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6 ALGUMAS TENDÊNCIAS DO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL

6.1 Noções Gerais

Conforme visto, a lei, em sentido lato, é, em regra, no sistema de civil law, a fonte primacial do Direito, atuando praticamente com exclusividade na criação das normas jurídicas em se tratando de países que adotam o sistema de Direito romano- germânico.98

Ocorre que, diuturna e hodiernamente, a produção legislativa – lenta, burocrática, omissa, imprecisa e equivocada – vê o crescente e pujante fortalecimento da jurisprudência nesse sistema de Direito, seja pela imediatidade no contato dos juízes com as lides, seja pela maior rapidez na adaptação das decisões judiciais às necessidades sociais.

Nesse sentido, o processo hermenêutico da legislação – diga-se, imprescindível ao processo de subsunção do fato à norma inerente ao sistema da civil law – levado a cabo pelas cortes e seus juízes se intensificou na mesma proporção do aumento da quantidade e complexidade das relações jurídicas açambarcadas pela sociedade, atuando a criação jurisprudencial no preenchimento de lacunas, disciplinando novas áreas carentes de atuação legislativa e até solucionando lides para as quais inexiste qualquer positivação legal.

Não fosse por tudo isso, o próprio processo globalizador contribuiu de forma determinante para que os sistemas jurídicos mundiais passassem a se comunicar reciprocamente, identificando suas carências e, simultaneamente, buscando saná- las através da incorporação de institutos jurídicos outrora repudiados ou não adotados.

Definindo esse processo globalizador, Jürgen Habermas99 aduz que:

A globalização pressiona o Estado nacional a se abrir internamente para a pluralidade de modos de vida estrangeiros ou de novas culturas. Ao mesmo tempo, ela limita de tal modo o âmbito de ação dos governos nacionais, que o Estado soberano também tem de se abrir para fora diante de administrações internacionais.

98DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 87.

Assim, as sociedades reguladas pelo sistema de Direito romano-germânico, sopesando a funcionalidade existente no instituto jurídico do precedent, tanto do tradicional common law inglês como do moderno common law estadunidense, passaram a utilizá-lo, primeiramente, como corretivo das mazelas verificadas em seus sistemas, evoluindo posteriormente para sua utilização como verdadeira fonte de Direito.

Veja-se, entretanto, que o caminho evolutivo percorrido pela jurisprudência, tradicional fonte secundária de Direito e vista com reservas no sistema do civil law, somente foi viabilizado pelo processo de globalização supradescrito, que a alçou ao posto em que se encontra hoje, qual seja, fonte de primeira grandeza no sistema de Direito romano-germânico.100

Reflete essa mudança no grau de importância da jurisprudência o fato de que nenhum advogado praticante negará hoje a importância de um arquivo de jurisprudência dominante nos vários assuntos de sua atuação, bem como que qualquer estudante sabe da importância de seu conhecimento como um dos mais poderosos instrumentos na aplicação do Direito. Para Guido Fernando Silva Soares101:

Outra prova disso é a aceitação generalizada de compilações de jurisprudência uniforme em certas matérias tópicas, conforme as publicações que se tornam cada vez mais frequentes entre nós; quando se fala em Informática no Direito ou em Informática Jurídica, a primeira indagação é saber quando serão aquelas engenhocas inteligentes aplicáveis para melhor conhecer-se a jurisprudência e dela extrair maior aproximação com a realidade dos fatos correntes!

Logo, pode-se dizer que a evolução do Direito está em tudo atrelada à evolução humana, consignando que o atual estágio da técnica já permite ampla consulta juscibernética, sobretudo porque todos os tribunais estaduais e federais pátrios gozam de acervo jurisprudencial informatizado e disponível para consulta on- line.

Insta salientar que tais compilações de jurisprudência estão evoluindo e se transformando paulatinamente há um século nos países que adotam o civil law, acompanhando a aproximação desse sistema ao do common law. Hoje tais compilações são o resultado do importantíssimo papel delegado à jurisprudência, de

100STRENGER, Irineu. Direito Internacional privado. São Paulo: LTr, 2003. p. 125.

101SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 30.

modo que diversos países adotantes do sistema romano-germanista possuem compilações oficiais de jurisprudência, tais como Alemanha, França, Itália, Suíça e Turquia.102

Através dessas análises, podem ser vislumbradas as transformações que o sistema do civil law vem sofrendo, sobretudo pela maior produção e sistematização jurisprudencial, sendo certo que as aberturas gerais supradescritas são de todo existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, analisados os fatores genéricos de abertura do sistema romano-germânico, é mister que se examinem as brechas específicas e exclusivas encontradas no sistema adotado pelo Brasil ao sistema de precedentes.

Consoante visto anteriormente, não remanescem quaisquer dúvidas quanto ao fato de que o sistema jurídico brasileiro avizinhou-se do sistema do common law, sobretudo daquele sistema misto vigente nos Estados Unidos da América. Tal fato é evidenciado, especialmente, pela inserção de instrumentos jurídicos capazes de conferir efeito vinculativo à jurisprudência pátria, como um primeiro passo à inserção da doctrine of stare decisis entre nós.

