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Um constitucionalismo relevante e original

Constituições da Venezuela, do Equador e da Bolívia

5.1 Um constitucionalismo relevante e original

Os países latino-americanos compartilham, em maior ou menor medida, uma história e um legado coloniais e, por isso, estão atravessados por certos pro- blemas semelhantes, apesar das diferenças nacionais evidentes. Há, ao menos,

nove problemas que qualquer constitucionalismo que pretenda ser relevante para aprofundar a democracia na América Latina deveria enfrentar. Primeiro, a América Latina foi, do ponto de vista socioeconômico, não apenas a região mais desigual do mundo, como também teve pouquíssima mobilidade, pelo que a dita iniquidade tende a ser transmitida de modo intergeracional em um modelo de “armadilha da desigualdade”. Por exemplo, a divergência de rendi- mento na região, medida pelo coeficiente de Gini é “65% mais alta que nos países de rendimentos altos, 36% superior ao observado nos países da Ásia oriental e 18% mais alta que na África Subsaariana” (PNUD, 2010, p. 37). Segundo, essa desigualdade econômica seguiu por conta da persistência de uma cultura patriarcal, que gerou profundas iniquidades de gênero na região em todos os campos. Terceiro, a maior parte dos Estados da América Latina praticou atos de subjugação cultural contra as culturas dominadas e explora- das desde os tempos coloniais, a saber, os povos indígenas e as comunidades afrodescendentes. Os nossos Estados, até muito recentemente, fundaram a ideia de nacionalidade em uma estratégia de homogeneização cultural, e mui- tas vezes religiosa, com a qual se negaram a reconhecer a diversidade cultural e étnica da região e perpetuaram mecanismos de segregação racial, que ainda persistem. Quarto, a América Latina, em grande medida, devido à persistência das desigualdades anteriormente aludidas, continua apresentando níveis intole- ráveis de pobreza e miséria, apesar de ser uma região que vivenciou períodos de intenso crescimento econômico. Quinto, os nossos países caracterizaram-se pela debilidade e instabilidade institucionais, o que nos conduziu a frequentes rupturas da ordem constitucional e a recorrentes ditaduras militares, ou à ins- tauração de regimes autoritários. Isto foi associado, conduzindo ao sexto pro- blema, a um forte predomínio do Executivo na organização do poder, o que levou alguns autores a falarem em “hiperpresidencialismo latino-americano” (NINO, 1992), muitas vezes relacionado, em quase todos os países, a uma longa tradição de caudilhismos. A tendência militarista e presidencialista está, em sétimo lugar, associada a uma debilidade geral dos mecanismos de repre- sentação política. Oitavo, a maior parte dos países da América Latina viveu desde meados dos anos 1960 situações de violação massiva dos direitos huma- nos, seja pela existência de ditaduras militares que implantaram um terroris- mo do Estado em nome da segurança nacional, como na Argentina e no Chile, seja pela persistência e agravamento de conflitos armados em democracias

precárias, como na Colômbia e no Peru, ou, ainda, pela combinação de regi- mes militares e conflito armado, como ocorreu em El Salvador e na Guatema- la. E, nono, mesmo que não seja de modo generalizado, muitos países da América Latina conhecem problemas agudos de criminalidade e violência; por exemplo, a taxa de homicídio na América Latina é, a título de comparação, a mais alta regionalmente, e, atualmente, alguns países, como Guatemala, El Salvador, Colômbia, Venezuela e Honduras, têm níveis de violência homicida entre os mais graves do mundo.

Esses desafios não são nada diminutos, pois implicam a adoção de regimes constitucionais capazes de desenvolver tarefas distintas e muitas vezes em tensão. Com efeito, nossas sociedades necessitam incorporar mecanismos efi- cazes de garantia dos direitos humanos e instaurar projetos constitucionais que permitam a estabilidade institucional, porém, ao mesmo tempo, os países da América Latina parecem requerer Estados fortes, capazes de remover as persistentes e grandes desigualdades e, com isto, correm o risco de acentuar tendências autoritárias e caudilhistas, pois pode-se pensar que apenas com líderes fortes e carismáticos seja possível promover mudanças sociais profun- das, as quais devem enfrentar sérias resistências de elites econômicas.

Um constitucionalismo democrático transformador na América Latina é, portanto, difícil e complexo, pois deve ser muito criativo para poder abordar tais desafios. Pois bem, o balanço realizado nos pontos anteriores mostra que as constituições adotadas na maior parte da região durante as últimas três décadas aspiram, com distintos níveis de intensidade, superar esses problemas e nesse sentido, as apostas da última “onda de mudanças” constitucionais tor- nam-se pertinentes e relevantes (UPRIMNY, 2011). Por exemplo, optaram por reforçar a proteção dos direitos, promover a igualdade e a participação, ao mesmo tempo que reconhecem e promovem a diversidade.

