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Joshua Cohen

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2. DEMOCRACIA DELIBERATIVA E ESFERA PÚBLICA

2.2. Democracia Deliberativa: Principais Vertentes

2.2.2. Joshua Cohen

Ao longo das últimas décadas, a proposta de radicalização da democracia ganhou força intelectual e política, o que pode ser explicado pela combinação entre ceticismo em relação à democracia representativa e a capacidade do sistema político em absorver as demandas dos cidadãos comuns (FUNG; COHEN, 2007).

A discussão teórica sobre a democracia deliberativa e suas práticas ganha destaque ao adotar como ponto de partida dois argumentos: (1) a constituição e a ampliação de espaços públicos comuns para a realização do debate político, tendo em vista a fragilidade na resolução de diversos problemas – desemprego, educação, saúde, pobreza, habitação, segurança, prestação de serviços sociais etc. –, por parte somente da administração pública; (2) a defesa pela tomada de decisão coletiva por parte dos cidadãos por meio da participação direta em discussões públicas justificada pela sua experiência local e saber informal (COHEN; SABEL, 1997).

A noção de democracia deliberativa está enraizada no ideal de uma associação democrática sustentada na discussão pública e na racionalidade dos argumentos entre os cidadãos. A motivação para a participação está em enfrentar problemas comuns por meio de uma solução coletiva baseada no processo decisório deliberativo. É claro que nesse processo, os cidadãos possuem diferentes interpretações e importâncias quanto ao conteúdo das considerações realizadas por seus pares, o que também acarreta discordâncias no encaminhamento das decisões (COHEN, 2014).

A igualdade entre os cidadãos constitui um dos valores da democracia deliberativa. Os envolvidos no processo de discussão detêm iguais condições de exporem suas opiniões, traçarem perspectivas, apontarem críticas e proporem soluções, desde que sustentadas no argumento racional. A igualdade, como condição do processo deliberativo, guarda relação com a distribuição de poder e dos recursos que constroem o processo decisório em torno de uma autoridade compartilhada (COHEN, 2014).

O ideal do estabelecimento de uma modalidade deliberativa para a democracia passa pela consideração de três aspectos: (1) necessidade de definição de uma agenda com propostas de soluções alternativas para o enfrentamento de problemas locais; (2) legitimidade dos resultados sustentados no consenso entre cidadãos, com respeito à igualdade e à liberdade dos participantes; (3) escolhas coletivas realizadas de forma deliberativa e aceitação de propostas baseadas na razão, no melhor argumento, tendo por objetivo apoiá-las ou criticá-las (COHEN, 2014).

A proposta estaria na construção de um projeto político de democracia radical denominado directly-deliberative polyarchy (poliarquia diretamente deliberativa) que é expressa pela constituição de arranjos políticos participativos direcionados para a tomada de decisões coletivas por parte dos cidadãos por meio do exercício direto do poder na resolução de problemas comuns (COHEN; SABEL, 1997).

A institucionalização das “poliarquias diretamente deliberativas” transforma o papel e o funcionamento das instituições poliárquicas convencionais, que são entendidas como sistemas democráticos governamentais (democracia representativa) e que asseguram direitos,

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liberdades e oportunidades para uma efetiva participação e influência direta sobre as decisões políticas (ABU-EL-HAJ, 2014).

Robert Dahl (2005), autor dessa terminologia, afirma que nenhum regime político pode ser considerado plenamente democratizado, preferindo, dessa maneira, denominá-los de poliarquias. Significa dizer que os regimes políticos democráticos representariam graus de democratização, mas não sistemas políticos que alcancem em sua maturidade e amplitude os valores ideais da democracia. Assim, poliarquias são pensadas como regimes incompletos do ponto de vista democrático ou em outros termos constituem sistemas políticos popularizados (inclusivos do ponto de vista político) e abertos à contestação pública.

