sua atuação, aproximando-se de uma configuração de Estado-social. Medidas relacionadas à esfera do trabalho social, como compensação,

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proteção e indenização de grupos sociais mais vulneráveis social e economicamente, até então deixadas a cargo da iniciativa privada, passam a ser desempenhadas pelo Estado (HABERMAS, 1984).

A intervenção do Estado decorre da necessidade de uma função reguladora da economia de livre mercado, como forma de assegurar o sistema capitalista de produção e neutralizar os conflitos sociais que convergiam para o âmbito da esfera do Estado. Com isso, a base social da esfera pública burguesa se desestrutura, ou seja, setor público e setor privado se inter-relacionam e, consequentemente, ocorre a perda da função política crítica da esfera pública burguesa frente ao Estado (LUBENOW, 2007).

Nessa fase, a esfera pública tem um duplo efeito: por um lado, há uma ampliação da participação de cidadãos na vida pública, possibilitada pelo sufrágio universal e por medidas assumidas por um Estado-social e, por outro, ocorre a expansão da manipulação pelos meios de comunicação de massa que impacta a formação da opinião e do consenso racional e crítico e interfere nas funções da esfera pública (LUBENOW, 2007).

Com a emergência de uma sociedade industrial e com o processo de urbanização das cidades a partir da metade do século XIX, há uma polarização da vida social entre público e privado de modo mais demarcado. A esfera privada burguesa se resume cada vez mais aos círculos internos familiares e encontra-se dividida entre o tempo de lazer e o trabalho, em substituição àquela esfera pública literária, considerada referência no aspecto subjetivo para a formação de uma esfera íntima burguesa (HABERMAS, 1984).

Nesse período, também, a cultura burguesa que antes se manifestava nos salões, clubes e associações se tornou subordinada ao consumo e à esfera da produção do mercado. Inserida nos ditames do consumismo, a esfera burguesa se tornou apolítica. No lugar de uma esfera privada que ocasiona a formação de uma esfera pública literária, surge uma esfera pública do consumismo cultural fomentada pelos meios de comunicação de massa que interfere no comportamento da unidade familiar. A mudança de estrutura da família burguesa é marcada pela substituição das revistas literárias pelas revistas ilustradas de propaganda. “Quando a família perde a sua coesão literária, também o salão burguês fica fora de moda, ele que complementava as associações de leitura do século XVIII, tendo, inclusive, em parte, as substituído” (HABERMAS, 1984, p. 193).

A cultura assume uma prática de consumo e perde seu caráter crítico. Há o que Habermas (1984) denomina de uma “passagem de um público que pensa a cultura para um público que consome cultura” (p. 207). Essa diferença entre uma esfera pública literária em relação à esfera política perdeu o seu caráter específico. Agora, a esfera pública assume funções de propaganda e se torna apolítica, não mais sendo utilizada como um meio de influência política e econômica.

O rádio, a televisão e o cinema promovem gradualmente o desaparecimento da distância que o leitor possuía da literatura impressa, e também da distância que a privacidade da leitura requeria para a troca de ideias na constituição de uma esfera pública sobre o que havia sido lido. A forma de comunicação e o comportamento do público se modificam com a disseminação destas novas mídias, agora marcados por um público que se torna ouvinte e espectador do consumo de gostos e preferências, em substituição àquele público que argumentava, contradizia e discutia questões de ordem cultural e política (HABERMAS, 1984).

Assim, uma mudança estrutural na esfera pública burguesa se faz sentir na perda de coesão de um público pensante e na emergência de uma imprensa comercial de massa. A opinião pública formada não mais está relacionada como uma instância crítica em relação ao poder político, mas adquire um caráter manipulativo, sendo utilizada como bem de consumo (HABERMAS, 1984).

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Como consequência desta mudança, Habermas aponta para a extinção da esfera pública enquanto uma instituição política, e também para a despolitização da sociedade. Este último aspecto revela o caráter negativo da política nas sociedades capitalistas, excluindo da comunicação pública temas problematizadores no âmbito de uma esfera pública crítica que orientariam uma práxis emancipatória (LUBENOW, 2012).

