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O risco do caudilhismo e autoritarismo: a tensão entre a democracia participativa,

Constituições da Venezuela, do Equador e da Bolívia

RECONHECIMENTO E PROTEÇÃO FORTE DOS DIREITOS

5.5 O risco do caudilhismo e autoritarismo: a tensão entre a democracia participativa,

o presidencialismo e o Estado de direito

Às vezes, esta separação relativa entre os princípios ideológicos das refor- mas e seus projetos institucionais pode ter efeitos mais graves, pois não apenas implica certa ineficácia das promessas constitucionais, como tam- bém talvez acarrete consequências autoritárias antidemocráticas. E isto seria além de bastante negativo, também paradoxal, pois uma das grandes tarefas desse novo constitucionalismo é precisamente superar o autoritarismo e o caudilhismo na América Latina. Entretanto, muitos projetos constitucionais caracterizaram-se pela ampliação da democracia participativa sem reduzir significativamente o poder presidencial ou, inclusive, ocasionalmente o reforçando explicitamente, aplicando suas competências, como no Equador, ou prevendo a reeleição presidencial imediata, tal como ocorreu em vários países. Nesse ponto a aspiração e o projeto institucional parecem marchar em direções contrárias, pois a adoção de formas de democracia direta, como refe- rendos ou plebiscitos, que estão acompanhadas por um poder presidencial forte, pode produzir uma combinação explosiva e negativa ao estimular for-

mas de cesarismo democrático ou de democracias “delegativas”, para seguir com a precursora caracterização que O’Donnell (1994) fizera nos anos 1990 do que poderiam ser as tendências da democracia na América Latina.

Esta democracia “delegativa” caracteriza-se como aquela em que o chefe do Estado é eleito popularmente, e, nesse sentido, é democrático; porém, uma vez no poder, considera-se que pode governar do modo que lhe pareça mais apropria- do durante seu período presidencial e sem maiores controles “horizontais” ou de outras instituições estatais. E, se há mecanismos de democracia direta, como os referendos, então um presidente popular pode recorrer a eles para livrar-se das amarras jurídicas e dos contrapesos institucionais que possam afetá-lo.

O risco desse presidencialismo delegativo, do qual vimos tanto expres- sões da esquerda – como Chávez, na Venezuela, ou Correa, no Equador – como da direita – com Menem, na Argentina, Uribe, na Colômbia, ou Fuji- mori, no Peru –, é que afeta profundamente o Estado de direito, pois rompe a separação dos poderes. E isto se presta não apenas a autoritarismos, vio- lações de liberdades básicas e corrupção, como também pode afetar a pró- pria alternância democrática, pois não é rara a tendência desses presidentes populares de buscar a reeleição permanente. Estaríamos, assim, não em uma democracia “delegativa” temporária, como teorizou O’Donnel, mas em uma espécie de presidencialismo “delegativo” permanente. Porém, e além disso, o presidencialismo “delegativo” é contrário ao aprofundamento da delibe- ração e transparência democráticos, pois é o presidente quem, de forma autônoma, ou unicamente aconselhado em segredo por seus conselheiros de confiança, fixa os grandes rumos nacionais.

As justificativas para esses presidencialismos fortes são diversas, mas a fundamental é que é necessária uma unidade de decisão no Estado para con- quistar as transformações radicais que as constituições proclamam, pois em países como os da América Latina, tão instáveis politicamente e com elites tão resistentes às reformas sociais, apenas uma poderosa unidade de ação poderia superar as objeções e anular os bloqueios à mudança. E essa unidade de ação não poderia estar encarnada em uma pessoa diferente de um presiden- te com amplos poderes e legitimado popularmente, por meio de mecanismos de participação democrática direta.

Aqueles que advogam por um presidencialismo forte, geralmente reco- nhecem que há uma tensão entre a busca por mudanças sociais profundas,

a proteção do Estado de direitos e da clássica formulação da separação de poderes. Porém, diante dessa tensão, argumentam que se queremos materia- lizar as transformações igualitárias que a América Latina requer, é indis- pensável limitar a separação de poderes em benefício do poder presidencial, mesmo que isto tenha alguns custos em termos de Estado de direito.

