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Foto 21 – Moldes vazados de letras e números

2.1 DA HISTORICIDADE DAS DEFICIÊNCIAS AO PARADIGMA DA INCLUSÃO

2.1.2 Um breve histórico sobre a deficiência no Brasil

O Brasil surgiu quando todo o Velho Mundo já havia caminhado bastante, embasado nos ideais Renascentistas. A partir desse novo modo de compreender o mundo, a história humana passou por grandes modificações radicais, em que a maneira do homem analisar a si mesmo e os campos dos saberes humanos tinha deixado para trás as explicações com base teocêntrica. Houve nesse período, iniciado no século XIV com culminância no século XVI, o ressurgimento de estudos nos campos das ciências humanas, posição em que o papel do ser humano é de objeto de observação e também o próprio observador.

No século XVI, quando se iniciou a colonização no Brasil, o período Renascentista já tinha feito outros países evoluírem no campo científico, tecnológico, das grandes descobertas e invenções. Galileu, por exemplo, fez a constatação do movimento da Terra em torno do Sol; a invenção da bússola e o aprimoramento das técnicas de navegação resultaram na expansão marítima europeia e no descobrimento de novas terras. Em contraposição, a pólvora utilizada, até então, para a fabricação de fogos de artifício passou a ser usada com fins militares, pelos colonizadores europeus, para obterem vantagem bélica sobre os povos dos territórios conquistados.

As alterações ocorridas no Feudalismo, a multiplicação dos comércios nos centros urbanos, o surgimento de uma burguesia urbana europeia, algumas divulgações literárias e o investimento nas Artes, como nas de Leonardo da Vinci, personificaram os padrões do homem Renascentista e transformaram o modo de pensar e de produzir das pessoas em toda parte do mundo. Entretanto, no Brasil, a prática de dominação e de alienação em relação às pessoas que nele já habitavam apenas tinha se iniciado.

Antes do início da colonização pelos europeus nas terras da América, estima-se que havia aproximadamente 100 milhões de índios em todo o continente. Sendo que nas terras

brasileiras havia cinco milhões de nativos, divididos por tribos. Eles viviam da caça, da pesca e da agricultura, de forma rudimentar. As relações entre eles baseavam-se em regras sociais, políticas e religiosas. O contato entre as tribos existentes ocorria em solenidades de casamentos, enterros e quando era necessário estabelecer aliança contra o inimigo em comum. As terras, a comida e os pertences eram partilhados com todos. Todavia, nos relatos de historiadores e antropólogos, estão registradas as práticas de crença em outra vida e a exclusão de crianças com deformidades, que, segundo os indígenas, trariam maldições para a tribo.

De acordo com Figueira (2008, p. 22), “[...] uma das formas de se livrar delas era abandonar os recém-nascidos nas matas, ou atirá-los de montanhas e, na mais radical atitude, até sacrificá-los em chamados rituais de purificação”. Para o autor, de acordo com relatórios do médico e historiador Lycurgo Santos Filho, raros eram os casos de pessoas com alguma deficiência. Pois os indígenas brasileiros impressionavam por seu porte forte, robusto e a sua ótima constituição física. Do que se pode deduzir que os que nasciam com algum tipo de deficiência ou aparência fora desses padrões eram eliminados imediatamente ao nascer. E, com eles, enterrados todos os males que poderiam afligir as tribos.

De acordo com esses relatos médicos e históricos, o selvagem tinha nojo e horror à doença. Por isso, procurava se distanciar dos que nasciam ou adquiriam ‘tais doenças’. A descrição desses e de outros relatos de estudiosos evidenciam que as doenças mais comuns entre os indígenas eram a parasitose, as dermatoses, as afecções produzidas por bactérias e fungos, o reumatismo e as doenças respiratórias. No entanto, quanto às doenças venéreas, a varíola, o sarampo e a febre amarela, foram transmitidas pelos brancos e colonizadores quando aqui chegaram.

Há também nessas pesquisas o indício de que havia, em algumas dessas tribos, consideração e respeito às pessoas mais idosas e necessitadas de algum tratamento especial. No entanto, o conceito de inferioridade e de discriminação era entendido como solução para eliminar dificuldades e afastar os males. Conforme afirma Figueira (2008, p. 2θ), “[...] usavam como argumento para o sacrifício a ideia de que o indivíduo iria sofrer ao longo de sua vida às condições precárias da época. Além da eliminação da vítima em função da coletividade”.

No entendimento da tribo, o indivíduo com algum tipo de deficiência não seria um bom caçador, não seria digno de sua esposa nem seus filhos poderiam ser guerreiros. Pois, não possuiriam uma composição física forte e sadia, conforme os padrões definidos como modelo na tribo. Para solucionar a questão, os que adquiriam sequelas e deficiência por causa

de guerras e/ou acidentes, se não eram encontrados, deduzia-se que deveriam ser abandonados e escondidos. A segregação das pessoas com deficiência conservava, assim, a honra para os dignos do convívio familiar e com a comunidade.