A poliarquia como regime político democrático é baseado em três princípios, assentados em oito procedimentos:

I. Igualdade política (inclusão): (1) transformar as preferências políticas dos cidadãos em votos; (2) garantir a contagem de votos atribuindo pesos iguais a cada um deles; (3) declarar vencedora a alternativa de representação política que receber o maior número de votos; (4) permitir a inclusão de alternativas políticas, além daquelas colocadas em votação; (5) garantir acesso à informação antes da votação;

II. Competição entre preferências partidárias eleitorais torna-se possível sob duas condições: (6) alternativas mais votadas em eleições implicam no deslocamento de todas as outras inseridas na agenda política; (7) eleitos possuem o direito de implementar as suas alternativas políticas;

III. Responsabilidade pública: (8) vencedores do processo eleitoral serão obrigados a implementar seus programas ou qualquer ajustamento deverá levar em considerar os procedimentos anteriores (ABU-EL-HAJ, 2014).

Pode-se considerar a poliarquia um regime político eficaz por: (1) garantir as liberdades individuais; (2) permitir a canalização das preferencias políticas; (3) facilitar a participação e acesso às decisões governamentais; (4) ampliar a vida política e (5) demonstrar menor violência na condução do poder. Para que a poliarquia se estabeleça é necessário aos regimes políticos: (1) liberdade para formação de organizações e filiação dos indivíduos; (2) liberdade de expressão; (3) direito ao voto; (4) elegibilidade; (5) competição política, sendo a escolha realizada pela preferência da maioria dos eleitores; (6) acesso à informação; (7) realização de eleições livres e justas; (8) existência de instituições governamentais que elaboram políticas de acordo com as preferências dos eleitores (ABU-EL-HAJ, 2014).

A poliarquia segue os preceitos de uma democracia representativa em que a autoridade decisória é realizada por representantes políticos eleitos que exercem o poder decisório sobre os problemas comuns. Os cidadãos, por meio do voto, elegem representantes em uma competição eleitoral para assumir a função legislativa e executiva do poder político. Já na democracia direta, modalidade democrática norteadora das “poliarquias diretamente- deliberativas”, os cidadãos detêm a capacidade de decidir substancialmente questões que não necessariamente devem ser tomadas somente por representantes políticos eleitos para assumir cargos políticos (COHEN; SABEL, 1997).

Dessa forma, é baseada nessas considerações sobre a poliarquia que Cohen e Sabel (1997) formulam a concepção de “poliarquia diretamente deliberativa” como uma forma de transformar o papel e o funcionamento das instituições políticas tradicionais. Assim, constrói- se um projeto democrático ideal caracterizado pela institucionalização de arranjos políticos democráticos que detêm o poder em caráter direto e deliberativo, canalizado para o enfrentamento de problemas comuns de âmbito local.

Contudo, é importante considerar que a modalidade do exercício direto da democracia de forma abrangente em sociedades modernas pode ser percebida como um ideal a ser alcançado e, com isso, faz-se necessário destacar três considerações: (1) em um sistema político democrático em larga escala, o estabelecimento de uma democracia direta exigirá a

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ampla participação da população na tomada de decisões, o que se torna organizacional ou administrativamente impossível de se concretizar; (2) ao garantir a participação, a deliberação em sociedades pluralistas dependerá de certo grau de homogeneidade entre os cidadãos para o estabelecimento do processo deliberativo; (3) a tomada de decisão política de forma direta requer o seu estabelecimento em um nível de escala local, sendo mais facilitada a garantia de igualdade entre os cidadãos (COHEN; SABEL, 1997).

As “poliarquias diretamente deliberativas” ao permitirem a participação dos cidadãos sem distinção, não só contribuem instrumentalmente para o exercício da democracia no alcance de decisões coletivas, mas também fornecem valores políticos intrínsecos àqueles que dela participam, como a inclusão, a igualdade e a liberdade. Ao participarem, os cidadãos adquirem ideias políticas, aprendem a debater, a tratar os problemas por meio da discussão pública, compartilhando posições e transformando suas percepções. A democracia deliberativa, dessa maneira, reúne informações dispersas para a resolução de problemas comuns e proporciona uma aprendizagem coletiva (COHEN; SABEL, 1997).

O processo de tomada de decisão coletiva pode ser agregador ou deliberativo. Agregador quando uma decisão democrática leva em consideração os interesses de cada pessoa, dando um peso maior às preferências individuais no processo decisório. A deliberação, por sua vez, sustenta suas decisões na argumentação livre entre iguais: os interesses individuais, sem o apoio de considerações que convençam os participantes da sua importância, não têm peso (COHEN; SABEL, 1997).

