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Prólogo

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4. MECANISMOS DECISÓRIOS DE PARTICIPAÇÃO NO BRASIL E NA

4.1. Prólogo

Resolveu-se denominar “prólogo” esta seção devido ao seu caráter introdutório quanto à temática da participação na América Latina, antes mesmo de realizar uma análise de cunho político-institucional sobre os mecanismos de participação cidadã previstos em legislação constitucional do Brasil e da Argentina.

Isso porque a análise da democracia participativa em países latino-americanos está relacionada com a história das dificuldades da constituição democrática na região, tanto em sentido formal expresso pela democracia como regime político, quanto em relação às formas complementares de participação da sociedade e prática democrática, a partir das próprias bases sociais (GARCEZ, 2004).

Tal consideração pode ser justificada pelo passado monárquico fundado pelas colonizações espanhola e portuguesa, por regimes políticos oligárquicos pós-independência, e também pelos diferentes processos democráticos que marcam o século XX, como governos populistas e de partidos políticos, alternados por diversos regimes autoritários, com destaque para as ditaduras militares nos anos 1960 e 1970. Esse cenário político foi compartilhado por todos os países que hoje participam do Mercosul: Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai (GARCEZ, 2004).

Os processos de democratização iniciados no final do século passado são relativamente recentes e estão em pleno desenvolvimento, como também em fase de consolidação quando analisados à luz do contexto histórico dos países latino-americanos (GARCEZ, 2004).

Com o retorno da democracia, uma nova configuração na relação Estado-sociedade passa a ser construída, diferentemente daquela predominante nos regimes autoritários caracterizada pela repressão, clientelismo e cooptação. A atuação do Estado em períodos autoritários é reservada às ações de distribuição seletiva da renda. A sociedade é percebida como um conjunto de beneficiários, que se mantém dispersos e desarticulados. As esferas públicas, se existem, restringem-se à atuação apenas consultiva e legitimadora da estratégia política autoritária (DAGNINO; OLVERA; PANFICHI, 2006).

De forma contrária, com a democratização, a influência da sociedade civil, que era mínima sobre o Estado nos períodos anteriores, passa a assumir um papel significativo e com garantias constitucionais para deliberar politicamente e fiscalizar as ações estatais. A democracia e a cidadania sofrem um processo de ressignificação na América Latina e um novo projeto político democrático participativo é construído baseado nos princípios da expansão do exercício dos direitos, da abertura e institucionalização de esferas públicas com capacidades decisórias, mobilização e participação da sociedade, reconhecimento e inclusão das diferenças que promovem desigualdades sociais e culturais (DAGNINO; OLVERA; PANFICHI, 2006).

Há diferenças nos processos de democratização em cada país, tanto no que se refere aos atores políticos que fizeram parte destes processos, como em relação à própria história política e social que caracteriza o retorno da democracia. No Brasil, por exemplo, os movimentos populares conseguiram introduzir importantes dispositivos relacionados aos direitos sociais (universalização da saúde, da previdência social e da assistência social que juntas formam a seguridade social) e político-institucionais (descentralização e participação da sociedade como diretrizes das políticas sociais) com a promulgação da Constituição Federal de 1988. De forma contrária, no Chile o retorno democrático ocorreu mediante um

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pacto político que excluiu os movimentos sociais e manteve a Constituição anterior aprovada durante a ditadura militar de Pinochet em 1980. Na Argentina, a democracia ressurgiu logo depois da derrota na Guerra das Malvinas, o que ocasionou o enfraquecimento do poder militar de seguir governando o país. Assim como o Chile, não foram realizadas reformas na Constituição, tampouco ocorreu o fortalecimento de instituições políticas, além de não ter ocorrido a emergência de novos atores sociais capazes de promover transformações políticas estruturais (GARCEZ, 2004).

A consolidação democrática na América Latina teve como antecedentes processos históricos de longa data, marcados pela desigualdade econômica e exclusão social, de domínio e opressão tanto das classes populares, como também de populações originárias, primeiramente pelas metrópoles portuguesa e espanhola e, posteriormente, pelos próprios governos latino-americanos independentes. Foi somente no século XX que se conquistou um avanço na mobilidade social e na democratização dos sistemas políticos, dando maior importância a dimensão da cidadania (GARCEZ, 2004).

