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BALANÇOS E PERSPECTIVAS

VALORATIVA OU PROGRAMA

Por um lado, no item I encontramos constituições que são pensadas como um documento político e cujo sentido é essencialmente procedimental. Um exemplo é a visão francesa do constitucionalismo antes de 1958, visto que, pos- teriormente a esta data, a Constituição francesa tornou-se um pouco mais nor- mativa, devido à criação do Conselho Constitucional. Por outro lado, no item II encontramos constituições normativas, mas procedimentais. Hans Kelsen é um dos representantes mais ilustres destas concepções. Este autor defendia o caráter normativo da constituição, porém caso se tratasse de uma constituição que não contivesse valores e princípios abstratos, Kelsen defendia, dessa maneira, uma constituição vinculante, com um tribunal constitucional que assegurasse sua força normativa, entretanto que fosse essencialmente procedimental.

No item III, encontramos as constituições valorativas, que contêm uma ordem de valores muito forte, mas não mais que um documento político, por- que carecem de uma justiça constitucional para aplicá-la. O exemplo mais clássico é o dos antigos países socialistas, cujas constituições proclamavam uma ordem política, social e econômica a ser realizada, contudo não eram normativas porque não havia nenhuma instância ante a qual se pudesse controlar que as ações das autoridades se ajustassem ao prescrito pela cons- tituição. Finalmente, no item IV, encontramos constituições valorativas ou densas em direitos, mas normativas. Essas constituições reconhecem direi- tos e valores e estabelecem uma ordem social a ser materializada e alguma forma de justiça constitucional como garantia para sua realização.

A maior parte das constituições latino-americanas recentes tende a situar- -se no item IV, mesmo com distintos níveis de intensidade. O modelo paradig- mático deste forte constitucionalismo está representado pelas constituições da Bolívia, Colômbia, do Equador e da Venezuela, que além de serem constitui- ções muito densas em direitos e estabelecerem distintos mecanismos para sua proteção, têm os sistemas de justiça constitucional mais acessíveis da região, e talvez do mundo, pois consagram ações públicas por meio das quais qual- quer cidadão pode controverter a constitucionalidade das leis, dando como resultado um pronunciamento judicial com efeito erga omnes. Ao lado deste grupo, as Constituições da Argentina, do Brasil, México e Paraguai, consti- tuem versões moderadas do neoconstitucionalismo, pois as possibilidades de acesso aos tribunais constitucionais são mais restringidas e/ou os efeitos das decisões que estes adotam são mais limitados. No entanto, em todos esses casos estamos diante de expressões do neoconstitucionalismo na região.

Este constitucionalismo forte está também aberto às dinâmicas dos sis- temas internacionais de proteção de direitos humanos, devido ao tratamen- to especial e privilegiado aos tratados respectivos a esse tema, como o expli- camos anteriormente. Isto acentua as possibilidades de proteção judicial dos direitos, ocasionalmente. Quando as dinâmicas internas dificultavam ou fechavam o acesso aos tribunais locais, certos movimentos sociais e orga- nizações de direitos humanos da América Latina recorreram aos mecanis- mos internacionais de proteção destes direitos, como a Comissão ou a Corte Interamericana, a fim de obter decisões ou contribuir com a formação de padrões, que depois usariam no plano interno. Isto permitiu a formação de redes transnacionais de ativismo em direitos humanos, que angariam apoios mútuos e desenvolvem valores compartilhados, e, por essa via, conseguem contribuir na estruturação de padrões internacionais, que depois, por uma espécie de cascata normativa, serão recursos que outros ativistas utilizarão em lutas locais, o que gera na América Latina mais possibilidades de prote- ção judicial dos direitos.52 O neoconstitucionalismo latino-americano é,

dessa maneira, mais vigoroso, devido a esta abertura ao ativismo transna- cional de direitos humanos.

As particularidades precedentes explicam, ainda, certas características for- mais comuns das constituições latino-americanas recentes e tratam, também, de sua considerável extensão, em termos de direito comparado. Essas novas

constituições são não apenas muito mais extensas que aquelas as quais revoga- ram, mas também, em geral, são muito mais extensas que as constituições de outras regiões do mundo, em especial daquelas do capitalismo desenvolvedor.

3.4 A persistência do presidencialismo

Uma última particularidade muito importante do constitucionalismo latino- -americano recente é que nem sequer no plano normativo conseguiu superar essa tradução de hiperpresidencialismo, pois a figura presidencial conserva uma preeminência na estrutura do poder público, apesar das limitadas tenta- tivas para reduzir alguns poderes presidenciais e por fortalecer as assembleias legislativas, a área judicial e os poderes locais. Nesse sentido, para o bem ou para o mal, a vocação presidencialista dos regimes políticos latino-americanos continua sendo parte do acervo constitucional característico da região. É verda- de que, como destacam alguns autores, trata-se de um presidencialismo híbrido e renovado (BLANQUER, 2001, p. 44; NOHLEN; FERNÁNDEZ, 1998), que incorpora certas regras dos regimes parlamentares, como a possibilidade de que o Congresso possa estabelecer moção de censura aos ministros. Mas, em todo caso, o centro do poder estatal continua concentrado na figura presidencial.

4 d

ivergências nacionais

:

os casos especiais

da venezuela

,

bolívia e equador

As particularidades precedentes conferem aos ordenamentos constitucionais atuais da região um determinado ar de “família comum”. Portanto, é possí- vel falar de um constitucionalismo latino-americano atual que tem traços distintivos com relação aos ordenamentos da região no passado. No entanto, existem também diferenças importantes tanto no que diz respeito aos pro- cessos constituintes, como a certos conteúdos e orientações dos ordenamen- tos constitucionais adotados. Em conformidade com essas diferenças, alguns autores destacam a particularidade dos casos de Venezuela, Equador e Bolí- via, e identificam neles um genuíno constitucionalismo latino-americano que não apenas implicaria uma ruptura com o passado constitucional da região, mas também formaria uma aposta inovadora com relação ao consti- tucionalismo europeu e norte-americano que, em boa medida, influencia- ram nos desenvolvimentos constitucionais da região (VICIANO; MARTÍ- NEZ, 2012; FIGUEROA, 2012; PISARELLO, 2009). Coincidem, ainda,

estes autores, ao reconhecerem o caso colombiano como um que, mesmo não fazendo parte deste grupo especial, tornou-se referente importante e um impulsor do que identificam como o verdadeiro novo constitucionalismo latino-americano. Com efeito, apesar de as Constituições de Venezuela, Equador e Bolívia terem elementos importantes que as distinguem da colom- biana, como mostraremos em seguida, esta última, em todo caso, institui um modelo de constituição que vincula o trânsito entre o tipo de constituciona- lismo que até agora temos descrito e as novas apostas constitucionais que fazem os mais recentes processos da tríade andina.

Em seguida, nos referiremos a essas diferenças e ao impacto que elas têm na possível identificação não de um, mas de múltiplos constitucionalismos latino-americanos.