Ou seja, as decisões devem ser apoiadas em razões aceitáveis para os envolvidos no processo de discussão. O fato de as decisões serem apoiadas por uma maioria dos cidadãos que decidem com base em seus interesses não é suficiente para torná-las legítimas. Portanto, a deliberação permite uma prática democrática de discussão livre entre os cidadãos, estabelecendo condições favoráveis para expressão de ideias, associação, discussão e exercício do poder político (COHEN; SABEL, 1997).

Apesar das virtudes, há críticas ao projeto da “poliarquia diretamente deliberativa”, sobretudo quanto à sua efetividade em sociedades modernas com regimes democráticos de ampla escala populacional. Nessa situação, o processo deliberativo fica comprometido, devido à heterogeneidade de interesses e preferências individuais, fragilidade coordenativa, déficit participativo muitas vezes explicado pela falta de confiança nas instituições políticas, ingerências de interesses de mercado em detrimento de condutas que valorizem o espírito público (COHEN; SABEL, 1997).

A exceção estaria na constituição de bolsões de “poliarquias diretamente deliberativas” de abrangência local que favoreçam o contato direto do cidadão com a esfera pública e sejam capazes de incitá-los à mobilização e à participação coletiva no enfretamento de problemas de ordem pública. A proposta reside em tornar a prática democrática atraente do ponto de vista deliberativo e, com isso, aumentar a capacidade coletiva de resolver os problemas comunitários. Nesse aspecto, um dos entraves estaria concentrado em traduzir as prioridades individuais em soluções acordadas e de alcance comum que abarquem a diversidade de considerações (COHEN; SABEL, 1997).

Outro entrave relacionado reside na coordenação entre as “poliarquias diretamente deliberativas” e as instituições políticas tradicionais (sistema político). No âmbito dos arranjos de participação, as decisões e as soluções estão baseadas nos conhecimentos locais e nos valores territoriais, ao contrário da replicação de medidas que obtiveram êxito em demais localidades. Os problemas locais são resolvidos através da participação direta na obtenção das informações relevantes oriundas dos cidadãos sobre os problemas vivenciados no dia a dia. Por isso a importância em estabelecer uma coordenação com as unidades políticas locais, nas quais os tomadores de decisão, legisladores e chefes do poder Executivo local podem adotar

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as alternativas acordadas nas “poliarquias diretamente deliberativas” para uma melhor provisão de ações e serviços da administração pública (COHEN; SABEL, 1997).

Ao levar em consideração as dificuldades, faz-se necessária uma reflexão sobre a estrutura básica adequada de funcionamento das “poliarquias diretamente deliberativas”, sobretudo as suas regras de funcionamento; o alcance das decisões; a potencialidade decisória frente ao sistema político e questões sobre a inclusão de membros participantes.

Podem-se elencar alguns elementos a serem considerados na constituição de “poliarquias diretamente deliberativas”:

(1) a primeira e mais fundamental diz respeito à garantia do caráter democrático e deliberativo, assegurando também que reivindicações sejam realizadas e consigam influenciar as decisões políticas;

(2) a deliberação auxilia no respeito mútuo entre os cidadãos que precisam considerar as razões expressas pelos demais participantes e confiar no exercício do poder deliberativo, como a melhor forma de se alcançar soluções;

(3) a participação deve ser guiada pela defesa de propostas baseadas no argumento racional em prol do bem comum, e não simplesmente como referência aos interesses próprios. São da natureza do processo deliberativo o compartilhamento de informações e a ponderação dos melhores argumentos, ocasionando, dessa maneira, uma mudança de conduta pelos participantes;

(4) a participação deve ser aberta, livre e com igualdade entre os cidadãos. Dessa forma, ao ser aberta ao público, há heterogeneidade social e, consequentemente, pluralidade de perspectivas. A composição de um arranjo institucional também pode refletir grupos com demandas próprias, relacionadas à identidade local na qual o espaço é estabelecido. Importante reiterar que a natureza e o processo deliberativo desses espaços devem ser de enfrentamento de problemas que atingem a comunidade local e alcançam reconhecimento, pois entende-se que somente soluções oriundas do sistema político são consideradas insuficientes (COHEN; SABEL, 1997).

