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8 O EQUÍVOCO LEGISLATIVO DEMANDANDO A APLICAÇÃO DO

8.4 As Consequências do Mau Trabalho Legislativo

8.4.1 O eventual desapego à lei

Perigoso, em última instância, para a própria Democracia, mas citado cada vez mais frequentemente por doutrina de excelência, o aqui denominado “eventual desapego à lei” encontra fundamento nos problemas que acima se detectou no trabalho de feitura das normas jurídicas – a omissão, a incorreção e a imprecisão legislativas, como se passa a demonstrar.

Maria Garcia abre um dos capítulos de sua obra “Desobediência civil - Direito fundamental”158 com uma citação que fala por si a respeito do que se está querendo

dissertar: “Se a lei contiver erros de tal ordem que nos obrigue a ser um instrumento de injustiça para alguém, e se somente isso for o caso, então eu digo, viole a lei”.159

Na mesma obra, Maria Garcia segue afirmando que “o homem é um ser para a liberdade, mas, quando em sociedade, defronta-se com a autoridade, com o Poder do Estado e com a lei”.160E, para ela, “é o moderno Estado de Direito que explica o

estabelecimento do princípio da legalidade”.161 Mas, adverte:

[...] a lei passou a ser, em nossas complexas estruturas sociais um simples meio técnico de organização coletiva, de modo que pode não só fazer nenhuma referencia à justiça, senão, muito mais, pode também se converter num modo de organização antijurídico, num modo de perversão do ordenamento.162

Comenta Regis Fernandes de Oliveira, citado por Maria Garcia, que:

Há leis tão absurdas casuísticas e desprovidas de sentido que fatalmente não são obedecidas. Passa a ser importante a manutenção da desobediência. Daí denominada desobediência civil, que significa uma desqualificação do detentor do poder. Não se aceitam mais as ordens

158GARCIA, Maria. Desobediência civil

– direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 240.

159THOREAU, 1964, apud GARCIA, Maria. Desobediência civil – direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 240.

160GARCIA, op. cit., p. 243-244. 161Ibid., p. 246.

expedidas porque falta legitimidade ao governante. As ordens passam a ser descumpridas com a aquiescência de toda a comunidade.163

O próprio Miguel Reale, citado por Maria Garcia, admite que “infelizmente” pode haver as leis nascidas puramente do arbítrio ou de valores aparentes que só o legislador reconhece.164

Daí o problema: o da obediência ou não às leis destituídas de fundamento. A feitura da lei encontra-se polarizada no Poder Legislativo e, pelo princípio da representatividade, existe uma presunção de que ela é elaborada pelos cidadãos – na pessoa de seus representantes políticos. Mas essa representação política vem revelando-se de todo insuficiente para a satisfação de seus objetivos, em especial na realização e na defesa da cidadania. Isso porque o atual representante do cidadão no Poder Legislativo atua com independência, não estando sujeito a qualquer instrução ou determinação de seu eleitor, e muitos países, como o Brasil, sequer adotam o instituto de revogação de mandato, chegando-se à constatação de uma completa dissociação entre a vontade do representante e do representado, sem compromisso político para com os eleitores.165

Constata-se, em virtude disso, a insuficiência deste processo legislativo para a garantia da cidadania, que requer, assim, formas mais atualizadas na participação no poder, o que vale dizer mais atualizados direitos e formas de garantia.166

8.4.2 O ativismo judicial

Ora, como outra consequência natural do mau desempenho do legislador, surge o ativismo judicial. O Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo Walter de Almeida Guilherme, ao ser indagado sobre o que seria ativismo judicial, afirmou que:

O ativismo tem um lado positivo que é preencher as lacunas da lei quando o próprio sistema jurídico permite, como é o caso do Mandato de Injunção para obrigar o Executivo a enviar um projeto ou o Legislativo a votar. Ativismo judicial não é nada mais que isso: um juiz decidindo na ausência da lei quando ele é autorizado a fazê-lo. Fala-se de ativismo quando o

163OLIVEIRA, 1988, apud GARCIA, Maria. Desobediência civil

– direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 248.

164REALE, 1953, apud GARCIA, Maria. Desobediência civil – direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 248.

165GARCIA, Maria. Desobediência civil

– direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 257.

Judiciário atua numa área que aparentemente não é dele, mas a própria Constituição permite por meio da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade, por exemplo.167

De acordo com Luís Roberto Barroso168:

O ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo, de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva.

