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Poder político concentrado e direitos indígenas expandidos

Outra ilustração desse importante duplo processo de fortalecimento do presi- dencialismo e dos direitos – e, sobretudo, das tensões que são geradas entre ambas as iniciativas – surge quando nos atentamos às mudanças produzidas

na região com relação ao indígena. Tensões como as citadas emergem, tipica- mente, em relação ao reconhecimento dos direitos de propriedade indígena, visto que estes passaram a entrar em conflito com a exploração de recursos naturais realizada nos territórios onde os indígenas estavam assentados, e/ou as garantias que lhes foram oferecidas para que participassem nas decisões nacionais que foram tomadas sobre a utilização de tais recursos. Evidente- mente, tratava-se de medidas expansivas em matéria de direitos indígenas, que eram capazes, todas elas, de questionar a organização do poder dominante.

Reconhecimentos normativos como os assinalados foram, ocasionalmente, resultado da pressão e mobilização dos povos indígenas. Em muitos outros casos, entretanto, foi esse mesmo amparo normativo que se constituiu como antecedente crucial, para a aparição de demandas indígenas urgentes, especial- mente com relação ao uso da terra e à exploração dos recursos naturais (GIRAU- DO, 2008; LILLO, 2003). Tais demandas culminaram em conflitos que envol- veram as comunidades indígenas com os Estados em questão, além de empresas nacionais e transnacionais. Desse modo, por exemplo, a confrontação que ocorreu em Nicarágua, entre os Mayagnas e empresas coreanas, voltadas à exploração madeireira; os conflitos que surgiram entre os Huaorani, Secoya e Cofán, no Equador, contra empresas petroleiras norte-americanas; as dispu- tas que envolveram o povo Mapuce, na Argentina e no Chile, e empresas dedi- cadas à exploração mineira a céu aberto; os enfrentamentos que diversas comu- nidades indígenas provocaram no Peru, em áreas relacionadas à exploração petrolífera, hídrica ou gasífera; ou os ardentes reclamos da comunidade U’wa, na Colômbia, contra empresas petrolíferas (ARIZA, 2009; GARAVITO; ARE- NAS , 2005; RAMÍREZ, 2006; SVAMPA; ANTONELLI, 2009).

No dito contexto, foi comum a geração de conflitos entre a generosidade de cláusulas institucionais que convidavam à participação, consulta e decisão dos grupos indígenas e os concentrados mecanismos de decisão política exis- tentes. Habitualmente, e como sabemos, tais mecanismos diferiam a autori- dade de um Executivo que poderia estar interessado – como foi o caso, comu- mente – em uma exploração mais agressiva e sem nenhuma consideração. Isso, particularmente, dado o extraordinário nível de rápidos rendimentos pro- metidos por essa exploração mais ou menos indiscriminada.

Os grupos indígenas pediram que as cláusulas constitucionais respectivas fossem consideradas, as quais os governos vigentes trivializavam (considerando,

por exemplo, que a “consulta”, com uma mera comunicação às populações envolvidas, seria suficiente) ou diretamente desconheciam (cabe lembrar que, no caso do Equador, ocorreu uma ruptura da aliança entre grupos indígenas, ecologistas, e o governo, depois de, dentro da Convenção Constituinte de Mon- tecristi, ambas as posturas se enfrentarem com relação ao tema: para os primei- ros, deveria ser incorporada à Constituição uma cláusula explícita, condicionan- do a exploração de recursos básicos, como a mineração ou a água, ao consentimento das comunidades indígenas, enquanto para o governo, a consul- ta de tais grupos bastaria – RAMÍREZ GALLEGOS, 2010). Em alguns casos mais extremos, como o da Comunidade U’wa, as tensões chegaram ao julga- mento do conflito, o qual chegou a envolver as mais altas instâncias políticas e judiciais do país, incluindo o Tribunal Constitucional. Quando analisados, os resultados do dito processo político-judicial se tornam ambíguos, visto que eles incluíram decisões judiciais difusas, às vezes favoráveis, às vezes não, às deman- das indígenas, junto a ondas de mobilização e desmobilização por parte dos U’wa depois da intervenção judicial (GARAVITO; ARENAS, 2005).

Em todo caso, o aprendizado que esses processos deixam, em âmbito mais geral, parece evidente: para além das dificuldades próprias para analisar e avaliar os governos que nos são contemporâneos, o que se pretende é reafir- mar a intuição, desenvolvida anteriormente, segundo a qual o compromisso com a participação popular requer uma atenção direta e especial à distribui- ção de poderes vigente, consagrada e na parte orgânica da constituição. Tor- na-se imprescindível, desse modo, por parte daqueles que estão genuinamen- te comprometidos com a promoção de mudanças favoráveis à participação e ao protagonismo político popular (nesse caso, de grupos indígenas), dar aten- ção especial e privilegiada ao que se faz e ao que se deixa de fazer com relação à parte orgânica da constituição.

Além do mais, questões como as assinaladas voltam a nos chamar a atenção a respeito dos problemas próprios do que denominamos “Constituições de mes- cla”, ou seja, constituições que assumem compromissos morais, políticos e/ou jurídicos contraditórios, radicalizando suas tensões internas. E, ainda, como anteriormente assinalado, “a adoção do multiculturalismo e os direitos indíge- nas nos anos 1990 ocorreram paralelamente a outras reformas constitucionais destinadas a facilitar a implementação de políticas neoliberais em razão da glo- balização. Isso incluiu a contração do papel social do Estado e dos direitos

sociais, a flexibilização dos mercados e a abertura das transnacionais, como ocorreu na Bolívia e Peru” (YRIGOYEN FAJARDO, 2011, p. 129).38 Alguns

podem celebrar as “Constituições de mescla” como expressão de um “compro- misso sobre o possível”, ou podem ver uma virtude na ambiguidade constitucio- nal, que seria compatível com um “despertar” futuro dos direitos em questão. Entretanto, a realidade vai reafirmando as dúvidas que poderiam surgir a res- peito. Isso ocorre, primeiro, porque os resultados esperados de tal combinação não podem ser alentadores em contextos em que a estrutura de poder (para além de alguns de seus ocupantes ocasionais) continua inclinada a favor do estado de coisas tradicional, marcado por injustas desigualdades. E, segundo, sobretudo, porque o que está em jogo são as pretensões e os interesses fundamentais de certos grupos que merecem um respeito indubitável, alheio ao condicionamen- to, à negociação e ao intercâmbio de favores e conveniências.

3.7 Repensando a relação entre (mais) presidencialismo