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Com base no ponto anterior, Gargarella critica algumas interpretações

AO TEXTO “200 ANOS DE CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO”

4. Com base no ponto anterior, Gargarella critica algumas interpretações

atuais (PISARELLO, 2010; NEGRETTO, 2011; HARTLYN, 2011) as quais denomina “compensatórias”, que veem com infundado otimismo a possibilidade de que as cartas de direitos atuais, amplas e generosas, invoquem a participação popular, de tal maneira que isso possa, por si só, contra-arrestar a consabida tendência à concentração do poder pre- sidencial.

Em termos gerais, compartilho a orientação de tais ideias e, mais ainda, acredito que, como já disse, são uma contribuição substancial ao estudo do constitucionalismo latino-americano. Não obstante, e com o intuito de ali- mentar o debate que oportunamente propõe este artigo, gostaria de fazer um par de comentários críticos.

A minha impressão é que Roberto Gargarella tem razão em apresentar a importância que tem o que ele denomina a “sala de máquinas” constitucional e, em consequência, em criticar as posições “compensatórias” que veem nas cartas de direito uma espécie de potencial redentor em relação aos excessos do presidencialismo latino-americano.

Entretanto, ao falar da “sala de máquinas”, Gargarella reproduz um otimis- mo similar ao que critica as posições compensatórias. Duvido muito que uma intervenção, inclusive decidida e cuidadosa, na parte orgânica das constitui- ções seja, por si só, um remédio para acabar com esses excessos. Pode ser um remédio necessário, mas não suficiente. O otimismo das posições compensa- tórias (PISARELLO e NEGRETTO, entre outros) parece-me tão infundado como o otimismo da tese mecanicista que nos propõe aqui Gargarella e que, a meu juízo, superestima o papel redentor que a “sala de máquinas” possa ter em relação aos vícios clientelistas e caudilhistas da classe política. Isso não

significa que se trate de uma intervenção inócua, evidentemente, mas de uma intervenção, repito, parcial e insuficiente.

A minha questão é que a tese mecanicista menospreza (como a tese com- pensatória) a dependência relativa que as constituições latino-americanas têm em relação a dois fenômenos estruturais de grande envergadura: um de tipo cultural relacionado à precariedade do ideário liberal na classe política e outro de tipo material relacionado à falta de uma verdadeira democratização social do poder político.

Começo com o primeiro fenômeno. Segundo Gargarella, os novos feitores de constituições no continente cometeram o “erro” de impulsionar ambiciosas reformas sociais sem ingressar à “sala de máquinas”; ou seja, sem intervir na parte orgânica das constituições que projetaram. Compartilho desta ideia, mas não creio que tal fato se possa caracterizar como um erro. Gargarella supõe que os constituintes compartilham a crença liberal de que a parte orgâ- nica das constituições é uma parte substancial (não simplesmente procedi- mental) tão importante como a parte dogmática. Sendo assim, o problema estaria no fato de que são liberais pouco cultivados, que não conhecem bem os segredos do projeto institucional e por isso se equivocam. No entanto, pare- ce-me mais plausível o fato de que tal subestimação se deva a sua falta de espírito liberal. Talvez o problema não seja tanto que os constituintes atuais sejam menos competentes que os do século XIX (que provavelmente o são), mas que sejam menos liberais e por isso acreditam menos na importância que tem a caixa de ferramentas. Desse modo, um dos problemas estruturais que enfrenta o constitucionalismo latino-americano é a disparidade entre a impor- tância de modelos institucionais em ideários liberais e um ambiente político e cultural, a partir do qual se interpretam as normas constitucionais, que menospreza tal ideário liberal.

Passo ao segundo fator estrutural. Inclusive se os feitores das constituições fossem inspirados por ideais liberais e tivessem tido o cuidado de ingressar e modificar de maneira adequada a “sala de máquinas” constitucional, parece- -me pouco provável que este mecanismo por si só seria suficiente para produ- zir as mudanças sociais e políticas que são requeridas para colocar em prática as cartas de direito que tais constituições consagram. As constituições não produzem, por si só, revoluções sociais. Isso não significa que sejam inócuas, mas que fazem parte de uma engrenagem complexa que requer muitos outros

elementos sociais, culturais e políticos para produzir tais mudanças. Se as reformas pretendidas pelas constituições dos últimos anos ficaram nas mãos de presidentes autoritários, isso se deve não apenas à cultura caudilhista desses últimos, mas também à falta de uma democratização social efetiva do poder político. É verdade que houve substituições em algumas elites gover- nantes, mas a participação política e a democratização do poder continuam sendo muito precárias. O presidencialismo não apenas se alimenta da falta de normas constitucionais que o fiscalizem, mas também e, sobretudo, de uma cultura centenária caudilhista e elitista que apenas pode ser contra-arrestada, como revela a história do constitucionalismo na Inglaterra, na França e em muitos outros países, com um poder popular que participe na aplicação e no desenvolvimento dos textos constitucionais (JARAMILLO, et al., 2012). Na América Latina, falta fortalecer mais o poder popular, mas não a partir do Estado (como no Equador e na Venezuela), e sim a partir dos próprios cida- dãos. Apenas desse modo, em conjunto com um poder judiciário independen- te, pode haver um contrapoder suficientemente forte para tornar efetivo o ideário liberal e igualitarista que, segundo Gargarella, deveria potencializar a “sala de máquinas” constitucional.