Além disso, as reformas constitucionais recentes na região, ainda que obvia- mente tenham aproveitado as experiências de outras partes do mundo, não se limitaram a copiar instituições e normas forâneas, mas houve esforços de ino- vação institucional bastante significativos. As constituições latino-americanas, em certos aspectos, simplesmente adotaram e adaptaram mecanismos institu- cionais que já haviam sido desenvolvidos com sucesso pelo constitucionalismo europeu ou norte-americano e é razoável que o fizessem, pois uma sociedade deve aproveitar os ensinamentos das experiências de outras civilizações. Por

exemplo, para fortalecer a independência judicial, a maior parte das reformas incorporou modelos de conselhos da magistratura inspirados na prática consti- tucional italiana, francesa ou espanhola. Igualmente, o constitucionalismo lati- no-americano recente desenvolveu inovações. Por exemplo, a forte abertura ao direito internacional dos direitos humanos ou a previsão de justiças constitucio- nais muito abertas, inclusive com ações públicas de inconstitucionalidade, são elementos distintivos do constitucionalismo latino-americano, que fortaleceram a proteção constitucional dos direitos. De modo semelhante, em âmbito institu- cional, o recente constitucionalismo da América Latina inovou para conquistar melhor articulação da diversidade étnica e cultural, por exemplo, com a criação de tribunais constitucionais plurinacionais, como no Equador e na Bolívia, o reconhecimento de amplas possibilidades para os povos indígenas de adminis- trar a justiça em seus territórios, como na Colômbia, Bolívia ou no Equador, ou a constitucionalização da consulta prévia, que levou a desenvolvimentos, impen- sáveis há alguns anos, como a possibilidade de que certos tribunais constitucio- nais, como a Corte Constitucional colombiana, anulassem leis, visto que impac- tavam os povos indígenas, que não foram previamente consultadas, ou parecem represas ou explorações mineiras por falta de consulta prévia, ou, inclusive, de consentimento prévio, nos eventos em que o projeto extrativo tenha um impacto profundo e grave sobre o povo aborígene.65

Por essas razões, e sem negar que, como argumenta Gargarella, às vezes as reformas constitucionais recentes foram orientadas por objetivos políticos de curto prazo, como permitir uma reeleição presidencial, ou que certas refor- mas foram adaptações nem sempre exitosas de criações institucionais de outras regiões (GARGARELLA, 2011), a nossa avaliação do constitucionalis- mo latino-americano recente é globalmente mais positiva. Acreditamos que ao menos algumas dessas reformas são relevantes, pois buscam enfrentar os principais déficits democráticos de nossos países, e defendemos, também, que são, em certos aspectos, originais, pois buscam por inovações institucionais normativas ou institucionais que não são em nada depreciáveis e que pode- riam ser orientadas em boa direção.

Esta análise dos textos constitucionais não é, entretanto, por si só suficien- te para materializar mudanças as quais aponta, pois existem tensões e limita- ções nas próprias constituições que condicionam as possibilidades de realiza- ção das promessas. Além do mais, a efetividade das Cartas Magnas depende

apenas em parte das disposições e dos projetos institucionais que elas mesmas contêm para serem mais que uma folha de papel, como pode ser a criação de um sistema de justiça constitucional apropriado. Com efeito, em certos aspec- tos, a realização de um projeto constitucional depende de fatores extraconsti- tucionais, em particular da existência de forças sociais e políticas que assu- mam como própria a materialização das promessas constitucionais (GARCÍA, 2012). Igualmente, como já sugerimos, o recente constitucionalismo latino- americano está atravessado por tensões importantes, que são necessárias reco- nhecer e analisar. Em particular, existem ao menos cinco tipos de tensões que subjazem ao constitucionalismo latino-americano, que projetam dificuldades e desafios tanto em termos de coerência das reformas como de sua eficácia. A primeira é a possível incoerência ideológica, que existe no interior do próprio programa aspiracional do constitucionalismo, fundamentalmente entre os princípios de justiça distributiva e justiça de reconhecimento, que costuma se expressar também na tensão entre a democracia representativa e participativa, de um lado, e a democracia comunal dos grupos étnicos, de outro. A segunda tensão é a possível incoerência instrumental ou nos instrumentos ou mecanis- mos de transformação social previstos pelas reformas: a aposta simultânea por uma democracia forte e por um constitucionalismo forte pode não ser consis- tente, pois a primeira tende a privilegiar a participação cidadã e o princípio da maioria, enquanto o segundo tende a reformar o poder judicial e, em especial, os tribunais constitucionais, como instituições “contramajoritárias” que garan- tam direitos. A terceira tensão tem relação com o risco de ineficácia devido a um determinado divórcio entre as promessas constitucionais e os projetos institucionais, que poderia levar ao não cumprimento das promessas pela igualdade, diversidade, garantia dos direitos e a democracia. Diretamente ligado ao anteriormente tratado, em quarto lugar, encontramos os riscos auto- ritários. Esta separação relativa entre os princípios ideológicos das reformas e seus projetos institucionais pode ter, às vezes, efeitos mais graves que a ineficá- cia das promessas constitucionais, pois poderia ter consequências antidemocrá- ticas. Por exemplo, o esforço para promover a democracia direta enquanto se preserva um presidencialismo forte talvez alimentasse formas de democracias plebiscitárias e delegativas (O’Donnel), por meio de um modelo de legitima- ção constitucional do caudilhismo. Finalmente, a quinta tensão tem relação com os riscos de inércia constitucional; é a tensão que se desenvolve entre o

velho e o novo, que analisamos a partir do tema do pluralismo e do sistema de fontes jurídicas.

5.2 O risco de incoerência ideológica: as tensões