No entanto, essa opção presidencialista nos parece arriscada e desneces- sária. Por isso, talvez, o constitucionalismo latino-americano devesse revisar e revisitar o debate sobre a conveniência do parlamentarismo para a América Latina, que se deu no início dos anos 1990, a partir das reflexões de Linz, Valenzuela ou Nino (LINZ; VALENZUELA, 1994; NINO, 1993). É verdade que, como mostraram alguns estudos posteriores, esse debate inicialmente foi excessivamente simplificado, e é possível que as teses dos mencionados auto- res tenham tido algo de ilusão estatística,67 minimizado a importância dos

contextos sociais e culturais na evolução dos regimes políticos e desconhecido certas virtudes do presidencialismo e sua variedade de formas.

Apesar dessas críticas, acreditamos que o aprofundamento do caráter “delegativo” do presidencialismo latino-americano nos últimos anos mostra a relevância de pensar em fórmulas parlamentares ou semiparlamentares para a região, ainda que alguns estudiosos pensem que seja uma discussão satura- da. Um regime mais parlamentarista poderia ser menos personalizado e mais inclusivo politicamente, pois o governo deve contar com outras forças políti- cas para ter maiorias estáveis nos Congressos, de cujo apoio depende sua con- tinuidade. Além disso, um regime parlamentarista ou semiparlamentarista poderia conquistar a coerência e a unidade política entre governo e parlamen- to que são necessárias para empreender grandes reformas, mas sem os altos riscos do presidencialismo “delegativo”. As fórmulas parlamentares que obri- gam haja uma responsabilidade do Congresso no Governo, são eficazes, pois evitam os bloqueios entre o Executivo e o Legislativo, devido à possibilidade de recorrer a eleições antecipadas, enquanto esses estancamentos ocorrem com frequência no presidencialismo, quando o Governo e o Congresso estão sujeitos a forças políticas distintas. Um regime com características parlamen- tares seria mais inclusivo e representativo e, ao mesmo tempo, mais eficiente.

Evidentemente o que obriga o parlamentarismo é que haja mais negociação política entre as formas antes de adotar uma decisão. As decisões teriam de ser tomadas de modo mais lento e consensual do que em um sistema presiden-

cial, sobretudo se for “delegativo”, em que o governante pode autonomamente e de forma rápida tomar suas determinações. No entanto, isto não deveria ser visto como um defeito, mas, sim, como uma virtude do regime parlamentaris- ta, pois aumenta a deliberação pública que acompanha as decisões estatais, com o que crescem as boas razões para defender um regime parlamentarista ou semiparlamentarista na Colômbia.68

É possível que para a discussão constitucional latino-americana seja rele- vante a conhecida e fecunda distinção do sociólogo Michael Mann entre o poder despótico e o poder infraestrutural do Estado (MANN, 1986). O pri- meiro faz referência à capacidade do governante de tomar decisões sem ter de realizar negociações rotineiras e institucionalizadas com outros setores da sociedade. O segundo tem relação com a capacidade estatal de conseguir implementar logisticamente suas decisões em âmbito social. E esses poderes podem não estar juntos. Desse modo, como mostra Mann, talvez existiriam Estados com alto poder despótico, mas baixo poder infraestrutural, como o foi o Império Romano, pois o imperador podia tomar discricionariamente qualquer decisão, porém sua capacidade de impô-la aos territórios era baixa. Ou, ainda, houve Estados com alto poder despótico e alto poder infraestrutu- ral, como os regimes totalitários do século XX, como o nazismo. Ou Estados com baixo poder despótico e baixo poder infraestrutural, como o regime feu- dal. E, finalmente, as desenvolvidas democracias modernas que se caracteri- zam por ter baixo poder despótico, pois o governante tem de negociar suas decisões com os agentes sociais, mas com altíssimo poder infraestrutural, visto que uma vez tomada a decisão, conta com legitimidade e mecanismos institucionais para torná-la efetiva.

O presidencialismo “delegativo” gera um arriscado poder despótico, sem que seja uma opção necessária para que as constituições possam cumprir suas promessas de mudança social, pois o problema mais importante é a capacidade infraestrutural que tenha o Estado para implementar as decisões. Por isso deve- ríamos pensar em projetos institucionais que reduzam o poder despótico do Estado, mas aumentem sua capacidade infraestrutural.