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8 O EQUÍVOCO LEGISLATIVO DEMANDANDO A APLICAÇÃO DO

8.1 O Problema da Omissão Legislativa

Questão posta para exame judicial em praticamente todos os dias refere-se aos juros cobrados nos contratos de empréstimo bancário.

É sabido de todos que o § 3º do artigo 192 da Constituição Federal, antes de sua revogação, à surdina, pela Emenda Constitucional nº 40, de 29 de maio de 2003, previa o limite de 12% ao ano para os juros bancários, com a seguinte redação:

Art. 192, § 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar. A discussão que se punha, à época de sua vigência, era se tal dispositivo constitucional tinha ou não eficácia imediata, isto é, se poderia ser aplicado de plano, ou se havia necessidade de sua regulamentação por lei complementar para que pudesse gerar efeitos.

Referida discussão se fez presente em todos os foros brasileiros, em milhares e até pode-se dizer milhões de processos, e acabou decidida na conhecida ADIN nº 4 do Supremo Tribunal Federal, fixando-se o entendimento pela necessidade de lei complementar regulamentadora do tema para que os juros bancários fossem restringidos a 12% ao ano, reconhecendo expressamente a vigência da legislação reguladora do Sistema Financeiro Nacional anterior à Constituição de 1988 (Lei nº 4.595/64 e atos normativos do CMN), até que fosse editada a lei complementar exigida pelo caput do artigo 192 da CF/1988, in verbis:

Tendo a Constituição Federal, no único artigo que trata do Sistema Financeiro Nacional (art. 192), estabelecido que este será regulado por Lei Complementar, com observância do que determinou no caput, nos seus incisos e parágrafos, não se pode admitir a eficácia imediata e isolada do disposto em seu parágrafo 3º, sobre taxa de juros reais (12 por cento ao ano), até porque estes não foram conceituados. Só o tratamento global do Sistema Financeiro Nacional, na futura lei complementar, com a observância de todas as normas do caput e dos incisos e parágrafos do art. 192, é que permitirá a incidência da referida norma sobre juros reais e desde que estes também sejam conceituados em tal diploma. Em

consequência, não são inconstitucionais os atos normativos em questão (parecer da Consultoria Geral da República e Circular do Banco Central), o primeiro considerando não autoaplicável a norma do parágrafo 3º sobre juros reais de 12 por cento ao ano, e a segunda determinando a observância da legislação anterior à Constituição de 1988, até o advento da Lei Complementar reguladora do Sistema Financeiro Nacional. Ação Declaratória de Inconstitucionalidade julgada improcedente, por maioria de votos.

Nunca foi editada a lei a que se refere o decisório acima ementado e, como se disse, à surdina, foi simplesmente revogado o § 3º do artigo 192 da Constituição Federal, no ano de 2003.

Com a revogação, o tema deixou de ter conotação constitucional e, assim, o foro de exame das questões envolvendo os contratos bancários aos poucos foi se deslocando do Supremo Tribunal Federal para o Superior Tribunal de Justiça, que passou a decidir da maneira como segue.

De início, após algum vacilo jurisprudencial, decidiu-se pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos bancários. Nesse tema, a divergência que havia dentro do próprio Superior Tribunal de Justiça cessou. No mês de setembro de 2004, foi editada a súmula nº 297: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”.

Quanto à questão acima ventilada do teto para os juros bancários, não fosse só pelo resultado da ADIN acima mencionada, considerou o Superior Tribunal de Justiça permitida a cobrança acima de 12% ao ano, sumulando a questão com os seguintes verbetes. Súmula nº 296: “Os juros remuneratórios, não cumuláveis com a comissão de permanência, são devidos no período de inadimplência, à taxa média de mercado estipulada pelo Banco Central do Brasil, limitada ao percentual contratado”. Súmula nº 382: “A estipulação de juros remuneratórios superiores a 12% ao ano, por si só, não indica abusividade”.

Ficou permitida a capitalização dos juros remuneratórios, inclusive mensalmente. Esse foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, por sua Seção de Direito Privado: “a partir de 31/3/2000, data da publicação da Medida Provisória 1.963-17/2000, atualmente reeditada sob o nº 2.170-36/2001, está permitida a capitalização dos juros”.

Nem a entrada em vigor do Código Civil de 2002, com sua disposição do artigo 591, parte final, foi capaz de mudar o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que, sob a relatoria do Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, por maioria

de votos, reafirmou a possibilidade da capitalização mensal dos juros para os contratos bancários, em aresto de 23 de agosto de 2007, no Recurso Especial 821.357/RS.

Bem, essa pequena digressão a respeito da atual situação dos juros bancários na jurisprudência brasileira, escapando um pouco do tema referente aos danos morais e aos punitive damages, tem como finalidade demonstrar que a situação dos cidadãos e das empresas brasileiras frente às instituições financeiras pode ser resumida numa verdadeira luta de fracos contra poderosos, travada todos os dias nas agências bancárias e também nos fóruns do país.

