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Jürgen Habermas

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2. DEMOCRACIA DELIBERATIVA E ESFERA PÚBLICA

2.2. Democracia Deliberativa: Principais Vertentes

2.2.1. Jürgen Habermas

Habermas desenvolve o conceito de deliberação baseado na teoria do discurso como forma de garantir a legitimidade das regras democráticas. Para a teoria democrática convencional, a legitimidade do governo democrático se dá por meio do voto, enquanto para Habermas o processo argumentativo entre cidadãos constitui o elemento identificador da democracia.

A democracia seria orientada pela ética do discurso e implicaria a participação igualitária de todos os interessados nas discussões públicas sobre as normas políticas que afetam a sociedade. Tal concepção delineada por Habermas rompe com as teorias liberais ao desconstruir a visão de democracia resumida nos direitos da vida privada, da propriedade, da liberdade de expressão e associação e da igualdade de todos os indivíduos perante a lei (COHEN; ARATO, 2000).

Três aspectos podem ser destacados a partir do pensamento habermasiano, os quais o distinguem das construções democráticas anteriores: (1) a crença em uma lógica peculiar de vida pública que constitui uma projeção da interação social característica do mundo da vida; (2) distinção entre a esfera pública literária e a esfera pública política, sendo a primeira caracterizada pela interação de pequenos grupos em salões, cafés etc. que ganham projeção e se generalizam no discurso público através dos meios de comunicação e da imprensa; (3) distinção entre pelo menos três países, como Inglaterra, França e Alemanha, no que concerne à construção da esfera pública política, a começar pela ascensão da burguesia na construção de espaços públicos de discussão literária (COHEN; ARATO, 2000).

Antes de discorrer sobre o constructo democrático em Habermas, é importante situar sua teoria social em um contexto mais amplo no diz respeito a uma geração de intelectuais críticos que compõe a denominada “Escola de Frankfurt”,1

originada dos intelectuais pertencentes ao Instituto de Pesquisa Social (IPS). O IPS é criado no âmbito da Universidade de Frankfurt com o intuito de promover a institucionalização de um grupo de pensadores alemães que no início do século XX se reúnem para discutir o marxismo e que mais tarde será denominado de Escola de Frankfurt (TENÓRIO, 2008a).

Constitui-se então, o que seria designado por teoria crítica, em contraponto à teoria tradicional, esta última entendida como o conhecimento baseado nos pressupostos das ciências naturais, entrelaçados com o pensamento positivista. De forma contrária, a teoria crítica estaria dedicada ao estudo dos fenômenos sociais, a partir da relação direta com as leis históricas do momento da sociedade estudada (TENÓRIO, 2008a).

A teoria crítica adota a perspectiva do seu ancoramento real na sociedade, intimamente relacionado com a produção de diagnósticos de tempo. A característica da teoria crítica é a permanente renovação, a permanente capacidade de analisar o momento histórico presente. O

1

A expressão “Escola de Frankfurt” surgiu apenas na década de 1950, após o Instituto de Pesquisa Social (IPS), que havia deslocado sua sede sucessivamente para Genebra, Paris e Nova York durante o regime nazista, retornar à Alemanha. O sentido da expressão “Escola de Frankfurt” foi moldado por alguns dos pensadores ligados à experiência da Teoria Crítica, em especial, aqueles que regressaram à Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, e que tiveram posições de direção no pós-guerra, tanto no IPS como na Universidade de Frankfurt. Horkheimer foi o principal representante da “Escola de Frankfurt”, permanecendo na direção do Instituto após a sua reinauguração em Frankfurt, quando tornou-se reitor da Universidade. Em 1958, Theodor Adorno o sucedeu na direção (NOBRE, 2003, p. 8).

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essencial é a produção de novos diagnósticos a partir da perspectiva teórica e prática de Karl Marx. Assim, o campo do conhecimento pela teoria crítica só tem fundamento se for constantemente reformulada e repensada de acordo com as condições históricas (NOBRE, 2008a).

O enfoque adotado pelos teóricos críticos recai sobre as condições emancipatórias socialmente existentes. Partem de um ponto de vista do próprio objeto social, suas análises e diagnósticos sobre as condições de possibilidade e sobre os obstáculos existentes à emancipação. Tais condições e obstáculos estão presentes na própria sociedade como transformações políticas, econômicas e culturais, e, necessariamente, influenciam o diagnóstico crítico voltado para a questão da emancipação (MELO, 2011).