Já as práticas de curas contra as doenças baseavam-se na cultura de que estas eram enviadas por entidades, como determinação de castigo ou correção. Para tanto, a figura do Pajé era de curandeiro, zelador das coisas sagradas, sacerdote, adivinhador, conselheiro, legislador, mágico e feiticeiro. O Pajé também conhecia as plantas e suas virtudes medicinais, o que o fazia obter êxitos médicos e terapêuticos. No decorrer dos anos, com os escravos negros trazidos da África, houve uma grande disputa entre as habilidades do Pagé e do negro feiticeiro. No entanto, a discriminação sobre a escravidão do negro fez com que seus hábitos e costumes não tivessem repercussão entre os índios.

O jesuíta José de Anchieta, no entanto, “[...] destacou-se entre os enfermos, doentes crônicos e enjeitados” (FIGUEIRA, 2008). Isto porque, se revelou como um cientista patologista e um médico dedicado às enfermidades dos índios. Essas ações fez com que ele adquirisse a confiança dos índios e partilhasse dos seus conhecimentos. Segundo Silva (1987, p. 276):

[...] não nos é difícil imaginar que Anchieta tenha lutado fortemente contra a desabusada e muito aceita atuação de benzedores ou feiticeiros, uma vez que, de acordo com seus próprios escritos, ele chegou a preparar mesinhas, operou, sangrou, fez partos, exumou cadáveres, curou feridas bravas, tratou cancros, fez curativos, assistiu velhos, crianças, moribundos e loucos [...].

Das citações dos relatos sobre as doenças tratadas por Anchieta, pode-se concluir que as deficiências, na sociedade colonial, eram segregadas, pois, além de serem entendidas como castigo divino, vergonha e superstição, muitas vezes eram tidas como resultado de ilícitas relações entre brancos e índias. Os curumins, que nasciam dessas relações, eram chamados de ‘órfãos da terra’ e, mesmo que não tivessem nenhuma deformidade, eram abandonados nas Casas dos Muchachos20, porque só os gerados entre os índios eram considerados família deles. Sendo assim, quando essas crianças se tornavam adolescentes, voltavam ao convívio dos índios ou formavam pelas ruas novos grupos de pessoas sem identidade, sem etnia (FIGUEIRA, 2008).

Entre os séculos XVIII e XX, outro local em que os excluídos eram deixados era as ‘Rodas dos Expostos’. Chamada assim porque havia nelas um muro que dividia um tabuleiro de forma cilíndrica, em que se depositava o bebê abandonado, de um lado, e girava-se a roda

20 Casas de Muchachos eram casas de acolhimento de crianças afastadas de seu convívio sócio-familiar para serem educadas de acordo com os preceitos da Igreja (século XVI).

para direcioná-lo para o outro lado. Depois, tocava-se uma sineta para avisar aos vigilantes de que havia mais uma criança abandonada. E, assim, quem a enjeitou não precisaria ser identificado. Essas casas chamadas ‘Rodas dos Expostos’ tiveram origem em 1726, na Itália, durante a Idade Média, a partir da iniciativa de uma Irmandade de Caridade, preocupada com o número excessivo de bebês encontrados mortos (MARCÍLIO, 2006).

No Brasil, a Santa Casa de Misericórdia na Bahia foi a primeira instituição a ter uma ‘Roda dos Expostos’. Em 1726, apenas com 30.000 habitantes, o abandono e os assassinatos de recém-nascidos nas ruas da cidade já eram alarmantes. O que chamava a atenção sobre essas ações desumanas é que muitas dessas crianças apresentavam defeitos físicos, sensoriais e/ou mentais. Conforme discorre Figueira (2008, p. 3θ): “Todas as manhãs podiam ser encontradas, nas ruas da cidade, corpos de recém-nascidos deixados à própria sorte por seus pais, e que acabavam mutilados por cães e porcos [...]”.

Quando abandonados nessas casas de acolhimento, os bilhetes encontrados expunham as justificativas para tais feitos: o nascimento de gêmeos, relações extraconjugais, violência sexual, incapacidade financeira e a invalidez de um dos pais resultando em sua incapacidade para o trabalho. Muitas dessas crianças não conseguiam viver nessas instituições, ou por falta de amamentação, ou por causa da precariedade dos lugares onde eram atendidas. Outras, ainda, eram vendidas como escravas ou habitavam nas ruas. A partir dessas circunstâncias, surge por meio dos Jesuítas, a ideia de tutela no Brasil, o que mais tarde repercutiu no assistencialismo às pessoas com deficiência. Para Figueira (2008), essa visão assistencialista ainda perdura até hoje como prática de atendimento à infância no Brasil.