Historicamente, a referida inserção – efetivamente realizada com a publicação da Emenda Constitucional nº 45/2004, possibilitando ao Supremo Tribunal Federal a edição de súmulas vinculantes – teve seu embrião nos primórdios da fase republicana através da obra doutrinária de Ruy Barbosa.103

Na seara legislativa, a eficácia vinculante dos precedentes apareceu na Constituição Federal de 1934, com a criação do instituto da suspensão, pelo Senado Federal, de leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, buscando estender os efeitos de referida declaração – feita em sede de controle difuso e, portanto, com eficácia inter partes, já que o controle concentrado de constitucionalidade foi inserido em nosso ordenamento jurídico em momento posterior.

Após isso, o Código de Processo Civil de 1939, em seu artigo 861, possuía disposição expressa de que um Tribunal poderia se manifestar previamente acerca da interpretação a ser dada a uma determinada norma jurídica.

102DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 124.

103SOTELO, José Luiz Vasquez. A jurisprudência vinculante na common law. Temas atuais de Direito Processual ibero-americano. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 374.

Posteriormente, quando da elaboração da Constituição Federal promulgada em 1946, houve diversas propostas para a inserção de um sistema de procedimentos vinculantes. A referida fase embrionária culminou com os estudos elaborados por ocasião da apresentação do Anteprojeto de Novo Código de Processo Civil, capitaneado por Alfredo Buzaid (1964), que visavam ao restabelecimento de antigos assentos anteriormente vigentes e redundariam na atribuição de efeito vinculativo às decisões judiciais (artigo 519 e item 29 da exposição de motivos).

Em 1963, houve modificação no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, especificamente em seu artigo 102, que passou a conter a súmula da Jurisprudência Predominante do Excelso Tribunal, instrumento ainda existente e que visa dar eficácia persuasiva aos precedentes da Corte. A Emenda Constitucional nº 16/1965 criou a representação de inconstitucionalidade, trazendo efeito erga omnes às decisões do STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade.104

A evolução legislativa para dotar de efeito vinculante os precedentes judiciais continuou, alcançando os diplomas infraconstitucionais. Nesse sentido, o regime original do Código de Processo Civil de 1973 previa um mecanismo de uniformização de jurisprudência e do feitio de súmulas em seu artigo 479, buscando salvaguardar a igualdade nas decisões judiciais. Logo após, a Lei Complementar nº 35/1979 – Lei Orgânica da Magistratura – em seu artigo 90, § 2º, franqueou ao relator, nos processos sujeitos à competência derivada do Tribunal Federal de Recursos, que negasse seguimento a recurso contrário à súmula daquele Tribunal ou do Supremo Tribunal Federal.105

Nessa esteira e no mesmo sentido adveio o artigo 38 da Lei nº 8.038/90, que facultou ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, por intermédio de seus relatores, negar seguimento a recursos que contrariassem, em matéria de Direito, o teor das súmulas elaboradas pelos respectivos Tribunais.

A partir de 1994 as reformas legislativas avançaram, sobretudo no Código de Processo Civil, visando dar força vinculante não somente aos precedentes sumulados, mas também aos demais. Assim, a nova redação do artigo 557 e de seus parágrafos permitiu, no âmbito dos tribunais de segunda instância, ao relator,

104ZAVASCKI, Teori Albino. Ação rescisória: a Súmula n. 343-STF e as funções institucionais do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br>. Acesso em: 01 dez. 2011. p. 16.

individualmente, negar seguimento/dar provimento a recursos. Os §§ 3º e 4º do artigo 544 atribuíram competência monocrática aos relatores dos recursos de agravo de instrumento interpostos em face de despachos denegatórios de Recurso Especial e Extraordinário para, conhecendo o agravo, dar provimento ao REsp ou REx com fulcro em jurisprudência ou súmulas do STJ e STF. Já o parágrafo único do artigo 481 inseriu o sistema de vinculação dos órgãos fracionários dos Tribunais aos seus próprios precedentes e, caso inexistentes, aos do STF, nos incidentes de inconstitucionalidade.106

Ainda no Código de Processo Civil, em 1998, o parágrafo único do artigo 120 autorizou o relator a decidir de plano um conflito de competência, se houver jurisprudência dominante do tribunal sobre a questão suscitada. Em 2001, o § 3º do artigo 475 dispensou a remessa necessária enquanto requisito à produção de efeitos das sentenças prolatadas em desfavor da Fazenda Pública, caso tenham adotado jurisprudência do plenário do STF ou súmula de Tribunal Superior competente. No mesmo ano, o artigo 741, parágrafo único, passou a dotar as decisões do STF em sede de controle difuso de constitucionalidade de eficácia executiva inibitória, impedindo a execução de sentenças que lhes fossem contrárias, fato repetido em 2005 pelo artigo 475-L, § 1º.107

No que tange aos Juizados Especiais Federais, já em sua gênese, a Lei nº 10.259/2001, em seu artigo 14, inseriu-se o mecanismo de uniformização de interpretação de lei federal, dando eficácia vinculante às decisões da Turma de Uniformização (§ 2º) e da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (§ 4º). Isso em virtude de se ter a força vinculante dos precedentes como inerente e essencial ao atendimento dos princípios norteadores dos Juizados Especiais.