A práxis emancipatória, a busca da relação entre teoria e prática, avança no sentido de não se prender ao paradigma produtivista, não mais no modelo fundamentado no trabalho. Os teóricos críticos buscaram avançar para além dessa perspectiva, reconstruindo o conceito de emancipação para explicar as novas formas de luta política e de mobilização cultural que configurassem o grande desafio das democracias (MELO, 2011).

Pertencente ao quadro de teóricos críticos da Escola de Frankfurt, especificamente da segunda geração de intelectuais, Habermas constrói sua teoria social como contraponto aos escritos da primeira geração de teóricos que adotaram certo pessimismo quanto à consolidação da democracia e da construção de uma razão emancipadora pelos sujeitos sociais. A obra “Dialética do Esclarecimento” 2

de Theodor Adorno e Max Horkheimer é representativa da primeira geração da Teoria Crítica:

A aporia com que nos defrontamos em nosso trabalho revela-se assim como o primeiro objeto a investigar: a autodestruição do esclarecimento. Não alimentamos nenhuma dúvida (...) de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor. (...) A disposição enigmática das massas educadas tecnologicamente a deixar dominar-se pelo fascínio de um despotismo qualquer, sua afinidade autodestrutiva com a paranoia racista, todo esse absurdo incompreendido manifesta a fraqueza do poder de compreensão do pensamento teórico atual (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 13).

Em síntese, o que o Adorno e Horkheimer desenvolvem é que a racionalidade que predominava nas sociedades modernas era de conformismo à realidade vigente e à dominação do sistema capitalista. Não haveria a possibilidade de uma razão emancipadora que orientaria ações de transformação social, pois esta já não mais encontrava fundamento na realidade (NOBRE, 2003).

Contudo, a justificativa para tal pessimismo é encontrada no cenário histórico em que a obra foi produzida. Nesse período, é importante ressaltar dois aspectos que foram decisivos para a produção dos modelos críticos: em primeiro lugar, a criação do IPS reuniu teóricos de diversas áreas do conhecimento, numa perspectiva interdisciplinar, com uma orientação comum que convergia na emancipação das relações sociais. Em segundo lugar, Horkheimer produziu seus modelos teóricos em um período caracterizado pelo enfraquecimento do movimento operário e pela destruição do socialismo da União Soviética, que a princípio não correspondia a um modelo de emancipação social. Soma-se a isso o cenário da época de ascensão e queda dos regimes totalitários, como o nazismo e o fascismo, além do desenvolvimento dos meios de comunicação de massa, da propaganda, da indústria do

2 ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro:

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entretenimento, o que possibilitou o controle da população pelos poderes estabelecidos e resultou na indiferença da sociedade frente à força do mercado (NOBRE, 2008b).

Sob esse diagnóstico, Adorno e Horkheimer não consideravam mais possível a transformação do sistema capitalista e a instauração do socialismo pela revolução do proletariado, tido como a única força política interna ao próprio sistema. Já não consideravam a relação entre teoria e prática nos parâmetros que o marxismo havia sido pensado e, a partir daí, tal relação seria permeada por conflitos e por tensões. Por mais dificuldades que a relação entre teoria e prática teria alcançado, não ocorreu o abandono por parte do teórico dos princípios mais gerais que caracterizam o campo da Teoria Crítica – o da orientação para a emancipação da dominação e a do comportamento crítico diante da realidade. A partir daí, inaugura-se o que hoje se denomina ainda nos círculos acadêmicos de Escola de Frankfurt (NOBRE, 2008a).

Desfazendo a visão pessimista da “Dialética do Esclarecimento” justificada pelo seu impacto na relação entre teoria e prática com o predomínio da racionalidade instrumental frente a uma razão emancipadora, Jürgen Habermas comporá um novo cenário para a sociedade do século XX. Construirá uma teoria social com ênfase no papel da democracia como resgate da autorrealização e da autodeterminação dos cidadãos como sendo capazes de organizar as relações sociais de forma livre e igual. A construção de uma sociedade democrática tornou-se uma questão para os teóricos críticos, pois a plena realização da liberdade e da igualdade permaneceu vinculada a uma sociedade do trabalho. Dessa forma, tornava-se necessária a produção de novos diagnósticos para a questão da democracia na época (MELO, 2011).

O rompimento com a visão pessimista da primeira geração da Escola de Frankfurt constitui a principal diferença da teoria social habermasiana. Sua postura otimista é refletida na própria construção da esfera pública, onde os indivíduos decidiriam sobre as ações sociais na perspectiva democrática, por meio do diálogo e do consenso (ARAGÃO, 1992).