Os elementos que moldam a estrutura das “poliarquias diretamente-deliberativas” têm como principal objetivo o alcance do consenso racionalmente motivado no processo de discussão entre os cidadãos. Caso não seja alcançado, estratégias são traçadas para a tomada de decisão coletiva, como a votação pela escolha da maioria. A questão aí envolvida diz respeito ao processo de aprendizagem participativo que os cidadãos adquirem, em respeitar a igualdade e a autonomia individual dos demais participantes, assim como o compromisso que precisa ser assumido de encontrar soluções para problemas que promovam o bem comum. Esse último constitui a finalidade principal da deliberação e consiste em obter um acordo entre todos os que estão empenhados no processo decisório deliberativo, levando em consideração a igualdade e a pluralidade dos participantes (COHEN, 2014).

Uma questão que esbarra na condição igualitária nas esferas públicas são os limites estipulados entre as dimensões “privada” e “pública” pelos participantes que orientam a construção dos argumentos no âmbito da esfera pública. Tal questão estabelece relação, por exemplo, com as disparidades sociais existentes na sociedade que acabam por minar a condição de igualdade, visto que desigualdades materiais podem gerar desigualdades políticas e, consequentemente, causar interferência no equilíbrio das relações de poder do processo deliberativo (COHEN, 2014).

Em síntese, a proposta da democracia deliberativa se apoia na competência prática dos cidadãos enquanto usuários dos serviços públicos e sujeitos políticos participantes no processo deliberativo sobre questões públicas. Soma-se a isso, o fato de que as “poliarquias diretamente deliberativas” constituem espaços públicos que geram oportunidades para os cidadãos estarem em contato direto com os administradores públicos, visando à melhoria da qualidade da provisão de ações e serviços públicos, além de fortalecer a responsabilização do

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Estado. A inserção do conhecimento local aliado à expertise técnica possibilita que novas perspectivas e soluções inovadoras sejam traçadas, além de dar destaque àquelas propostas oriundas de segmentos excluídos e marginalizados socialmente (FUNG; COHEN, 2007).

Entretanto, limitações são percebidas na concretização do ideal proposto por esses espaços de participação de democracia direta: a primeira delas diz respeito à participação de todos os cidadãos em um arranjo institucional deliberativo, e a segunda é a viabilidade de se garantir a participação de um mesmo cidadão em todos esses espaços que representam diversas áreas da administração pública. O que se torna praticável é a oferta de oportunidades ao cidadão pelos governos, sem qualquer distinção, para a participação nas deliberações diretas, e, ao mesmo tempo, a determinação de que os cidadãos possuam relação de comunicação ou se façam representar frente aos demais que não estejam diretamente envolvidos no processo de tomada de decisão (FUNG; COHEN, 2007).

Um problema gerado nesse processo de viabilização da democracia direta em arranjos institucionais deliberativos consiste nas desigualdades potenciais que se podem gerar, devido ao fato de àqueles que participam se diferenciarem em termos de capacidade deliberativa e recursos disponíveis daqueles que não participam e, consequentemente, as decisões geradas poderem servir somente aos interesses dos que ali se fazem representar (FUNG; COHEN, 2007).

Para finalizar, destacam-se alguns desafios que se fazem sentir no desenvolvimento da democracia direta, valorada pelos arranjos participativo-deliberativos:

(1) estabelecer a relação entre a democracia representativa e a democracia direta. Os espaços públicos deliberativos não substituem as instituições políticas tradicionais, mas podem transformá-las e fortalecê-las quanto à responsabilização pública e a qualidade dos serviços prestados. A cooperação entre sistema político e arranjos participativo-deliberativos formaria uma base política altamente informada, mobilizada e ativa para o exercício da cidadania;

(2) ampliar o alcance da democracia direta. Os cidadãos que participam da construção de soluções para o enfrentamento de problemas públicos locais encaram o desafio de se engajarem cada vez mais nas esferas públicas informais mais amplas e servirem de canais de comunicação entre as “poliarquias diretamente-deliberativas” e a administração pública local; (3) a democracia direta precisa alcançar uma forma singular de democracia. Isso acontecerá quando as diversas esferas públicas informais constituídas na sociedade e o sistema político representativo estabelecerem conexões para uma melhor resolução de problemas sociais (FUNG; COHEN, 2007).

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