Inserido neste conjunto de antecedentes relacionados ao contexto histórico da América Latina pode-se reunir alguns aspectos relevantes na comparação entre Brasil e Argentina que merecem ser destacados, a fim de complementar e sustentar a discussão sobre participação cidadã nesses dois países.

O primeiro deles refere-se ao passado colonial. A América Latina é caracterizada como um continente marcado pela colonização, pela invasão da cultura europeia que exterminou povos originários, se fortaleceu da escravidão e se constituiu enquanto uma sociedade estratificada socialmente. Como colônia dependente e subordinada à metrópole, a América Latina é marcada com características muito fortes de exclusão social, de centralismo político, de elitismo e de autoritarismo. A desigualdade, a concentração de renda e de poder estão presentes na formação da sociedade latino-americana. Tal cenário contribuiu para identificar a política como “coisa de brancos”, ou seja, somente acessível às elites e por elas coordenada, o que promove a exclusão de uma massa de despossuídos no processo político decisório (ALBUQUERQUE, 2004).

A análise do processo de colonização na América Latina tem no clássico “Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda uma referência quando o assunto é a formação histórica e social dos países colonizados por Portugal e Espanha. Ao utilizar o que Antonio Candido denominou no prefácio à obra de “metodologia dos contrários”, Holanda (1995) examina os fundamentos da estrutura social e política, sobretudo brasileira, pela polarização de conceitos, como: trabalho e aventura; método e capricho; rural e urbano; impessoalidade e afetividade.

No caso de Brasil e Argentina, o tipo de colonização adotado por Portugal e Espanha, respectivamente, apresenta diferenças substantivas que marcaram o destino histórico das relações políticas e sociais nesses dois países. Isso pode ser sentido nos traços que caracterizam a origem ibérica na Europa e formam a herança do Brasil Colônia: personalismo que impacta na constituição de instituições públicas frágeis e em uma débil coesão social; ausência do princípio da hierarquia; exaltação do prestígio pessoal baseado no privilégio; repúdio ao trabalho regular; incapacidade de organização sólida das atividades; inclinação para a dominação e obediência cega às ordens (HOLANDA, 1995).

Duas éticas distintas são construídas na estratégia de colonização adotada por Portugal e Espanha: a primeira, denominada de “aventura” busca novas experiências, acomoda-se ao provisório e tem preferência por descobrir ao invés de consolidar raízes sólidas. Em resumo, a exploração colonial portuguesa seguiu o desleixo e o abandono: “Seu ideal será colher o fruto sem plantar a árvore” (p. 44). A segunda, de forma oposta, encontra no “trabalho” o seu elemento principal. Valoriza a segurança, a organização e o esforço, bem como possui uma rejeição ao imediatismo, o que ocasiona o adiamento do bem-estar. A colonização ocorreu

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como um empreendimento metódico e racional que prezou pelo esforço lento, pouco compensador e com maior persistência. “O trabalhador, ao contrário, é aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o triunfo a alcançar. ” (HOLANDA 1995, p. 44).

A dicotomia rural-urbano também sustenta a formação histórica latino-americana. Toda estrutura da sociedade brasileira, ao contrário das colônias espanholas, teve sua formação fora dos meios urbanos. Como argumenta Holanda (1995), não se constitui uma civilização agrícola como na América Espanhola, mas uma civilização de raízes rurais que encontra nas propriedades rurais o local privilegiado para o desenvolvimento da vida colonial. Faltou à colonização portuguesa aquilo que caracterizou a formação da América espanhola, ou seja, garantir um mínimo de poderio militar, econômico e político mediante a constituição de núcleos de povoação estáveis e ordenados para a fundação das cidades. Em resumo: “A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer a natureza (...) Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência.” (HOLANDA, 1995, p. 110).

