• Nenhum resultado encontrado

Tendências comuns na parte dogmática

BALANÇOS E PERSPECTIVAS

2.1 Tendências comuns na parte dogmática

As modificações na parte dogmática das constituições latino-americanas apontam essencialmente ao reconhecimento da diversidade em múltiplos campos e ao fortalecimento dos direitos constitucionais. A esse respeito, é possível identificar sete pontos comuns a parte das novas constituições:

Primeiro, a maioria das reformas e dos novos textos constitucionais modi- fica de forma significativa o entendimento da unidade nacional, pois já não se trata de promover uma homogeneização das diferenças, como tentaram fazer alguns projetos constitucionais prévios, em décadas passadas,9 mas, pelo con-

trário, de reconhecer as diferenças e valorizar o pluralismo em todas as suas formas. Muitas constituições começam, desse modo, a definir suas nações como pluriétnicas e pluriculturais e estabelecem como princípio constitucio- nal a promoção da diversidade.10

Segundo, as reformas constitucionais expressam um compromisso com a igualdade e a proibição da discriminação, que vai além da concepção do

século XIX da igualdade formal entendida como simples igualdade perante a lei. Além de proibir as distinções arbitrárias com base em critérios histó- ricos de discriminação, como a raça e o gênero, várias constituições outor- gam algum tipo de proteção especial a grupos historicamente discrimina- dos, particularmente aos indígenas, às mulheres e às pessoas em situação de deficiência. A maioria consagra direitos especiais a favor dos indígenas;11

outras contêm algumas disposições a favor dos direitos das mulheres, como as relativas ao acesso igualitário a cargos públicos,12 à erradicação da vio-

lência,13 ou à proteção especial em matéria trabalhista;14 enquanto outras se

referem aos direitos das pessoas com deficiência.15 Igualmente, algumas

estabelecem o dever de adotar ações afirmativas para conseguirem que a igualdade seja real e efetiva.16

Terceiro, e ligado diretamente aos dois pontos anteriores, as reformas cons- titucionais reconhecem a diversidade étnica e amparam especialmente o grupo de indígenas,17 aos quais, inclusive, em certos países, lhe são reconhecidos

direitos especiais e diferenciados de cidadania, como o estabelecimento de circunscrições especiais de representação política – são os casos de Bolívia (art. 146, inc. VII), Colômbia (art. 171), Equador (art. 257) e Venezuela (art. 186, inc. 3) –; o reconhecimento de suas línguas como línguas oficiais – Bolí- via (art. 5), Colômbia (art. 10), Equador (art. 2º), Paraguai (art. 140), Peru (art. 48) e Venezuela (art. 9) –; bem como de um poder judiciário próprio e auto- nomia em seus territórios para a decisão de certos conflitos, de acordo com suas cosmovisões.18

Essa tendência ao reconhecimento da diversidade e à outorga de direitos especiais às comunidades indígenas adquire aspectos ainda mais radicais nas recentes Constituições boliviana e equatoriana que propõem a existên- cia de uma nação de povos ou de um Estado plurinacional, e constituciona- lizam concepções provenientes da tradição indígena, como a noção de vida com qualidade e os direitos que lhe estão associados.19 Além disso, essas

Constituições admitem mais autonomia aos povos indígenas para o governo de seus assuntos.

Quarto, quase a totalidade das reformas foi muito generosa no reconheci- mento de direitos constitucionais a seus habitantes, pois não apenas incorpo- raram os direitos civis e políticos herdados da tradição “demoliberal” – como a intimidade, o devido processo, a liberdade de expressão ou o direito ao voto –,

mas também estabeleceram amplamente os direitos econômicos, sociais e cul- turais – como a educação, a moradia e a saúde – e, inclusive, avançaram no reconhecimento de formas de direitos coletivos, em especial o direito ao meio ambiente, e, inclusive como já vimos, direitos especiais de autonomia e cidada- nia a certos grupos populacionais, em especial os indígenas.20 Nesse aspecto,

também a Constituição equatoriana propõe novidades, pois não apenas estabe- lece direitos não reconhecidos em textos prévios, como o direito à água, como também, inclusive, reconhece direitos à natureza ou “Pachamama” como tal, que é assim, ao menos formalmente, sujeito jurídico.21

As técnicas de reconhecimento desses direitos têm algumas variações nacionais; em alguns casos, como na Argentina, o mecanismo foi a constitu- cionalização direta e expressa de numerosos tratados de direitos humanos;22

em outros, como no Brasil, o mecanismo foi estabelecer esses direitos no tex- tos constitucional;23 outros ordenamentos constitucionais como o colombiano

ou o venezuelano usaram ambos os mecanismos, pois não apenas constitucio- nalizaram certos tratados de direitos humanos, como também estabeleceram diretamente na Constituição uma ampla carta de direitos das pessoas.24 Porém,

independentemente do mecanismo jurídico empregado, a tendência e o resul- tado foram semelhantes: uma ampliação considerável dos direitos constitucio- nalmente reconhecidos, em face dos textos anteriores.