Como se pôde observar, ao emprestar dinheiro, os bancos podem fazê-lo sem limite de juros preestabelecido em lei, impondo, como se sabe, valores astronômicos aos mutuários e podendo ainda capitalizar mês a mês as taxas praticadas.

Isso nada mais é que o resultado de longa omissão legislativa, que perdurou desde a promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, até 29 de maio de 2003.

E, quando se esperava do Congresso Nacional que desse uma conveniente resposta ao povo no que refere a tão sensível ponto para a sociedade, uma vez que hoje praticamente não se vive e não há desenvolvimento sem o recurso ao empréstimo bancário, o legislativo nacional, como se disse, à surdina, simplesmente revogou o §3º do artigo 192 da Constituição Federal, por meio da Emenda Constitucional nº 40.

É algo que realmente causa estranheza, para dizer o mínimo, pois o caminho que vinha sendo percorrido era no sentido de se limitar os juros a 12% ao ano. Com efeito, isso constava de disposição constitucional expressa, como se viu, no § 3º do artigo 192.

O Poder Judiciário, por meio da ADIN nº 4 do Supremo Tribunal Federal, afirmou a necessidade de lei complementar para que se atribuísse eficácia ao retro citado dispositivo constitucional, e não havia outra coisa a se esperar senão a aprovação da esperada norma complementar.

Mas, adotando postura absolutamente contrária ao anseio popular, ao invés de cessar a omissão que perdurava anos, houve por bem o Congresso Nacional simplesmente revogar a norma constitucional que necessitava, ao contrário, de regulamentação.

Em outros termos de formulação, a norma constitucional que o Poder Judiciário afirmou ser carente de lei complementar, isto é, que deveria ser regulamentada por lei do Poder Legislativo, foi, ao contrário, apagada do ordenamento jurídico nacional pelo próprio Congresso Nacional, que, sem a menor dúvida, nesse particular, andou na contramão da vontade popular.

Por outro modo, após longa e injustificada demora, o legislador nacional adotou conduta não querida pelo seu mandante – o povo – e causou verdadeira desgraça financeira a milhões de famílias e empresas brasileiras, em benefício de poderosos conglomerados bancários daqui e principalmente do exterior!

Acredita-se, após o fornecimento desse panorama, não haver necessidade de se referir ao astronômico número de processos tocando exatamente a questão dos juros bancários que deram ingresso no Poder Judiciário brasileiro desde a promulgação da Constituição Federal até os dias de hoje.

Esse vultoso número de processos resultou não de outra coisa senão da omissão legislativa quanto ao dever de regulamentação da matéria por parte do Congresso Nacional.

E essa proliferação de processos basicamente se orientou por dois movimentos judiciais.

Por um primeiro movimento, verificada a omissão quanto à regulamentação dos juros, os juízes passaram a entender pela imediata eficácia do § 3º do artigo 192 da Constituição Federal, entendimento esposado em milhões de processos pelo Brasil afora.

Por um segundo movimento, após a decisão na ADIN nº 4 do Supremo Tribunal Federal e a revogação do § 3º do art. 192 da Constituição Federal, passou o Poder Judiciário a se engajar na pacificação do entendimento acerca de todas as questões que envolvem os juros bancários, culminando na edição das súmulas retro transcritas do Superior Tribunal de Justiça.

Hoje, num resumo que agora sim se enquadra no tema proposto para exame neste trabalho, está consagrada a ideação de que as questões relativas aos contratos bancários, sobretudo no que toca aos juros, encontram regramento, quase que exclusivo, nos entendimentos judiciais a seu respeito, devendo aquele que se interessa pelo assunto, para fins acadêmicos ou processuais, recorrer, portanto, aos precedentes jurisprudenciais para encontrar as soluções adequadas ao seu interesse.

No encerramento deste item não se pode deixar de mencionar a opinião mais franca que se encontrou a respeito da não regulamentação e posterior revogação do § 3º do artigo 192 da Constituição Federal, deixando o Congresso de limitar os juros bancários a 12% ao ano, abrindo, assim, espaço para a situação vexatória hoje vivida pelos mutuários do sistema financeiro nacional, da lavra de Lucival Lage Lobato Neto153:

Devido ao alto lucro amealhado nesses últimos anos pelas instituições financeiras, como conseqüência da política monetária então vigente, essas têm interesse de manter o “status quo” econômico adquirido, por conseguinte, procuravam bloquear qualquer tentativa de regulamentação do art. 192 pela lei complementar nele prevista, especificamente do seu § 3º. Para isso, as grandes instituições financeiras vêm financiando as campanhas políticas de membros do Congresso Nacional e do Presidente da República. Por exemplo, nas eleições de 1994 e de 1998, os recursos originários dessas instituições para o candidato presidencial eleito e reeleito foram, respectivamente, 23 % e 26,73% do total formalmente declarado. Essas instituições também fazem um forte lobby no Congresso Nacional, quer diretamente, quer por meio da Federação Brasileira de Bancos (Febraban).