Habermas também critica o desenvolvimento da Teoria Crítica pelos pensadores da primeira geração devido ao não alcance do materialismo dialético interdisciplinar. Por isso, promoverá uma mudança de paradigma da razão instrumental para a razão comunicativa que será de fundamental importância para o desenvolvimento do seu projeto crítico, tanto no âmbito teórico quanto prático. Seu propósito é a substituição da filosofia da consciência pautada na reflexão, na relação sujeito-objeto, pela filosofia da linguagem, do entendimento intersubjetivo, da comunicação, adotando desta forma, uma nova perspectiva teórica de análise (TENÓRIO, 2002).

Enquanto a razão instrumental é pautada pela relação monológica e autoritária entre o sujeito e o objeto, na razão comunicativa essa relação é intermediada pela linguagem entre os sujeitos, por meio de uma relação dialógica e participativa (ARAGÃO, 1992). A comunicação constitui o elemento fundamental da ação, sendo esta entendida não apenas como uma intervenção na realidade, o “fazer”, mas a realização de relações sociais em uma inter-relação (REPA, 2008).

A comunicação é entendida para além da troca de informações, isto é, definida como um tipo de interação social em que os objetivos das pessoas envolvidas ocorrem por meio de um acordo racional, do entendimento mútuo entre as partes, proporcionado pela linguagem para o alcance do consenso (REPA, 2008). A linguagem só adquire relevância se permite estabelecer relações com o sujeito e o mundo pautadas em processos de cooperação e interpretação, no qual os sujeitos buscam um acordo sobre como coordenar suas ações e alcançar seus propósitos. Quando os indivíduos estabelecem relações entre si e com o mundo, estas ocorrem não de forma direta, mas de maneira reflexiva (ARAGÃO, 1992).

A ação comunicativa se define como oposição à ação estratégica. Enquanto a primeira volta-se para o diálogo, para o entendimento sobre uma determinada situação, alcançado por

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meio de um acordo que leve ao consenso das definições; na segunda, o processo é coordenado por pelo menos um dos participantes da ação, por meio de decisões que refletem interesses próprios (ARAGÃO, 1992).

Para Habermas (1987), o entendimento significa a obtenção de um acordo entre os participantes na ação comunicativa acerca da validez dos argumentos, enquanto o acordo é definido como o reconhecimento intersubjetivo da validade da argumentação:

Un acuerdo alcanzado comunicativamente tiene que tener una base racional; es decir no puede venir impuesto por ninguna de las partes, ya sea instrumentalmente, merced a una intervención directa en la situación de acción, ya sea estratégicamente, por medio de un influyo calculado sobre las decisiones de un oponente. Ciertamente que pude haber acuerdos dos que objetivamente sean acuerdos forzados, pero lo que a ojos vistas ha sido producido por un influjo externo o mediante el uso de la violencia, no puede constar subjetivamente como acuerdo. El acuerdo se basa en convicciones comunes (HABERMAS, 1987, p. 369).

A proposta de Habermas é substituir o paradigma da racionalidade instrumental, fomentadora da ação estratégica, por um novo paradigma de racionalidade que permitirá aos atores sociais direcionarem suas diversas formas de argumentação em um espaço cooperativo, solidário de interpretação da realidade (TENÓRIO, 2002).

Cuando hablo de estratégico y de comunicativo no solamente pretendo designar dos aspectos analíticos bajo los que una misma acción pudiera describirse como un proceso de recíproca influencia por parte de oponentes que actúan estratégicamente, de un lado, y como proceso de entendimiento entre miembros de un mismo mundo de la vida, de otro. Sino que son las acciones sociales concretas las que pueden distinguirse según que los participantes adopten, o bien una actitud orientada al éxito, o bien una actitud orientada al entendimiento; debiendo estas actitudes, en las circunstancias apropiadas, poder ser identificadas a base del saber intuitivo de los participantes mismos (HABERMAS, 1987, p. 367-368).

A racionalidade comunicativa tem como base a argumentação, entendida como um tipo de fala nas quais os participantes tematizam suas pretensões de validez e passam a recusá-las ou desempenhá-las por meio de argumentos. As ações comunicativas são aquelas em que as atitudes dos participantes não são coordenadas por regras técnicas e pela eficácia, alcançando resultados egocêntricos, mas são realizadas por atos de entendimento, em busca de fins comuns (HABERMAS, 1987, p. 367).

As manifestações comunicativas estão inseridas em diversas relações com o mundo, a saber: objetivo (como conjunto de todas as entidades sobre as que são possíveis enunciados verdadeiros); social (como conjunto de todas as relações interpessoais legitimamente reguladas); subjetivo (como totalidade das vivências dos participantes da ação). As referências para o processo comunicativo estão presentes nesses três mundos, constituindo o marco de interpretação dentro do qual os participantes elaboram e alcançam as definições comuns (HABERMAS, 1987).