A escravidão e a venda de índios e de negros africanos como se fossem mercadorias também se apresentam como um retrato da violência praticada pelos colonizadores e seus donos. Mas, antes mesmo do domínio de Portugal, a escravidão no Brasil já era utilizada por tribos, ao capturarem seus inimigos. Muitos desses capturados foram, inclusive, negociados em troca de mercadorias com os portugueses, em sua chegada. Entre essas tribos, também se cometia a antropofagia, em rituais em que eram escolhidos os que deveriam ser devorados. Sabendo desses costumes, os portugueses também lidavam com algumas tribos com desconfiança e medo.

Com a oficialização do tráfico negreiro em 1559, o comércio de escravos tornava-se cada vez mais lucrativo, com a captura de negros e índios como fonte de mão de obra barata. As capturas ocorriam por meio das guerras tribais ou pela troca de pessoa pelo pagamento de dívidas. As pessoas escravizadas também serviam de objeto de troca por produtos como armas, bebidas e fumo. Nos navios negreiros, a péssima condição a bordo, as doenças

adquiridas, os maus tratos e os castigos físicos geravam deficiências. Portanto, havia a garantia apenas de que 50% (cinquenta por cento) dessas pessoas fossem aproveitadas para o serviço escravo. Mas, mesmo assim, o tráfico negreiro foi uma atividade extremamente lucrativa que durou até 1850 (FIGUEIRA, 2008).

Em documentos oficiais, a exemplo do Alvará de 3 de março de 1741, em que o rei D. João V incita as punições e as consente, há a descrição de dois exemplos de maus tratos dados aos escravos capturados ou em fuga. De acordo com esse documento, os escravos deveriam ser punidos com marcas de ferro quente, com a letra ‘F’, e os escravos fugitivos encontrados com essa marca nos quilombos deveriam ter suas orelhas tiradas. Essas e outras punições, como as chicotadas, os cortes com navalhas, o retalhamento do fundilho das calças e das partes íntimas, palmatórias, cauterização dos ferimentos com cera quente, sangria nos escravos nervosos, lavagem das chagas com pimenta, vinagre, limão e/ou urina, são também consideradas as causas de muitas deficiências.

Outros fatores que contribuíram para as deficiências congênitas ou adquiridas, nos séculos XVI e XVII, foram a sífilis, as epidemias, as picadas de insetos e a varíola. As pessoas encontradas nesse período com tipos de deficiências foram: os coxos, os cegos, os zambros21 e os corcundas. As deficiências permanentes passavam a ser de natureza incapacitante e as pessoas eram discriminadas e abandonadas. Silva (1987, p. 277) afirma que: “[...] diante da situação de tal seriedade, podemos imaginar o abandono a que foram relegados os infelizes que padeciam de males crônicos ou que carregavam consigo a dificuldade própria de uma deficiência física ou sensorial”.

De acordo com Silva (1987), o historiador inglês Robert Southey considera que a cegueira foi um dos mais severos males comuns aos moradores do Brasil, também durante os séculos XVI e XVII. Os casos de males dos olhos, nesse período, foram a ‘cegueira noturna’, que causa insuficiência ou imperfeição da visão à noite; as doenças nos olhos, que atacou mais aos miseráveis e aos soldados; e a perda da visão, quando o sol se punha para uns e para outros quando ele nascia. Essa perda é chamada de ‘gota-serena’ e ‘amaurose’, que correspondem, hoje em dia, à cegueira parcial ou total. Conforme discorre o autor, para o historiador Robert Southey, essas doenças também eram causadas pela vida desregrada e corrupta dessas pessoas.

Entre os males que mais se destacam no Brasil entre os séculos XVI e XIX estão a paralisia e, por vezes, as mutilações. Isto porque os que padeciam de tal problema ou os que

as adquiriram por meio de problemas vasculares, imprudência médica, acidentes, gangrena e tumores, poderiam obter o abandono ou a morte. Apenas no século XIX, com o advento da anestesia, da assepsia e da medicina restauradora e conservadora, é que os procedimentos promoveram algumas curas.

No século XVIII, os serviços hospitalares militares começaram a funcionar. Um deles, construído no morro de São Bento, no Rio de Janeiro, deu origem ao hospital militar. Quase todos os hospitais criados foram instalados nos antigos colégios da Companhia de Jesus, após sua expulsão pelo Marquês de Pombal. A função desses hospitais era a de tratar e reabilitar soldados inválidos na guerra. Muitos desses hospitais serviam de abrigos e asilos para os incompetentes para o serviço militar por deficiência, velhice e/ou mutilação (FIGUEIRA, 2008).

Com a consolidação da navegação internacional, a exportação mundial de café e a abolição da escravatura (1888), o Brasil dedicou-se à construção de hospitais para os imigrantes. O objetivo dessas construções era diminuir a superlotação das casas de misericórdia e estar pronto para resolver possíveis problemas de saúde, que poderiam existir com a chegada dos estrangeiros para a mão de obra trabalhadora. A construção desses hospitais tinha como perspectivas as possíveis epidemias e a transformação deles mais tarde em hospitais-escolas (FIGUEIRA, 2008).