Enquanto nas colônias espanholas a cidade consistia num instrumento de dominação, associado ao planejamento e ao zelo minucioso, os portugueses, por outro lado, fundaram suas colônias seguindo os benefícios imediatos, um curso natural da exploração, no qual privilegiaram o povoamento no litoral pela política de feitoria, o que acarretou o surgimento das cidades de acordo com um padrão irregular, ou melhor, ao “deus-dará”. Esta distinção quanto à forma como se estruturou a área urbana nas colônias por espanhóis e portugueses leva a outra dicotomia construída por Holanda (1995): a do ladrilhador e semeador, sendo o primeiro termo característico da América espanhola e o segundo, da portuguesa.

De forma geral, a contribuição trazida por Sergio Buarque de Holanda em “Raízes do Brasil” para a temática deste capítulo atenta para a nossa formação histórica desfavorável, sob o domínio português, quando comparado com a colonização espanhola. Além das características já mencionadas, a relação entre os setores público e privado também constitui um elemento diferenciador na construção de ambos os países. No caso brasileiro, as raízes ibéricas valorizam a cordialidade, a afetividade, a simpatia nas relações sociais, sendo extrapoladas para o ambiente público e político-institucional.

A importância atribuída à estrutura familiar, ao apego aos santos religiosos, são traços da nossa identidade que nos afastam da impessoalidade. Inclusive com o poder público seguimos um padrão de comportamento afetivo e pessoal propulsor da constituição de afinidades e de intimidades cujos efeitos relacionam-se ao patrimonialismo.

É somente em meados do século XIX que tem início a implementação de algumas medidas para a estruturação do meio urbano, ao contrário de colônias espanholas que tiveram um perfil de colonização diferenciado, não somente em relação à fundação das cidades, mas, sobretudo pela vida intelectual e cultural, o que reforça o contraste das Américas espanhola e portuguesa. Os entraves ao desenvolvimento de uma cultura intelectual no Brasil dizem respeito à postura lusitana de impedir a circulação de ideias novas que pudessem ameaçar o seu domínio. Até mesmo o convívio dos brasileiros com estrangeiros não era tolerado, pois podia incitar pensamentos e atos de rebeldia e insubordinação.

O segundo aspecto diz respeito à história política democrática de ambos os países. Segundo análise de Palermo (2009), Brasil e Argentina apresentam distinções relevantes que acabam por interferir na cultura política e identidade de ambas as sociedades. Se por um lado, a Argentina tem uma história democrática mais longa do que a brasileira com o envolvimento de “todos”, no Brasil a dimensão institucional é dominante, representando o lugar em que as interações entre os atores sociais são configuradas. Em compensação, no caso brasileiro, a inclusão social e política tem sido fraca no âmbito institucional, enquanto na Argentina, prevalece a dimensão inclusiva em detrimento da institucionalidade.

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Isto porque a política democrática brasileira até 1964 baseou-se na exclusão da população na vida política. O movimento principal da política deu-se entre elites no âmbito regional que adotaram uma postura centralizadora no poder. Já na Argentina, os setores subalternos detinham possibilidades reais de opinar, mesmo que o movimento principal da política tenha ocorrido em torno do eixo social envolvendo elites e os setores sociais populares (PALERMO, 2009).

Em resumo: enquanto o Brasil a participação seguia a regras do jogo político comandado pelas elites, o qual era caracterizado por cooptação e representação junto à população, na Argentina a participação popular desenvolveu-se na matriz movimientista (PALERMO, 2009).

O movimientismo é, a seu jeito, uma forma representativa, mas contm um potencial de destruição institucional extremamente poderoso. Entre outras razões, isso se dá porque a representação movimientista é tendencialmente autoritária e tem um pendor antidemocrático, e até totalitário. Ela tem um impulso endógeno de ocupar a “totalidade” e adota a fórmula populista- antagônica (p. 124).

O termo movimento é um jargão político argentino que possui conotação distinta no Brasil, pois apresenta duas ideias centrais diretamente relacionadas com referenciais políticos e sociais: (1) é altamente excludente porque auto postula-se como uma legitimidade da nação e da população; (2) constitui uma forma “não representativa” de representação (PALERMO, 2009).