Em uma ação comunicativa, os indivíduos, ao proporem suas questões, precisam apresentá-las sob bases racionais, ou seja, sem o exercício do poder coercitivo, garantindo-se a todos têm direitos iguais a fala, a exporem seus argumentos através da razão, discursivamente. “Quem fala expõe suas ideias de maneira racional e quem ouve reage tomando posições motivadas também pela razão” (TENÓRIO, 2002, p. 77). Nesse tipo de ação social, as pessoas envolvidas chegam a um acordo para decidir suas ações, no qual o

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ajuste é alcançado pelo reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validade do discurso de cada um dos participantes.

O participante se mantém em uma orientação comunicativa se o que for por ele tematizado tiver validade. Precisa mostrar que a sua fala tem importância e merece reconhecimento dos demais participantes, ou seja, inicia-se um processo de argumentação, de discussão. Para Habermas, o importante são as condições e as regras para o desenvolvimento do processo de discussão que devem pressupor igualdade entre os participantes, liberdade para intervir na discussão e mobilizar os conteúdos, além de transparência pública das razões (REPA, 2008).

Assim, o acordo alcançado em relação aos problemas sociais discutidos pelas pessoas envolvidas ocorre por meio de um processo democrático deliberativo, construído a partir da assimilação de características tanto da perspectiva liberal quanto da republicana, por meio da teoria do discurso, nas formas da argumentação, da estrutura da comunicação linguística, enfim, da socialização comunicativa. Na perspectiva liberal, o processo democrático ocorre por meio do compromisso de interesses fundamentados nas linhas liberais, enquanto na concepção republicana a formação democrática ocorre por meio do autoentendimento ético- político em que o conteúdo da deliberação se faz por meio de um consenso entre os indivíduos participantes da ação. A teoria do discurso assimila elementos de ambos os lados, integrando-os no desenvolvimento do processo participativo deliberativo (HABERMAS, 2003).

A legitimação do processo democrático decorre dos procedimentos e pressupostos comunicativos no processo de formação democrática da vontade e da opinião pública, que, por sua vez, funcionam como canais de pressão e comunicação frente ao governo e à administração pública. Como a tomada de decisão política compete somente ao sistema político, as estruturas comunicativas oriundas das esferas públicas da sociedade civil emitem opiniões influentes e exercem pressão política ocasionando o direcionamento do processo decisório realizado pelo Estado (FARIA, 2000).

Para tanto, a institucionalização dos procedimentos e das condições de comunicação no âmbito da sociedade civil, bem como a sua inter-relação com as instituições políticas estatais dependem da concepção deliberativa da democracia sustentada pelo processo discursivo argumentativo entre cidadãos livres e iguais (FARIA, 2000).

A participação no processo deliberativo ocorre de forma ampla e inclusiva, compreendida como um processo de formação, de transformação de preferências individuais. Por meio de um processo de discussão com uma pluralidade de cidadãos, os sujeitos podem obter novas informações, aprender a partir de outras experiências diferentes de problemas coletivos ou, até mesmo, chegar a conclusões que as suas opções estão baseadas em preconcepções (VITALE; MELO, 2008, p. 227).

A deliberação ocorrerá no âmbito da esfera pública entendida como uma arena para a percepção, a identificação e a resolução dos problemas que afetam a sociedade. No processo deliberativo, a opinião e a vontade dos participantes adquirem uma formação institucionalizada ou apenas possuem um caráter informal nas redes da esfera pública política (HABERMAS, 2003).

A estrutura democrática proposta por Habermas pode ser entendida a partir da relação tipo centro-periferia. No centro está localizada a administração, o judiciário e a formação democrática da vontade política que compõem o núcleo do sistema político, enquanto na periferia encontram-se as esferas públicas compostas por associações da sociedade civil formadoras de opinião e de influência política (FARIA, 2000).

A relação centro-periferia constitui a base para o entendimento do modelo discursivo deliberativo proposto pela teoria habermasiana. A democracia é compreendida pela intersecção entre as decisões tomadas no nível do sistema político e a opinião pública,

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formada em esferas públicas periféricas. A legitimidade das decisões do sistema político está em refletir os anseios e problematizações da sociedade, tematizados nos espaços de discussão formadores da opinião pública. Para que tal legitimidade aconteça, o sistema político deve se manter conectado com as redes periféricas da esfera pública por meio de um fluxo de comunicação que capte os impulsos gerados pela vida cotidiana e os transmite aos órgãos competentes, buscando, desta forma, direcionar o processo decisório exercido pelo Estado (FARIA, 2000).

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