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Tendências comuns na parte orgânica

BALANÇOS E PERSPECTIVAS

2.2 Tendências comuns na parte orgânica

As reformas constitucionais das duas últimas décadas trouxeram igualmente mudanças importantes no projeto das instituições, em especial no âmbito do sistema judicial, do regime político e do ordenamento territorial.

Primeiro, um elemento comum na maioria dos processos constitucionais na região foi o esforço por fortalecer o sistema judicial, não apenas para aumentar sua eficiência a fim de acossar o delito e tramitar os conflitos,31 mas também

para aumentar sua independência que era vista, com razão, como extremamen- te precária em toda a região.32 Para este último propósito, um mecanismo

comum foi a tentativa de retirar a nomeação e a carreira dos juízes da interven- ção direta do poder executivo, por meio da criação de instâncias autônomas de administração da área judicial e encarregadas parcialmente da seleção dos juízes, usualmente denominadas conselhos superiores da magistratura.33

Outros países não criaram órgãos autônomos de administração da área, mas, encomendaram essa tarefa ao Supremo Tribunal, tal como ocorre no Chile (art. 82). E outras Constituições, como as do Panamá (art. 214) e da Guatemala (art. 213), conferem uma porcentagem fixa do orçamento para a área judiciária.

Segundo, o fortalecimento da área judicial não se limitou às reformas des- tinadas a aumentar sua eficiência e sua independência, mas também consistiu em lhe atribuir responsabilidades importantes na proteção e garantia de direi- tos e no controle das eventuais arbitrariedades dos órgãos políticos, por meio da incorporação ou fortalecimento de formas de justiça constitucional. Prati- camente todos os países contam com um sistema de gestão constitucional concentrado;34 e as do Brasil (art. 97), da Colômbia (art. 4), da Guatemala (art.

266), de Honduras (art. 185, n. 2), do Peru (art. 138) e da Venezuela (art. 334) contam também com mecanismos de controle difuso. Na Argentina, é total- mente difuso e opera mediante a ação de amparo (art. 43). No Haiti, o contro- le é exercido apenas pela Corte de Cassação, em função dos litígios que a ela cheguem (art. 183).

Este sistema de controle constitucional judicial foi acompanhado em mui- tos casos pela consagração de uma ação pública de inconstitucionalidade, por meio da qual os cidadãos podem impugnar as normas gerais por sua incom- patibilidade com a constituição, pelo que pode operar tanto como um meca- nismo judicial para a proteção dos direitos, como uma via de participação cidadã nos assuntos públicos. As diferenças entre os países ocorrem com relação à facilidade de acesso para o exercício da ação. Bolívia (arts. 135 e 212), Colômbia (art. 246), Costa Rica (art. 10), Equador (art. 436), El Salvador (art. 174), Guatemala (art. 267), Nicarágua (art. 187), Panamá (art. 206, n. 1) e Venezuela (art. 334) contam com uma ação pública ampla, sem maiores limi- tações para seu exercício. Em Honduras (art. 185), República Dominicana (art. 185, n. 1) e Uruguai (art. 258) a ação é pública, mas com algumas restrições, pois é necessário demonstrar um interesse legítimo. No Brasil (art. 103) e no México (art. 105, inc. II), a ação apenas pode ser apresentada por certas auto- ridades ou organizações políticas ou acadêmicas. E, no Peru, pode ser apre- sentada a demanda com o respaldo de cinco mil assinaturas dos cidadãos.35

Terceiro, do ponto de vista da organização territorial do poder, a totali- dade das constituições sugere fortalecer os processos de descentralização, por meio de três dispositivos institucionais considerados complementares. Em primeiro lugar, a ampliação dos funcionários locais eleitos por voto popular, pois, no passado, muitos deles eram designados pelas autoridades nacionais, em especial pelo presidente.36 Em segundo lugar, a atribuição de

locais.37 E, por fim, o estabelecimento de mecanismos para fortalecer eco-

nomicamente as autoridades locais, em especial, e graças ao sistema de transferências de recursos do governo central aos governos locais.38

Convém destacar que o fortalecimento da autonomia territorial provocou debates intensos em certos processos constitucionais, como o boliviano, sobre- tudo os que têm relação com a administração centralizada ou não do dinheiro proveniente dos recursos naturais, pois era esse conflito que enfrentavam as regiões ricas e petroleiras, como Santa Cruz, diante das pretensões mais cen- tralizadoras nesse aspecto do governo de Evo Morales e do movimento indí- gena. O dito conflito ameaçou a viabilidade do processo constituinte. E no caso venezuelano também foi feito um debate a esse respeito, pois alguns setores acusaram o presidente Chávez de ser inimigo da descentralização, ao promover formas de organização comunal em âmbito local mas dependentes do nível central (LALANDER, 2012).