Na Argentina, a democracia se construiu por regimes políticos populistas e um nacionalismo de sociedade que deixou um legado de atores políticos e culturas que moldaram a cultura política. No Brasil, de forma contrária, prevaleceu-se um padrão elitista- representativo, caracterizado por governos populistas responsáveis pela formação do Estado- nação e de instituições políticas.

(...) o nacionalismo argentino é um nacionalismo de sociedade, muito enraizado nos atores e grupos sociais, na cultura e nas identidades políticas, enquanto o brasileiro é um nacionalismo de Estado: é este, no imaginário social brasileiro, a expressão principal da nação (PALERMO, 2009, p. 127).

O terceiro aspecto que deve ser levado em consideração ao analisar instrumentos de democracia participativa em países como Argentina e Brasil guarda relação com a interrupção pelas ditaduras militares de um processo de mobilização popular e organização social nos setores sindical, campesino, estudantil, entre outros que estavam em curso na década de 1960 e visavam transformações estruturais de cunho socioeconômico.

No Brasil, estava em fase de planejamento um modelo de desenvolvimento fundamentado em políticas sociais redistributivas como, por exemplo, as Reformas de Base durante o governo de João Goulart (1961-1964) que reuniam um conjunto de iniciativas: reformas bancária, fiscal, urbana, administrativa, agrária e universitária. No plano político, sustentava-se o direito de estender o voto aos analfabetos e às patentes subalternas das Forças Armadas, além da defesa de medidas nacionalistas prevendo uma intervenção mais ampla do Estado na vida econômica e um maior controle de investimentos estrangeiros no país. Dentre todas as reformas almejadas, a do setor agrário assumia o papel de “carro-chefe” e objetivava eliminar os conflitos pela posse de terra e garantir o acesso à propriedade para os trabalhadores rurais. Tais mudanças, inclusive a nível constitucional, encontravam fortes resistências por parte de setores mais conservadores da sociedade e do próprio governo, não

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chegando a se concretizar devido à instauração de golpes militares durante os anos 1960 e 19703

(ALBUQUERQUE, 2004).

O quarto aspecto diz respeito ao processo de construção social que caracterizou a democratização, a partir do final da década de 1970. Apesar das diferenças que marcam o contexto histórico dos países do Cone Sul, como Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai, a luta contra as ditaduras proporcionou o surgimento de outras formas de organização social, tendo possibilitado a renovação do tecido social para além dos setores tradicionais (ALBUQUERQUE, 2004; PANFICHI; CHIRINOS, 2002).

Ou seja, surgem novos atores que colocaram em pauta novos temas, inicialmente concentrados a favor da anistia de presos políticos e pelos direitos humanos, sendo posteriormente ampliados para a problematização de questões particulares contra diversos tipos de exclusão que contribuem para a formação de um novo discurso centrado na ampliação dos direitos de cidadania. Com isso, uma nova cultura centrada nos direitos de participação começou a ser construída em busca de uma cidadania ativa mediante a reivindicação do que se denomina “um direito a ter direitos” que caracteriza, especialmente no caso brasileiro, a atuação desses novos atores sociais (ALBUQUERQUE, 2004; PANFICHI; CHIRINOS, 2002).

Esse aspecto, segundo Panfichi e Chirinos (2002), pode ser considerado um dos desdobramentos mais interessantes pós-regimes militares na América Latina no que diz respeito à emergência de novos atores sociais na defesa e na promoção de direitos de cidadania. Essas novas formas de associativismo civil rompem com um modelo homogeneizador de organização social vigente nas décadas anteriores e que alcançam sucesso em termos de governabilidade democrática quanto à inclusão participativa na esfera política decisória (PANFICHI; CHIRINOS, 2002).

O Brasil, nesse contexto, adquire referência quanto ao resgate do “público” refletido na inserção das instâncias colegiadas na gestão pública com um formato descentralizado e integrado, como às conferências e os conselhos gestores. Tais mecanismos que configuram a democracia participativa são considerados como verdadeiras inovações ou renovações democráticas por deslocar do âmbito do Estado para a sociedade o poder de decisão política. A institucionalização destas instâncias decisórias na administração pública com a promulgação da Constituição Federal de 1988 permitiu que a sociedade tivesse voz na expressão de suas inquietações e vez como um ator político que disputa poder e delibera sobre políticas públicas (DAGNINO; OLVERA; PANFICHI, 2006).