E segue afirmando que “o ativismo judicial, por sua vez, expressa uma postura do intérprete, um modo proativo e expansivo de interpretar a Constituição, potencializando o sentido e alcance de suas normas, para ir além do legislador ordinário”, tratando-se “de um mecanismo para contornar, bypassar o processo político majoritário quando ele tenha se mostrado inerte, emperrado ou incapaz de produzir consenso”, concluindo que “os riscos do ativismo envolvem a legitimidade democrática, a politização da justiça e a falta de capacidade institucional do Judiciário para decidir determinadas matérias”.169

Para Elival da Silva Ramos,

Por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Essa ultrapassagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional se faz em detrimento, particularmente, da função legislativa, não envolvendo o exercício desabrido da legiferação (ou de outras funções não jurisdicionais) e sim a descaracterização da função típica do Poder Judiciário, com incursão insidiosa sobre o núcleo essencial de funções constitucionalmente atribuídas a outros Podres.170 E continua o mesmo autor a informar que, “se no positivismo clássico a interpretação se subsume à vontade do legislador”, de outro lado, “no positivismo renovado o que prevalece é a vontade da lei, mas contando também com a vontade do intérprete”.171

167GUILHERME, Walter de Almeida. Entrevista concedida ao site Consultor Jurídico. Disponível em: <www.conjur.com.br>. Acesso em: 30 nov. 2011.

168BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20090130-01.pdf>. Acesso em: 09 dez. 2011.

169Ibid.

170RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial - parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 308.

Ainda, segundo o mesmo autor,

[...] o primeiro e principal dos parâmetros fornecidos pelo próprio ordenamento jurídico para a identificação do ativismo judicial diz respeito à exigência de que toda interpretação constitucional seja compatível com amplitude de sentidos projetada pelo texto da norma.172

No Brasil, segundo se noticia, “a jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal Federal, entretanto, indica um avanço do ativismo judicial”.173

Dentre os fatores de fomento deste ativismo judicial brasileiro, pode se citar o modelo de estado intervencionista, “que leva juízes e tribunais a revelar, em algumas situações, a existência de limites impostos pelo próprio ordenamento cuja atuação lhes incumbe”.174 E um segundo fator de fomento do ativismo judicial no

Brasil, este essencialmente ligado ao que se propôs a estudar neste trabalho, é, segundo o mesmo Elival da Silva Ramos, a denominada principiologização do Direito, “abrindo as portas do sistema jurídico ao subjetivismo das decisões judiciais”, resultando na produção de julgados “ao sabor das preferências axiológicas de seus prolatores”.175

Bem, como se viu nas questões postas para pensamento a respeito do ruim trabalho feito pelo legislador, a orientação sobre a solução dos litígios tem sido dada pelo Poder Judiciário, de modo proativo nas situações de retração e contradição entre os pronunciamentos do Poder Legislativo e a vontade popular.

Daí que o surgimento de precedentes verdadeiramente regulatórios de determinadas situações é inevitável ante a maneira como vem se portando o legislador nacional.

É lógico que se tem em mente a advertência de Maria Helena Diniz de que “ao Poder Judiciário está reservada a grande responsabilidade de adequar o direito, quando sua vigência social apresenta sintomas de inadaptabilidade em relação à realidade social, mantendo-o vivo”, mas que “desta afirmação não se infere que o juiz tenha liberdade onímoda”176, ou ilimitada.

172RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial - parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 310.

173Ibid., p. 313. 174Ibid., p. 314. 175Ibid., p. 314.

176DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 501.

Sabe-se que a aplicação do Direito é, de acordo com Miguel Reale, “uma decorrência de competência legal”.177

Assim, “o juiz, ao aplicar o Direito, não deve exceder aos ditames jurídico- legais”, nas palavras de Maria Helena Diniz178, que, reforçando sua ideia, afirma:

Dentro desse quadro da ordem jurídica, o poder de jurisdição do magistrado tem uma zona de liberdade, dentro da qual pode exercer sua atividade. A liberdade de julgar só é garantida nos limites da órbita jurídica que lhe corresponde; se o órgão judicante ultrapassar esses marcos, invade órbitas jurídicas alheias e sua atividade torna-se uma perturbação da ordem, um abuso de direito.179

Mesmo assim, não há como se negar a produção judicial cada vez mais intensa a respeito de temas em que se omite, erra ou se faz imprecisa a lei, até contra legem, como é o caso da fixação das indenizações punitivas no Brasil, que, em tese, não encontram respaldo legal expresso.

177REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1976. p. 291.

178DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 501.