• Nenhum resultado encontrado

Foto 21 – Moldes vazados de letras e números

2.2 A DEFICIÊNCIA SENSORIAL VISUAL E A COMUNICAÇÃO

2.2.1 As deficiências e o sujeito corporal

O corpo humano, no decorrer dos séculos, sempre foi objeto de especulação e de investigação. Uma das ideias dialéticas mais antigas que se tem sobre ele é que seu significado e importância são distintos da alma. Alguns povos, inclusive acreditam até hoje, que tirar a parte do corpo que cometeu crime ou pecado o pune, o castiga e o livra de cometer

outros erros. Os méritos, os martírios, a residência do sagrado ou do mal também são conotações referentes à constituição corpórea. De acordo com Nunes (2008, p. 52):

O homem será abalizado pela dualidade entre a alma e o corpo. A primeira articula- se ao universo, o das coisas eternas, transcendentes a este mundo; o segundo, ao corpo, enquanto realidade pertencente ao mundo das coisas passageiras; realidade de naturezas diferentes e opostas [...].

Dessa forma, a discussão ontológica e metafísica sobre o corpo o posiciona num mundo terreno, mas com a possibilidade do eterno, do imutável, do imortal e do não disforme, isto é, do perfeito. O alcance dessas possibilidades depende, em algumas culturas, de que o corpo seja subordinado à alma e ganhe méritos para tal. A partir dessas concepções, de acordo também com a Biologia e com paradigmas sociais, a cada época foram estabelecidos padrões estéticos e também valores morais e éticos sobre o ser corpóreo. As discussões filosóficas e teológicas sobre a existência humana também estiveram presentes nos modelos de cada período histórico sobre o significado e a importância dada ao corpo.

Em determinado grupo e contexto, os estereótipos de beleza, funcionalidade e de capacidade dados ao corpo humano determinaram a segregação e a discriminação das pessoas com deficiência. Na Revolução Industrial, por exemplo, a força muscular do trabalhador, sua energia e resistência passaram a ser objeto de exploração capitalista, reduzindo o trabalho humano a uma simples ação fisiológica. No tempo atual, existem cultos ao corpo perfeito e, como contraponto, os extremos da obesidade, da fome e da anorexia. Nesse contexto, contribuindo com a definição padrão se tem o avanço técnico científico na aplicação de próteses, silicones e cirurgias plásticas.

Sob esse modo de analisar e de definir valores, as concepções do belo e do normal mudam conforme o pensamento científico, cultural, social e histórico de cada lugar. No presente, sobre as questões do bom, do belo e do normal, consideram-se as influências externas da mídia e da velocidade das informações, nas quais se mostram lugares e espaços diferentes, instantaneamente. Diante dessas constatações, o ser humano, ao fugir dos padrões determinados pela sociedade, que define quem é ‘normal’ e belo, é diferenciado não só pelos títulos que recebe, mas também pelas formas de tratamento que a todo o momento o evidenciam como um ser ‘deficiente’ e diferente.

Como exemplo da correlação entre concepção sobre o corpo e os paradigmas de uma época, pode-se citar o pensamento Platônico, em que o homem é composto de corpo e alma. Sendo que existe nele uma cisão entre o mundo inteligível da alma e o sensível do corpo. Ou seja, o corpo é a prisão da alma quando dominada por ele. Para Nietzsche, só existe o corpo

vivido e o que somos, que é mais surpreendente do que a alma. Em Descartes, o corpo é entendido como máquina. Com esse pensamento tentou-se desconstruir a visão do corpo no Iluminismo, como natureza e cultura, essência e construção social. Foucault concebeu o corpo como uma realidade biopolítica, ou seja, o controle da sociedade sobre o indivíduo não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo e com o corpo.

Na modernidade, Merleau Ponty (2006, p. 176-198) dá outra dimensão, direcionamento e intensidade ao falar sobre o corpo, pois se refere a ele ora como revelador da mensagem sobre si próprio e dos pensamentos e sentimentos produzidos por ele, ora como veículo e linguagem na comunicação humana. Para o autor, há uma relação tríade entre corpo, linguagem e comunicação, conforme se pode constatar nas citações a seguir:

[...] é pelo meu corpo que compreendo o outro como é pelo corpo que compreendo as coisas [...].

[...] A palavra é um verdadeiro gesto e contém sentido, como o gesto também contém o seu. É o que torna possível a comunicação. Para que eu compreenda as palavras do outro é necessário que eu compreenda seu vocabulário e sua sintaxe [...]. [...] A comunicação ou a compreensão dos gestos se obtém pela reciprocidade de minhas interações e gestos do outro, de meus atos e das intenções legíveis na conduta ao outro [...].

Outra forma mais social de definir o corpo está nas palavras das autoras Paula, Regen e Lopes (2011), ao conceberem o corpo como o elemento que o ser humano possui de mais privado e também de mais público. De acordo com as autoras, é por meio dele que somos aprovados e reprovados e pela sua aparência somos aceitos, atraídos ou repudiados. Diante desse modo de analisar o corpo não se pode estranhar que as pessoas com deficiência sejam consideradas ‘diferentes’ e sem condições de se comunicarem, aprenderem, trabalharem ou de simplesmente se relacionarem com todas as outras pessoas consideradas ‘normais’.

