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As diferenças na constituição econômica

4.1 As diferenças nos processos constituintes

4.2 As diferenças na constituição econômica

Mesmo com o reconhecimento amplo dos direitos sociais, a maioria das cons- tituições da região prefiguram Estados que necessariamente têm de intervir na economia, mas existem claras diferenças com relação ao grau desse inter- vencionismo estatal. Neste aspecto, é possível identificar ao menos três ten- dências. Por um lado, estão as constituições que reservam ao Estado um papel menor na economia, como ocorre com a do Chile, que apenas se refere ao papel do Estado na mineração (art. 24) e que também dispõe que o Governo Federal apenas poderá desenvolver atividades empresariais caso seja autori- zado por uma lei de quórum qualificado (art. 21); e a do Peru – na qual a inci- dência das estratégias de reforma do Estado promovidas a partir do chamado “Consenso de Washington” torna-se mais evidente –, que dá ênfase nas liber- dades econômicas e que limita o papel do Estado a vigiar a livre concorrência e a defender o interesse dos consumidores e usuários (art. 59). Em menor medida, a Constituição da República Dominicana também se aproxima dessa

tendência, pois dá ênfase ao papel do Estado diante do fomento da iniciativa privada e explicitamente enuncia o princípio da subsidiariedade do Governo Federal no exercício da atividade empresarial (art. 219), mas por outro lado prevê um grau de intervenção deste no regime agrário, pois indica como seu objetivo promover a reforma agrária e eliminar progressivamente o latifúndio (art. 51, n. 3), com o que se aproxima à segunda tendência.

Esta segunda tendência corresponde àquelas constituições que atribuem ao Estado um papel na direção da economia, orientado não apenas a favo- recer um funcionamento ótimo do mercado, como também a conquistar a justiça social. É o caso das Constituições da Argentina (art. 75, n. 18 e 19), do Brasil (arts. 3, 23 e 170), da Colômbia (art. 334), da Costa Rica (art. 50), da Guatemala (art. 118), de Honduras (arts. 328 e 333), do México (art. 25), da Nicarágua (art. 98) e do Panamá (art. 284). No entanto, além das obriga- ções de garantia de direitos sociais, essas constituições não contêm previ- sões muito específicas sobre as modalidades de intervenção direta do Esta- do na economia para alcançar o objetivo da justiça social. A única exceção se dá com relação à questão agrária, pois algumas dessas constituições con- têm disposições especialmente orientadas a democratizar a propriedade da terra rural ou a melhorar as condições dos campesinos, concretizando, desse modo, o dever de intervenção do Estado. As disposições mais débeis nesse sentido estão na Constituição colombiana que estabelece como dever do Estado “promover o acesso progressivo à propriedade da terra aos trabalha- dores agrários” (art. 64) e a do Panamá, que dispõe que “o Estado prestará especial atenção ao desenvolvimento integral do setor agropecuário, fomen- tará o ótimo aproveitamento do solo, zelará por sua distribuição racional e sua adequada utilização e conservação, a fim de mantê-lo em condições produtivas, e garantirá o direito de todo agricultor a uma existência decoro- sa” (art. 122). Porém, as Constituições de Honduras, México e Nicarágua vão além, ao consagrarem disposições orientadas expressamente a eliminar o latifúndio.56 A Constituição do Brasil, por sua vez, contempla a expropria-

ção de imóveis que não cumpram sua função social para fins de reforma agrária (art. 184), mas deixa aberta a possibilidade da existência de latifún- dios. Sobre o caso do Brasil também cabe destacar que, a princípio, previa uma intervenção mais forte do Estado na economia, pois estabelecia mono- pólios estatais em matéria de gás, telecomunicações e petróleo, mas estes se

flexibilizaram com as reformas constitucionais de 1995, as quais admitiram a possibilidade da concessão a empresas privadas (Emendas ns. 5 e 8, de 15 de agosto e Emenda n. 9, de 9 de novembro); igualmente, a Emenda n. 6, de 15 de agosto de 1995, levantou algumas barreiras ao capital estrangeiro, ao definir como empresa nacional a instalada no país, independentemente da origem do capital (FIGUEIREDO, 2008).

E, finalmente, a última tendência está representada pelas Constituições de Bolívia, Equador e Venezuela, que ainda que reconheçam a iniciativa privada e a liberdade de empresa57 caracterizam-se por estabelecer uma