Quinto, esse reconhecimento generoso dos direitos constitucionais ocorreu na maior parte das constituições por uma vigorosa abertura ao direito inter- nacional dos direitos humanos, em especial por meio do tratamento especial e privilegiado dos tratados de direitos humanos (MANILI, 2002; AYALA 2002; ABREGÚ; COURTIS, 2004), que levou a uma ampliação importante por juízes nacionais dos padrões internacionais de direitos humanos, por meio de figuras como o bloco de constitucionalidade, que adquiriu um significado especial na América Latina (UPRIMNY, 2006).25

Esta abertura ao direito internacional dos direitos humanos, junto com o reconhecimento da multiculturalidade (ou, inclusive, da plurinacionalidade) e das competências próprias da jurisdição indígena, foi traduzida em um plura- lismo jurídico acentuado na América Latina, que desgastou o sistema tradi- cional de fontes jurídicas e o papel central que tinha no passado a lei e a regu- lamentação governamental nos ordenamentos jurídicos nacionais. Com efeito, as fontes jurídicas multiplicaram-se, tornando mais complexo o direito, visto

que para conhecê-lo não basta consultar a lei – que, obviamente, continua com um papel importante –, mas também deve-se recorrer aos desenvolvimentos do direito internacional dos direitos humanos e às fontes do direito indígena. Sexto, a maior parte das reformas quis explicitamente que o reconheci- mento dos direitos fundamentais não fosse puramente retórico, mas que tives- se eficácia prática, pelo que foram ampliados os mecanismos para sua prote- ção e garantia. Desse modo, quase todas as reformas previram formas judiciais diretas de proteção dos direitos, como o amparo ou a tutela.26 Adicionalmen-

te, parte das constituições previu, com denominações diversas, formas de

ombudsman ou de “defensores do povo” – o que hoje se conhece, em termos

gerais, como instituições de promoção e proteção dos direitos humanos27 –,

que têm a seu cargo a promoção e proteção dos direitos humanos.28

Sétimo, uma parte das reformas foi orientada pela ideia de ampliar e for- talecer a democracia e os espaços de participação cidadã. Por isso, em geral, não se limitaram a restabelecer a democracia representativa – o que era por si transcendental quando se tratava de superar ditaduras militares –, mas tenta- ram gerar novos espaços de participação cidadã por meio do reconhecimento e ampliação dos mecanismos de democracia direta, como as consultas popu- lares e os referendos.29 Nesse aspecto, as Constituições boliviana e equatoria-

na marcam também diferenças importantes, já que estimulam novas formas participativas, que buscariam superar as limitações da democracia liberal, já que incorporam também o reconhecimento da democracia comunitária desen- volvida pelos povos indígenas (SANTOS, 2010).

Finalmente, várias constituições tendem a superar o confessionalismo imperante de muitos países, os quais outorgavam privilégios importantes à Igreja Católica. No entanto, nesse ponto, não é possível falar de um caráter comum, pois vários países dão amostras da persistência de algumas caracte- rísticas confessionais. A superação está clara nas Constituições de Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Haiti, México, Nicarágua, Paraguai, Uruguai e Venezuela. No entanto, mesmo que todas as constituições latino-americanas reconheçam a liberdade de cultos, a manutenção de específicas características confessionais é evidente em algumas delas. Desse modo, alguns outorgam uma espécie de preeminência à Igreja Católica. Por exemplo, a da Argentina estabelece que o “Governo Federal defende o culto católico apostólico roma- no” (art. 2), e a da Costa Rica dispõe que a religião católica é a do Estado e

que, além disso, reconhece a liberdade de cultos que “não se oponham à moral universal e aos bons costumes” (art. 75).30 Por outro lado, a Constituição do

Panamá “reconhece que a religião católica é a da maioria dos panamenhos” (art. 35) e consagra também a liberdade de cultos “sem outra limitação que o respeito à moral e à ordem pública” (art. 35); a de El Salvador reconhece a representação jurídica da Igreja Católica, mesmo que disponha que as demais igrejas poderão atuar em conformidade com a lei (art. 26); e a do Peru dispõe que, dentro “de um regime de independência e autonomia, o Estado reconhe- ce a Igreja Católica como elemento importante na formação histórica, cultural e moral do Peru e lhe presta sua colaboração” (art. 50).

Outro caráter confessional de algumas constituições é o estabelecimento de disposições que tendem a proscrever a interrupção voluntária das gestações, ao definir que se protege a vida humana desde a sua concepção. Isto ocorre com as Constituições de El Salvador (art. 1), Guatemala (art. 3), Honduras (art. 67) e a da República Dominicana (art. 37). Essas disposições refletem, em boa medida, a influência da Igreja Católica na configuração de alguns dos princí- pios constitucionais que eventualmente podem censurar os dogmas religiosos.