Assim, pois, há fatores estruturais de ordem cultural, como a falta de ide- ologia liberal e de ordem material, como a falta de uma democratização social do poder político que limitam a possibilidade de que apenas uma intervenção na caixa de ferramentas possa ser suficiente para produzir grandes mudanças sociais. Gargarella tem razão ao assinalar a dependência que as cartas de direito têm com relação à “sala de máquinas” constitucional. O que acredito é que tais cartas também dependem das estruturas mentais e materiais que movem os fios do poder político na América Latina e que, em face delas, as constituições apenas têm um poder relativo, que é algo que deveriam conside- rar os idealizadores das constituições.

Mais ainda, analisando melhor, esta visão mais integral e mais política das constituições, ao expor a importância que tem a eficácia simbólica das cartas de direito, dá mais oxigênio às visões compensatórias. Explico-me. Gargarella parece supor que as novas constituições sociais na América Latina são espé- cies de normas sem estrutura, de aspirações sem senso de realidade, que ine- xoravelmente se reduzem a uma quimera. É fato que os excessos simbólicos da retórica constitucional são um mal do direito latino-americano, já mencionado

por Bolívar quando se referia às repúblicas aéreas. No entanto, não podemos esquecer que a eficácia simbólica é uma faca de dois gumes: pode servir para reificar a realidade social e por essa via legitimar o poder político, ou pode servir também para criar a consciência de que os direitos são alcançáveis e por essa via mobilizar a população para lutar por eles (GARCÍA VILLEGAS, 2012a). Para que ocorra um ou outro, isso depende de muitos fatores sociais e políticos que vão para além da ordem normativa.

Em todo caso, não é fácil desqualificar as aspirações que as novas consti- tuições trazem como inevitáveis símbolos inoficiosos ou inócuos. Tais aspira- ções podem, eventualmente, ser bandeiras importantes de mudança social e política. No mundo constitucional, os símbolos (depositados nos princípios e nos direitos) podem desempenhar, em médio prazo, um papel tão importante como as regras da organização do poder. Por isso, não é conveniente desqua- lificar, a princípio, essa dimensão simbólica. Mais que textos escritos de uma vez por todas, as constituições são o resultado de lutas políticas pela fixação do sentido de seus textos, pelo afirmamento de seus símbolos.

Tudo isso exemplifica a enorme complexidade das condições que se reque- rem para que uma constituição aspiracional (GARCÍA VILLEGAS, 2012b), como as promulgadas na Venezuela, no Equador, na Bolívia ou, inclusive, no Brasil ou na Colômbia, possa produzir as mudanças a que se propõe. É neces- sário não apenas uma boa estrutura normativa, como um adequado desenvol- vimento entre a parte dogmática e a parte orgânica, e condições sociais favo- ráveis, mas também um encadeamento político propício entre os textos constitucionais e a realidade por meio de movimentos sociais comprometidos com o texto constitucional, de cidadãos militantes a favor dos direitos e de uma justiça independente que proteja os cidadãos e garanta seus direitos.

: ALBERDI, J. B. Bases y Puntos de partida para la organización política de la República

Argentina. Buenos Aires: Plus Ultra, 1981.

: HARTLYN, J. “Commentary: constitutional structure in Latin America”. Texas Law

Review, n. 89(7), p. 1.977-1.983, 2011.

: LINZ, J.; VALENZUELA, A. The failure of presidential democracy. Baltimore: The John Hopkins University Press, 1994.

: NEGRETTO, G. “Shifting constitutional designs in Latin America: a two-level explanation”.

Texas Law Journal, n. 89(7), p. 1.777-1.806, 2011.

: NINO, C. S. (ed.). Presidencialismo vs. parlamentarismo. Buenos Aires: Consejo para la Consolidación de la Democracia, 1987.

: PISARELLO, G. “El nuevo constitucionalismo latinoamericano y la Constitución venezolana de 1999: balance de una década”. Disponível em: <http://www.sinpermiso.info/ articulos/ficheros/venezuela.pdf>. Acesso em 31 out. 2016.

: SAMPAY, A. Constitución y pueblo. Buenos Aires: Cuenca Ediciones, 1973.

: VILLEGAS, M. G. Laeficaciasimbólicadelderecho. Sociología política del campo jurídico en América Latina. Bogotá: Debate, 2014a.

: _______. “Constitucionalismo aspiracional: Derecho, democracia y cambio social en América Latina”. Análisis Político, n. 75, p. 89-110, 2012.