Para Nunes (2008, p. 52), diante da discussão dicotômica sobre a unidade do corpo e a alma, há ao menos uma certeza, a de que: “[...] o corpo enquanto tal é constituído de matéria e de forma. Dessa maneira, o corpo ganha unidade, estabilidade, ordem, coesão, racionalidade. Mas enquanto materialidade está sujeito ao limitado, ao informe, ao caótico, ao não racional, ao caos, etc.[...]”. A deficiência, nesse caso, está relacionada a um corpo com níveis de capacidade, potencialidades e limites fora da padronização estabelecida socialmente. Pois esse corpo passa a ser entendido como incapaz, inválido e ineficiente.

Conforme explica Nunes (2008, p. 52):

[...] A perda da forma representa sempre imersão no caos. O homem diferentemente dos outros animais, tem consciência e conhecimento dos perigos que o cercam e também da dissolução ou do comprometimento da forma, seja pela doença, seja pela autodestruição [...].

Na assertiva de Nunes (2008) pode-se entender que a não conciliação entre os padrões sociais estabelecidos e a forma humana com deficiência congênita, hereditária ou adquirida passa a ser não apenas uma questão estética para o indivíduo, mas também uma impossibilidade de identidade, autonomia e sentimento de pertencimento no contexto e no ambiente desta pessoa. Isto porque “[...] nossa imagem corporal é, pois, o resultado da experiência vivida, ou seja, das trocas entre o corpo e o nosso ambiente [...]” (BARRETO 2004, p. 74).

Ao receber, então, os discursos ideológicos prontos do contexto, a pessoa com deficiência sofre a violência do assujeitamento25. E, assim, a sua consciência é incessantemente administrada e produzida externamente. Nesse caso, passam a faltar referências e meios para que o ‘diferente’ encontre o sentido das coisas e dos fenômenos e para que o indivíduo possa construir o autoconhecimento e o conhecimento sobre os elementos do ambiente. Nesse sentido, esse indivíduo passa a ser repetidor do que lhe ensinaram, não constrói autonomia e é dependente da percepção social que se tem sobre seu corpo e sobre o ser humano que se é. Nesse conflito de identidade, conhecimento e autoafirmação, há um desequilíbrio entre sistema social, indivíduo e socialização (KOCH, 2005).

Sendo assim, se considerarmos que, para um funcionamento pleno do sistema social e da participação de todas as pessoas que o compõem, é de fundamental importância garantir os meios necessários para o desenvolvimento das potencialidades de todos esses indivíduos, será também relevante deslocar o foco da ineficiência do corpo para o tema central, ou seja, dos acessórios que a sociedade é capaz de produzir com a finalidade de qualificar a vida desses sujeitos. “Nesse sentido, se estabelece uma direção de oferta de suporte, de meios de acessibilidade [...]. Sendo estabelecida, assim, uma interface entre a necessidade e a capacidade da pessoa com deficiência [...]” (FERNANDES; ORRICO, 2012, p. 144).

25 Assujeitamento refere-se a como Foucault (1996) concebe a constituição histórica de um sujeito em termos de assujeitamento à trama de saberes e poderes de um dispositivo. O assunto em foco está em: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1996.

No entanto, é certo afirmar que, os recursos úteis para o funcionamento de um sistema social não estão relacionados restritamente à quantidade da oferta de acessibilidade, mas especialmente aos aspectos atitudinais de indivíduo para indivíduo, do poder público, dos programas destinados à promoção de pesquisas científicas, voltadas para o tratamento e prevenção, à produção de técnicas e à especialização de recursos humanos (FERNANDES; ORRICO, 2012).

Ao tratar do assunto acessibilidade, da forma como descrita anteriormente, não apenas demarca-se, no tempo, uma releitura sobre os conceitos de ineficiência do corpo, mas também se possibilita a rediscussão para o tema inclusão. Isto porque, nos dias atuais, por mais que haja muitos discursos sobre o assunto, e não mais um entendimento dogmático sobre a questão da deficiência, os diversos segmentos e instituições sociais ainda estão muito distantes de terem condições de colaborarem com uma inclusão efetiva.

Para Fernandes e Orrico (2012, p. 130), até então, a falta de esclarecimento, a ignorância e a desinformação sobre o assunto justificaram a crendice, os receios e a inviabilidade da inclusão. Entretanto, na atualidade, “[...] a questão da incapacidade, que passa a não ser mais o atributo de um indivíduo, mas de um conjunto de condições, criadas inclusive pelo próprio ambiente social [...]”, explica a falta de interesse e da ausência de busca de resoluções para o problema em questão. Neste sentido, a incapacidade técnica, científica e atitudinal refletem a ideologia de todos os tempos, revestida por outra roupagem.