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e m direção a uma caracterização

BALANÇOS E PERSPECTIVAS

3 e m direção a uma caracterização

do constitucionalismo latino

-

americano

A exposição precedente dá conta de algumas particularidades compartilhadas por parte dos textos constitucionais latino-americanos vigentes no momento, e nos quais se cristalizam as reformas substanciais e os resultados de proces- sos constituintes empreendidos nas três últimas décadas. Como caracterizar esses pontos de coincidência? Estes configuram um modelo do constituciona- lismo latino-americano capaz tanto de se distinguir dos modelos constitucio- nais precedentes, como de definir um elemento regional comum?

3.1 Um constitucionalismo aspiracional,

igualitário e pluralista

Se alguém tentar condensar os pontos expostos na primeira parte deste traba- lho e buscar também captar os padrões que subjazem aos pontos de coinci- dência entre as distintas Constituições latino-americanas das últimas décadas, é possível obter um tipo ideal que teria as seguintes características.47

Primeiro, e ainda que pareça óbvio, todos os ordenamentos mostram uma adesão aos governos civis e uma aposta pela consolidação do Estado de Direito. Essa característica torna-se ainda mais relevante naqueles países da região nos quais as novas constituições marcaram a passagem de um regime autoritário para um democrático. É o caso das Constituições de Honduras (1982), Panamá (1983), El Salvador (1983), Guatemala (1986), Nicarágua (1987), Brasil (1988) e Paraguai (1992), bem como da reforma constitucional de 2005 no Chile, que buscava suprimir as partes autoritárias da Constituição de 1980, aprovada duran- te a ditadura de Pinochet. Cabe, inclusive, mencionar a Constituição colombiana de 1991, que se não era um texto maleável entre um regime ditatorial e um demo- crático, insinuava acabar com os excessos autoritários dos governos civis que por meio do uso e do abuso do Estado de exceção conseguiram colocar entre parên- teses o Estado de direito durante grande parte da segunda metade do século XX.

Mas, essa adesão ao Estado de direito não é apenas teórica, é também prática. Nas últimas décadas, com a exceção da tentativa fracassada contra Chávez e o golpe em Honduras, não houve levantamentos militares. Vários presidentes caíram, como ocorreu em diversas ocasiões no Equador e na Bolívia, não em consequência de intervenções militares, como ocorria no passado, mas por outros fatores, como levantamentos populares.

É indubitável que o afastamento dos militares de aventuras golpistas não é unicamente atribuível às mudanças constitucionais, pois obviamente deri- va de outros fatores, como o fim da Guerra Fria e menos estímulo dos Esta- dos Unidos a esse tipo de intervenções. E é possível que a consolidação de governos civis possa parecer uma conquista, mas implica uma mudança profunda na realidade política e institucional latino-americana, se se consi- dera a frequência das ditaduras militares na região durante os séculos XIX e XX. Em certa medida, a América Latina vive hoje sua primeira verdadei- ra “onda constitucional”.

Segundo, as constituições recentes têm um caráter aspiracional com uma forte matriz igualitária e pluralista.48 Com efeito, parece óbvio que a maior

parte das reformas tinha como propósito a superação de certas tradições de autoritarismo e de arbitrariedade na América Latina, buscando maior conso- lidação do Estado de direito e um aumento da eficácia do Estado, graças ao reforço da capacidade e independência da Justiça e dos órgãos de controle. No entanto, parece igualmente evidente que os processos constitucionais tiveram propósitos mais amplos, pois buscaram também ampliar a democracia e com- bater as exclusões e iniquidades sociais, étnicas e de gênero. Seguindo a ter- minologia de Teitel, a maior parte das reformas transmitem textos que, mais do que olhar para trás (backward looking), projetam-se para o futuro (forward

looking) (TEITEL, 1997), pois, além de tentar codificar as relações de poder

existentes, são documentos jurídicos que tendem a delinear um modelo de sociedade a construir. São, pois, na terminologia de outros autores como Mau- ricio García, constituições “aspiracionais”49 ou, na terminologia de Boaven-

tura Santos, “constituições transformadoras” (SANTOS, 2010, p. 76 e 77), na medida em que elaboram uma proposta de uma democracia includente, capaz de incorporar a democracia e os benefícios do desenvolvimento aos setores tradicionalmente excluídos das sociedades latino-americanas, pois são textos cheios de promessas de direitos e bem-estar para todos.

