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O caso venezuelano: democracia a partir de baixo, fortalecimento presidencialista

a tensão entre o velho e o novo

6 e xcurso : desafios e riscos das distintas vias

6.2 O caso venezuelano: democracia a partir de baixo, fortalecimento presidencialista

e erosão do Estado de direito

O período de existência da Constituição da Venezuela de 1999 praticamen- te coincide com o da duração do governo do presidente Chávez. De fato, para sermos mais precisos, podemos dizer que esta constituição não conheceu outro presidente. Este fato é revelador, pelo menos em dois aspectos. Em pri- meiro lugar, sugere que o balanço sobre o alcance transformador da Consti- tuição de 1999 traslada-se, inevitavelmente, em boa medida, com o balanço da gestão política do chavismo, principalmente se se considera que esta cons- tituição é o resultado da ascensão desta força política na Venezuela. E, em segundo lugar, mostra algo óbvio, mas significativo: que o presidente Chávez permaneceu no poder mais do que qualquer outro presidente eleito popular- mente na região durante estas últimas décadas de mudanças constitucionais. O caso venezuelano ilustra bem as diferenças do balanço entre as três tra- dições constitucionais que nutrem a maioria das constituições latino-ameri- canas – a liberal, a democrática e a social. O ator protagonista no processo de materialização das aspirações constitucionais foi o governo liderado por Chá- vez que, junto com suas bases populares, deu foco na realização das promes- sas de bem-estar social e na promoção e exaltação da democracia participati- va. A ênfase nestes dois aspectos inclinou a balança a favor das dimensões democrática e social da constituição. No entanto, esta centralidade do governo chavista, aliada ao carisma pessoal e ao estilo populista de Chávez, fez gravi- tar o projeto de transformação representado na constituição em torno da figu- ra presidencial, com o que não apenas se fortaleceu o presidencialismo, como também colocou-se em dúvida dois dos princípios essenciais do Estado de direito e do constitucionalismo liberal: a alternância no poder e a independên- cia das áreas do Estado.

Sem entrar na avaliação dos meios utilizados, os resultados em matéria social alcançados pela Venezuela nas últimas décadas são destacáveis. Pode-se dizer que a Venezuela é um dos países na região que mais avançou em termos sociais justo no período posterior a uma mudança constitucional. Segundo os dados da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe, CEPAL, a Venezuela passou de 49,4% de sua população vivendo sob a linha da pobreza em 1999, para 27,8% em 2010 (CEPAL, 2011). Isto é, em uma década houve uma redução de

21,6 pontos, apenas superada na região pelo Equador, que mudou de uma por- centagem de 63,5% em 1999 para 37,1% em 2010. Mas não houve apenas uma redução da pobreza, também existiram nesses anos resultados muito importan- tes em termos de diminuição da desigualdade. Por exemplo, se analisarmos a clássica medida do Coeficiente de Gini, que varia de 0 (total igualdade) a 1 (total desigualdade), a Venezuela teve resultados notáveis desde a aprovação da cons- tituição e durante os governos de Chávez: conseguiu uma redução de mais de dez pontos, chegando a 0,38, o que a torna o país mais igualitário em âmbito da distribuição de renda na América Latina, inclusive com um resultado melhor que o tradicionalmente igualitário Uruguai (CEPAL, 2010; 2012). Essa redução da desigualdade econômica implicou a passagem da Venezuela de um país com brecha social média para um de brecha social baixa (CEPAL, 2010).

É fato que a Venezuela não foi o único país a reduzir a pobreza e a desi- gualdade, pois há outros exemplos de sucesso, como o Brasil e o Panamá, porém esses indicadores sociais não são de pouca envergadura se considerar- mos que as pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza são aquelas que, por definição, não têm muitos de seus direitos garantidos. Nesse sentido, a supe- ração da pobreza e a redução da desigualdade são pressupostos iniludíveis para a garantia efetiva dos direitos, e por esta razão, as notáveis conquistas da Venezuela nessa matéria constituem uma evidência do avanço na realização de uma das grandes aspirações do constitucionalismo latino-americano, que é a de construir sociedades mais democráticas e igualitárias.

A outra particularidade do caso venezuelano é o lugar de destaque que adquiriu o princípio da soberania popular. Este fenômeno está ligado à noção da democracia radical, que questiona os limites do modelo representativo liberal, advoga pelo aprofundamento da participação direta da população e reivindica o sujeito popular como fundamento primordial do direito e como garantidor da última palavra em âmbito constitucional. Em concordância com este princípio, o Estado venezuelano promoveu a organização das comunida- des locais e foram definidos mecanismos institucionais para a participação da população nos cenários de planejamento e, inclusive, na gestão direta de pro- jetos de acordo com as prioridades definidas pelas próprias comunidades. Uma das estratégias de maior destaque foi a conformação dos Conselhos Comunais, que são definidos como “uma instância de participação para o exercício direto da soberania popular”.77 Esses conselhos são instâncias locais

que agrupam pessoas que habitam um mesmo território com o objetivo de definir e executar projetos em benefício de suas respectivas comunidades, para o que contam com o apoio técnico e financeiro do Governo Nacional. Estimava-se que no ano de 2011, dois anos depois da promulgação da lei que os regulamenta, existiriam por volta de 38.000 Conselhos na Venezuela, nos quais as mulheres são majoritariamente as porta-vozes (LALANDER, 2012).

Esses conselhos ampliaram e aprofundaram a democracia no país em cer- tos aspectos, na medida em que permitiram que as pessoas participassem na definição das prioridades para seu próprio desenvolvimento e favoreceram o reconhecimento efetivo de pessoas que foram tradicionalmente excluídas e marginalizadas dos assuntos públicos como sujeitos políticos. No entanto, uma das críticas elevadas a este mecanismo é a relação direta que há entre os conselhos e a Presidência da República, o que não apenas visa a fortalecer as tendências presidencialistas uma vez que envolve diretamente o governo cen- tral na gestão dos assuntos locais, como também pode minar a própria auto- nomia das organizações populares (LOVERA, 2008). Essa relação estreita entre as instâncias da participação popular e o Poder Executivo gerou descon- fiança em alguns setores que veem os Conselhos como organizações pensadas para os partidários do governo, o que inclusive conduziu à fundação da Fren- te de Conselhos Comunais Excluídos. Mesmo que não seja possível reduzir os conselhos a simples agrupações chavistas,78 a débil autonomia destes ante o

governo constitui um risco em termos do próprio fortalecimento da democra- cia participativa (LALANDER, 2012).

A situação dos Conselhos em relação ao poder executivo revela na rea- lidade um dos elementos fundamentais para entender o tipo de constitucio- nalismo que surgiu juntamente com o projeto chavista: o fortalecimento do presidencialismo a partir da invocação da soberania popular. Desse modo, aqueles que defendem a reeleição indefinida na Venezuela assinalam que a incorporação da figura foi decidida pela maioria do povo venezuelano por meio de um mecanismo de democracia participativa e que, além disso, a permanência de Chávez no poder foi também o resultado de um processo eleitoral com ampla participação popular. Por exemplo, o filósofo Ernesto Laclau defendeu a reeleição indefinida na Venezuela e mostrou-se, inclusi- ve, favorável a sua implementação na Argentina para permitir a continui- dade da presidenta Cristina Kirchner, sob uma defesa do populismo como