Importante considerar que a perda da atuação crítica pela esfera pública burguesa não significa a inexistência de suas funções, mas sim sua reestruturação. No lugar da discussão pública orientada para a formação da vontade política, surge o exercício burocratizado do poder e da dominação, complementado por uma esfera de opinião pública com fins manipulativos. Os meios de comunicação adquirem proeminência e fragilizam a esfera discursiva dos participantes, agora cada vez mais definida pelo Estado, detentor de um aparato burocrático-administrativo (LUBENOW, 2007).

Portanto, tem-se a subversão da publicidade crítica para uma publicidade manipulativa e a consequente despolitização da esfera pública provocada pela crescente intervenção estatal e a influência dos meios de comunicação de massa. Conclui-se, então, que a esfera pública e os meios de comunicação de massa encontram-se intrinsicamente relacionados: os meios de comunicação são responsáveis pela despolitização da esfera pública e a produção do consumo de massa. A esfera pública, espaço onde se dão os debates para a formação da opinião pública e que detém o sentido crítico, sofre mudanças e, com isso, o sentido manipulativo predomina, dando lugar para uma esfera pública despolitizada. Esta última, ao ser dominada pelos meios de comunicação de massa, não consegue se legitimar enquanto elemento chave de uma teoria da legitimidade democrática (LUBENOW, 2012).

Todavia, a esfera pública burguesa trabalhada por Habermas em sua tese de livre docência não representa uma esfera pública emancipada da dominação e de intercâmbio de pessoas autônomas, capazes de influenciar as instituições políticas estatais. A ideia constitutiva da esfera pública burguesa portadora de uma publicidade crítica e racional revela- se como uma falsa consciência que esconde em si mesma o interesse de classe burguês (LUBENOW, 2007).

Percebe-se, então, que a questão de uma revitalização da esfera pública fica em aberto nesta obra de Habermas. A cultura política liberal não serviu de base para recuperar o potencial normativo ou encontrar uma forma de fundamentá-lo na configuração da repolitização da esfera pública. A construção de uma proposta que identifique estratégias em sociedades capitalistas necessárias à preservação da publicidade crítica na esfera pública constitui o ponto de partida de propostas alternativas à de Habermas (LUBENOW, 2007).

O segundo momento sobre a discussão de esfera pública em Habermas refere-se aos seus escritos na década de 1990, nos quais ocorre a retomada da questão chave que havia permanecido na obra anterior sobre a sustentação normativa de uma esfera pública não manipulada e não subvertida pelo poder. A resposta, segundo Habermas é construída com base em arranjos institucionais políticos do Estado, mas também na construção informal da opinião em esferas públicas autônomas (LUBENOW, 2007).

A configuração desta nova esfera pública é tematizada e discutida, sobretudo, pela teoria social nos anos 1990, com a redescoberta da sociedade civil, fruto de uma nova dinâmica política caracterizada pelo avanço da sociedade civil sobre o Estado. Surgem novas experiências democráticas e ocorre um aumento das organizações da sociedade no fortalecimento de uma esfera pública autônoma em relação ao aparato estatal. Esta nova dinâmica política constituiu um campo fértil para repensar categorias e renovar discussões sobre temas como democracia, sociedade civil, direitos civis, justiça social, dentre outros (LUBENOW, 2007).

Portanto, Habermas abandona o conceito de sociedade civil como identificação de sociedade burguesa, assim como realizado em sua tese de livre docência publicada na década

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de 1960. O novo significado de sociedade civil adotado pelo autor em seus escritos da década de 1990 corresponde às associações informais formadoras de opinião. Essas associações constituem esferas públicas autônomas que não fazem parte de um sistema político- administrativo no âmbito estatal, mas que conseguem influenciar politicamente os meios públicos de comunicação e de tomada de decisões. É mantida por Habermas a capacidade de a esfera pública se constituir como um espaço de comunicação, no qual emerge uma formação discursiva da opinião e da vontade política (LUBENOW, 2007).

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