Quarto, o fortalecimento da independência da área judiciária – especial- mente diante do poder executivo – e dos processos de descentralização – par- ticularmente no que diz respeito à eliminação ou restrição do poder do presi- dente de designar mandatários locais – foi acompanhado em muitos países de uma estratégia mais global de reprojeto do regime político, com o fim de reduzir os excessos do poder presidencial, que eram vistos como uma das raí- zes do autoritarismo em quase todos os processos constitucionais regionais. A medida predominante entre os países latinos para tal fim foi a ampliação dos poderes de controle do Congresso sobre o Executivo por meio de interpe- lações, julgamentos de responsabilidade política e, em alguns casos, a possi- bilidade de vetar ministros.39 Outra via comum praticamente para a totalida-

de dos países e que tem efeitos sobre a redução do poder presidencial é o reconhecimento da maior autonomia ao Banco Central, a fim de diminuir a política monetária da influência direta do governo.40 Nesse aspecto, a única

exceção é o Equador, onde a política cambiária, monetária, creditícia e finan- ceira é poder do Executivo e o Banco Central está submetido a ele.

Por outro lado, a maioria dos países impede a reeleição presidencial imedia- ta. Isto ocorre na Guatemala, no Haiti, no Panamá, no Paraguai, no Peru,41 no

Chile, no México, na República Dominicana, em El Salvador, em Honduras e na Nicarágua. Entretanto, nos últimos anos, vários países aprovaram a possibi- lidade da reeleição imediata do presidente, em especial, para poder eleger gover-

nantes carismáticos, tal como ocorreu na Argentina com Menem, no Brasil com Cardoso, na Colômbia com Uribe e na Venezuela com Chávez.42

As tentativas de enfraquecimento do presidencialismo foram limitadas, pois não apenas nenhum país latino-americano optou por fórmulas parlamen- tares,43 apesar de ter havido nos anos 1990 múltiplas propostas acadêmicas

que defenderam os benefícios do parlamentarismo para os nossos regimes políticos,44 como também as constituições da região conservaram para o pre-

sidente poderes enormes ante o modelo presidencial clássico, como a possibi- lidade de nomear e remover diretamente, sem nenhuma intervenção do Con- gresso, os seus ministros (GARGARELLA, 1997). Por outro lado, durante as três últimas décadas, os poderes legislativos do presidente, ao invés de reduzir, aumentaram. Desse modo, o poder de objetar as leis universalizou-se na região durante esse período, e a possibilidade de propor reformas constitucionais consagrou-se em 90% dos casos (CHEIJUB; ELKINS; GINSBURG, 2011), enquanto apenas em alguns países foram fixadas restrições expressas a outor- ga de poderes legislativos com relação a algumas matérias como os direitos constitucionais, os mecanismos de participação democrática, a divisão políti- co-administrativa, a aprovação de tratados internacionais e das leis de orça- mento e o estabelecimento de impostos.45

Quinto, a criação ou fortalecimento de órgãos autônomos orientados a fim de aumentar a transparência no acesso e no exercício da função pública. Por um lado, praticamente todas as constituições46 esforçaram-se para reconhecer

explicitamente no próprio texto constitucional alguma forma de organização eleitoral autônoma e especializada, com o objetivo de assegurar mais impar- cialidade e transparência nos processos eleitorais. Algumas reformas recor- reram à criação de um órgão judicial, como o Tribunal Superior Eleitoral mexicano, ou, às vezes, instauraram órgãos não judiciais, como o Conselho Nacional Eleitoral colombiano, mas, em todo caso, trata-se em geral de ins- tâncias especializadas e autônomas, com as quais as reformas recentes tende- ram a consolidar o que alguns chamaram de modelo latino-americano de organização eleitoral, por oposição ao modelo europeu, no qual não existe organização eleitoral autônoma. Por outro lado, todas as constituições latino- -americanas consagram uma controladoria ou auditoria geral encarregada de fiscalizar a administração dos recursos públicos, fortalecendo, desse modo, os processos de prestação horizontal de contas.