intervenção mais decisiva do Estado na economia. Quatro são os elementos comuns a este modelo. O primeiro é que reservam certas atividades econô- micas ao âmbito do Governo Federal. Desse modo, a Constituição da Vene- zuela prefigura um modelo de Estado empresário, pois coloca em suas mãos uma das atividades econômicas fundamentais do país, que é a atividade petroleira (arts. 302 e 303) e, além disso, deixa a porta aberta para que, “por razões de conveniência nacional”, reservem-se “outras indústrias, explora- ções, serviços e bens de interesse público e de caráter estratégico” (art. 302). A Constituição da Bolívia, por sua vez, estabelece que os recursos naturais serão administrados pelo Estado (art. 311, n. 2) e dispõe, além disso, que este “exerce a propriedade de toda a produção de hidrocarbonetos do país e é o único autorizado para sua comercialização” (art. 359, inc. I). Já a Constitui- ção do Equador determina que “o Estado se reserva o direito de administrar, regulamentar, controlar e gerenciar os setores estratégicos”, que em princí- pio incluem “a energia em todas as suas formas, as telecomunicações, os recursos naturais não renováveis, o refinamento de hidrocarbonetos e o patrimônio genético, o espectro radioelétrico e a água” (art. 313). Igualmen- te estabelece que o Estado “será responsável pela provisão dos serviços públicos de água potável e de irrigação, saneamento, energia elétrica, tele- comunicações, vias públicas, infraestruturas portuárias e aeroportuárias e os demais que a lei determine” (art. 314), ainda que admita, de forma excep- cional, que se poderá delegar a participação dos setores estratégicos e a prestação de serviços públicos às empresas mistas ou a particulares (art. 316). Excetua-se desta possibilidade, em todo caso, o serviço de saneamen- to e abastecimento de água potável, pois indica-se que este apenas será pres- tado por pessoas jurídicas estatais ou comunitárias (art. 318).

O segundo elemento comum é que as três constituições empregam o fomen- to de iniciativas econômicas alternativas que, nos termos sugeridos por Boa- ventura de Sousa, constituem apostas transformadoras em face da economia de mercado capitalista (SANTOS, 2007). Nesse sentido, a Constituição da Venezuela fala da proteção e promoção de associações comunitárias para o trabalho, a poupança e o consumo, sob o regime de propriedade coletiva (art. 308); a da Bolívia define o modelo econômico como plural, enquanto está constituído “pelas formas de organização econômica comunitária, estatal, pri- vada e social cooperativa” (art. 306) e dá especial ênfase na proteção e no fomento da organização econômica comunitária, a qual “compreende os sis- temas de produção e reprodução da vida social, fundados nos princípios e visão próprios das nações e povos indígenas autóctones e campesinos” (art. 307); e a do Equador também estabelece que o “sistema econômico se inte- grará pelas formas de organização econômica pública, privada, mista, popular e solidária” (art. 283), e precisa que estas duas últimas incluem os setores cooperativistas, associativos e comunitários.

O terceiro elemento é a incorporação do tema agrário, com relação ao qual as três constituições coincidem em proscrever o latifúndio, promover a distri- buição da terra e favorecer o acesso dos campesinos à propriedade.58

Finalmente, o quarto elemento é que tanto a Constituição da Venezuela, como a da Bolívia e a do Equador têm disposições orientadas a proteger o investimento nacional com relação ao estrangeiro. Dessa maneira, a da Vene- zuela estabelece que “o Estado se reserva o uso da política comercial para defender as atividades econômicas das empresas nacionais públicas e priva- das” e que “não se poderá outorgar a pessoas, empresas ou órgãos estrangeiros regimes mais benéficos que os estabelecidos para os nacionais” (art. 301); enquanto a da Bolívia (art. 320) e a do Equador (art. 339) indicam que o inves- timento nacional se priorizará com relação ao estrangeiro.

Aos elementos anteriores teria de agregar outro, próprio das constituições equatoriana e boliviana – nem tanto da venezuelana –, que trata da centrali- dade da questão ambiental, o qual sugere novos desafios ao modelo econômi- co que pretende ser impulsionado a partir desses projetos constitucionais. Desse modo, a Constituição do Equador reconhece, como nenhuma outra da região, os direitos da natureza, aos quais lhes dedica um Capítulo do Título II (sobre os direitos), e cujo primeiro artigo começa dizendo que a “natureza ou

Pachamama, onde se reproduz e realiza a vida, tem direito a que se respeite integralmente sua existência, manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos” (art. 71). Dedica também um capí- tulo ao tema da biodiversidade e dos recursos naturais, que está contido no Capítulo VII do Regime do “bem viver”, no qual se lê que o “Estado garanti- rá um modelo sustentável de desenvolvimento, ambientalmente equilibrado e respeitoso da diversidade cultural, que conserve a biodiversidade e a capaci- dade de regeneração natural dos ecossistemas, e assegure a satisfação das necessidades das gerações presentes e futuras” (art. 395, n. 1). A Constituição da Bolívia dedica um título inteiro ao meio ambiente, aos recursos naturais, a terra e ao território (Título II) e estabelece também uma jurisdição agroam- biental, que, entre outras coisas, deve resolver as “demandas sobre atos que atentem contra a fauna, a flora, a água e o meio ambiente; e demandas sobre práticas que coloquem em risco o sistema ecológico e a conservação de espé- cies ou animais” (art. 189, n. 1).

Pois bem, essas diferenças não são menores, pois a regulamentação da relação Estado, sociedade e economia representa uma das decisões constituin- tes essenciais, e mais ainda em um contexto como o latino-americano, atra- vessado por profundas desigualdades econômicas. Desse modo, enquanto o reconhecimento dos direitos sociais fixa um horizonte comum ao constitucio- nalismo regional, as previsões sobre o papel do Estado adiante da economia evidenciam a diversidade de rumos que conduzem até ele. Parece, portanto, existir um acordo com relação ao que, mas não com relação ao como.