Esta vocação transformadora tomou, em geral, duas vias: de um lado, são constituições, como já se assinalou, densas em direitos, pois consideramos que o reconhecimento de direitos coletivos ou econômicos, sociais e culturais, sobretudo a proteção judicial, contribui para mais igualdade social e à trans- formação democrática. Por outro lado, as constituições também contribuem para que a transformação se faça por meio de uma ampliação dos mecanismos

de participação democrática, para a qual incorporaram, além da democracia representativa, novos espaços de deliberação e participação cidadã.

Estas duas vias de transformação explicam o terceiro e quarto aspectos do constitucionalismo latino-americano recente: i) um esforço para repensar e reformular a democracia para além das formas representativas e ii) sua entra- da em formas do constitucionalismo forte ou neoconstitucionalismo. Proce- demos, pois, nos seguintes dois pontos para explicar detalhadamente ambos os aspectos.

3.2 Uma democracia forte: os esforços

da reinvenção democrática

Muitas das reformas constitucionais recentes na América Latina, sem recu- sar a democracia representativa, tentaram ir um pouco além, prevendo espa- ços e instituições novas de participação democrática. Os cidadãos têm tam- bém a possibilidade, além de eleger e revogar representantes, de decidir por meios diretos, como os referendos, os plebiscitos ou as iniciativas populares. Há, pois, um verdadeiro esforço de reinvenção democrática que poderia ser teorizado como uma ambiciosa tentativa de articular formas mais clássicas de democracia representativa, que costumam enfatizar a dimensão deliberativa da democracia, com visões mais radicais da democracia participativa.

Isso significa que o constitucionalismo latino-americano recente busca articular, de forma criativa, tendências e tradições distintas do pensamento democrático, em que usualmente se opunham às possibilidades de delibera- ção e às dinâmicas de participação. Desse modo, é possível construir uma tipologia simples de algumas formas de democracia, segundo o grau em que estas admitam, níveis amplos ou restringidos de participação ou deliberação.

Muitas visões democráticas podem ser classificadas com base nessas duas variáveis: i) a amplitude da cidadania e da participação democrática e ii) a amplitude da deliberação democrática pública. Desse modo, de um lado, exis- tem visões políticas e constitucionais que propõem que a cidadania e a parti- cipação democrática devem ser limitadas, por exemplo, para assegurar a governabilidade, enquanto outras opiniões consideram que é necessário esten- der e ampliar a cidadania e a participação democrática não apenas a todas as pessoas, como também ao maior número de campos da vida social, econômi- ca e política. Por outro lado, o tema da deliberação pública igualmente opõe

distintas concepções. Para alguns autores e algumas correntes, a democracia está vinculada simplesmente ao princípio da maioria e à participação cidadã, sem que seja necessária uma discussão pública vigorosa. Ao contrário, outras visões, associadas às correntes da chamada democracia deliberativa (HABER- MAS, 1995; NINO, 1997; GARGARELLA, 1996), vinculam o ideal demo- crático não apenas ao princípio da maioria, mas à existência de uma delibera- ção democrática pública e vigorosa, já que a referida discussão cumpre, para essas perspectivas, funções essenciais para assegurar a qualidade e a vitalida- de da democracia e para conquistar uma sociedade mais justa.

Pois bem, se combinarmos essas duas variáveis, é possível construir uma tipologia das diversas tradições democráticas, como a que faremos no seguin- te quadro: TRADIÇÕES DEMOCRÁTICAS DELIBERAÇÃO PÚBLICA LIMITADA PARTICIPAÇÃODEMOCRÁTICA RESTRINGIDA PARTICIPAÇÃODEMOCRÁTICA AMPLA I: DEMOCRACIAS AUTORITÁRIAS OULIBERAISRESTRITIVAS

II: DEMOCRACIAS REPRESENTATIVAS