A inserção da regra do stare decisis prosseguiu a passos largos e a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004 sedimentou a tendência à aproximação do nosso sistema ao common law. Insta salientar que a importância dessa alteração, no que tange à consolidação do temperamento ao sistema civil law adotado, não reside somente em seu conteúdo (a criação de um instituto jurídico capaz de atribuir efeito vinculante às reiteradas decisões de um Tribunal - a súmula vinculante), mas também na forma como se deu referida alteração, através da

106ZAVASCKI, Teori Albino. Ação rescisória: a Súmula n. 343-STF e as funções institucionais do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br>. Acesso em: 01 dez. 2011. p. 17.

inserção de texto normativo no conjunto de normas da mais alta hierarquia dentro do sistema romano-germânico adotado pelo Brasil, nossa rígida Constituição Federal.

Analisando seu conteúdo, podemos inferir que o acréscimo do artigo 103-A à Constituição Federal franqueou ao Supremo Tribunal Federal a edição de súmulas que, a partir de sua publicação, gozam de efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo (administração pública direta e indireta, seja federal, estadual ou municipal). Para a edição dessa súmula vinculante, o Supremo Tribunal Federal, oficiosamente ou mediante provocação, necessita da aprovação de dois terços de seus membros, mesmo quórum necessário à revisão ou cancelamento do preceito vinculativo, procedimentos regulamentados pela Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006.

Nesse mesmo ano várias reformas foram empreendidas nas diversas codificações existentes, ocasião em que novos institutos de aproximação ao sistema do common law foram inseridos no sistema jurídico brasileiro. São exemplos desses institutos: o artigo 518, § 1º, do CPC (que consagrou a súmula impeditiva de recurso, impedindo a apelação contra sentenças fulcradas em súmulas do STF e STJ); o artigo 285-A do Código de Processo Civil (inserindo o julgamento antecipadíssimo, para os casos em que a matéria discutida for unicamente de Direito e no juízo já houver sido proferida sentença de improcedência em casos idênticos, podendo haver a dispensa da citação e ser prolatada sentença de igual teor à anteriormente proferida); os artigos 543-A e 543-B do CPC (que disciplinaram a repercussão geral – artigo 102, § 3º, da Constituição Federal – como pressuposto recursal dos recursos extraordinários); o artigo 543-A, § 3º, do CPC (que presumiu a repercussão geral de decisão contrária à súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal); e o artigo 543-B, caput e § 3º, do CPC (que instituíram um sistema de decisões vinculantes quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia).

Em 2008, a Lei nº 11.672/2008 acresceu o artigo 543-C ao Código de Processo Civil, instituindo um sistema de julgamento para os recursos especiais análogos ao da repercussão geral (recursos repetitivos), outorgando elevada força persuasiva aos precedentes do STJ e, ao mesmo tempo, visando à aplicação prática dos precedentes aos casos pendentes de julgamento.

Nesse cenário, mesmo antes de se adentrar na análise mais aprofundada dos institutos jurídicos supramencionados, segundo o Professor Danilo Knijnik:

Embora não seja certo dizer que o juiz brasileiro, p. ex., está jungido ao precedente tanto quanto o estaria um juiz norte-americano ou inglês, também será falso, mormente na atualidade, dizer que o precedente é uma categoria jurídico-processual estranha ao direito pátrio, ou que tem apenas força meramente persuasiva.108

Insta salientar que a doutrina, assim como as academias jurídicas, constatando essa crescente aproximação do sistema jurídico brasileiro ao do common law, evidenciado sobremaneira pelas alterações legislativas, têm publicado diversos trabalhos realçando as vantagens – e até mesmo a necessidade – de se adotar institutos jurídicos oriundos do common law como instrumentos corretivos do sistema do civil law. Nesse sentido, Luís Guilherme Marinoni109 aduz ser imprescindível que se tenham efetivas investigações sobre a jurisdição do common law, numa postura de abandono ao preconceito acadêmico-doutrinário em relação ao Direito estadunidense, constatando que:

Não há qualquer empenho em ressaltar que o juiz, no Estado constitucional, deixou de ser mero servo do legislativo. A dificuldade em ver o papel do juiz sob o neoconstitucionalismo impede que se perceba que a tarefa do juiz do civil law, na atualidade, está muito próxima da exercida pelo juiz do common law. É exatamente a cegueira para a aproximação destes juízes que não permite enxergar a relevância de um sistema de precedentes no civil law.

Assim, estatuídos os fundamentos gerais e a evolução no tempo da aproximação do sistema do civil law ao do common law, é necessário que analisemos particularmente alguns dos mais importantes institutos jurídicos presentes no ordenamento jurídico pátrio que efetivamente se consubstanciam em aberturas ao sistema americano.

6.2 Controle Concentrado de Constitucionalidade e de Inconstitucionalidade