O quinto aspecto a ser destacado é que o retorno democrático nos países latino- americanos durante a década de 1990 sofreu impacto das reformas econômicas neoliberais financiadas pelo governo dos Estados Unidos, pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial com o objetivo de enfrentar os problemas econômicos e sociais que marcaram os anos 1980, a chamada “década perdida” para a América Latina (PANFICHI; CHIRINOS, 2002).

O programa econômico conhecido como Consenso de Washington foi implementado a partir de 1989 e assumia como pressuposto que a origem dos problemas na América Latina residia na estratégia anterior de industrialização por substituição de importações, caracterizada por um excessivo protecionismo estatal. Frente a isso, as reformas neoliberais tinham como finalidade promover uma maior eficiência na alocação de recursos produtivos mediante a redução da intervenção do Estado na economia. O papel econômico do Estado deveria ser redefinido e um novo tipo de relação com a sociedade passaria a ser construída (PANFICHI; CHIRINOS, 2002).

3 Informações disponíveis em:

http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/Jango/artigos/NaPresidenciaRepublica/As_reformas_de_base Acesso em

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Em outras palavras a estrutura econômica condiciona a atuação da sociedade civil que, por sua vez, influencia na construção dos direitos de cidadania e na consolidação da democracia. Com as reformas neoliberais, a América Latina aumentou o nível de concentração econômica, reduziu a inclusão social e, consequentemente, minou a ação coletiva de diferentes grupos da sociedade pela busca e fortalecimento de direitos sociais (PANFICHI; CHIRINOS, 2002).

Isso porque se do lado político-institucional o retorno democrático foi garantido, pelo lado da economia foram aplicadas políticas de ajuste estrutural; liberalização e desregulamentação dos mercados financeiro, monetário, comercial, trabalhista, fundiário etc. e, sobretudo o afastamento do Estado da atividade econômica. Os resultados em termos sociais e redistributivos foram insatisfatórios com o aumento da desigualdade de renda e da pobreza na região (PANFICHI; CHIRINOS, 2002).

Sobre essa contradição entre um modelo econômico neoliberal e a construção de um processo democrático que inclui a luta por direitos políticos e sociais, Dagnino, Olvera e Panfichi (2006) denominam de confluência perversa entre dois projetos políticos antagônicos (neoliberal e democrático). A noção de projetos políticos é utilizada pelos autores para “designar os conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que deve ser a vida em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes sujeitos” (p. 38). Tal definição enfatiza a associação entre cultura e política que implica em não reduzir as estratégias de ação política no sentido estritamente de implementação, de condições concretas de sua realização, mas também dos significados que produzem e integram matrizes culturais mais amplas.

A disputa da construção democrática na América Latina pode ser identificada pelo embate entre projetos políticos distintos denominados de “democrático participativo” e “neoliberal”. Ambos compartilham o que se pode chamar de um “patamar mínimo” de relação porque se desenvolvem no âmbito do Estado democrático de direito e ao longo do processo de democratização, quanto em um “patamar máximo” de oposição, ou seja, na radicalização da democracia, apoiada na ideia de participação decisória. Outro ponto extremo também pode ser percebido no caráter desigual entre eles: enquanto o neoliberalismo exerce forte influência no modelo econômico global, o que acaba por direcionar a atuação do Estado, o projeto democrático-participativo se sustenta sobre bases sociais pressionando o sistema político na luta por conquistas de direitos e de justiça social (DAGNINO; OLVERA; PANFICHI, 2006).

O projeto democrático-participativo é sustentado pela concepção de aprofundamento democrático e tem na participação seu elemento central. Esta última é entendida pelo compartilhamento de poder decisório do Estado em relação às questões de interesse público, ao contrário do desempenho de funções limitadas à consulta popular. Somado ao poder de tomada de decisão, busca-se também o exercício do controle social na provisão de maior transparência pública e responsabilização das ações do Estado (DAGNINO; OLVERA; PANFICHI, 2006).

Enquanto o projeto democrático-participativo encontra na sociedade civil o seu

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