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Programas “neoliberais”, crise social e autoridade presidencial

Ao falarmos sobre programas “neoliberais”, referimo-nos aqui aos extremos programas de ajuste estrutural aplicados na América Latina desde os anos 1980. Tratava-se da continuidade que se dera na região das políticas moneta- ristas, anti-estatistas, de drástica redução do gasto público e, sobretudo, de eliminação dos programas de proteção social, que começaram a ser aplicados na Europa (em um movimento liderado pela Grã-Bretanha, sob a direção da Primeira Ministra Margaret Thatcher), e nos Estados Unidos, durante a pre- sidência de Ronald Reagan (ETCHEMENDY, 2011; CAVAROZZI; ABAL MEDINA, 2002; SVAMPA, 2005).

O impacto dessas políticas de ajuste estrutural sobre o constitucionalismo foi enorme: por um lado, a chegada de tais programas, diretamente, acompa- nhou ou impulsionou mudanças no âmbito constitucional dirigidas a fim de facilitar a aplicação das reformas do caso; por outro lado, a crise social gerada pela aplicação daqueles programas também produziu consequências consti- tucionais fundamentais. Aqui, nos concentramos fundamentalmente em duas de tais consequências. Argumentaremos, por um lado, que as situações da crise social geradas pelas reformas levaram muitos a reclamar novamente o restabelecimento de uma autoridade presidencial “forte”; por outro lado, vere- mos de que modo tais crises marcaram o nascimento de um constitucionalis- mo de caráter popular e social ambicioso como poucas vezes observado.

Com relação ao impacto constitucional mais direto dos programas de ajus- te, podemos citar mudanças significativas impulsionadas sobre os textos vigentes, destinados a facilitar a aplicação das novas fórmulas econômicas. O constitucionalista Gerardo Pisarello, por exemplo, cita os casos das 35 emendas

impulsionadas por Fernando Henrique Cardoso, sobre a Constituição do Bra- sil de 1988, destinadas a facilitar o processo privatizador; a reforma do art. 58 da Constituição da Colômbia de 1991 – promovida pelo governo conservador de Andrés Pastrana – destinada a dar mais garantias de “caráter intocável” aos investimentos estrangeiros; a modificação do art. 27 da Constituição do Méxi- co, com o intuito de “acabar com a distribuição agrária”; a reforma constitu- cional peruana de 1993 (impulsionada pelo presidente Fujimori, logo depois de um autogolpe), que eliminou muitos dos compromissos sociais assumidos pela Constituição de 1979; ou as garantias ao “valor da moeda” asseguradas pela Constituição da Argentina de 1994, elaborada durante a presidência de Carlos Menem (PISARELLO, 2011). Em sentido similar, podem ser mencio- nadas as vastas iniciativas para reforma judicial que circularam na região, durante aqueles anos, promovidas pelo Banco Mundial ou outros órgãos finan- ceiros multilaterais: buscou-se, desse modo, assegurar que o Poder Judiciário ajudasse a promover um marco estável nas transações econômicas caracterís- ticas da época (DOMINGO; SIEDER, 2001).

Imediatamente, esta primeira etapa, que acompanhou a aplicação estendi- da desses programas de ajuste, foi seguida por outra prolongada e profunda crise social. Como resultado das graves consequências derivadas dos progra- mas monetaristas, a habitualmente mobilizada cidadania latino-americana começou a fazer levantes mais uma vez.

Característicos desse período de protestos foram os levantes e os movi- mentos contrainstitucionais que começaram a ocorrer na região. Uma das primeiras e mais notáveis expressões de tais queixas foi a insurreição do cha- mado Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), liderado pelo Sub- comandante Marcos, que ocorreu em 1º de janeiro de 1994 (ano da entrada em vigência do Tratado de Livre Comércio da América do Norte), no estado de Chiapas, no sul do México. O EZLN exigia, em seus reclamos, e retomando as velhas bandeiras do movimento zapatista mexicano, democracia, liberdade, terra, pão e justiça para os postergados grupos indígenas do país. Desta época destacam, igualmente, as mobilizações populares que ocorreram na Argenti- na no final dos anos 1990 e início do novo século; as graves “guerra da água” (2000) e “guerra do gás” (2003) na Bolívia, dirigidas contra a privatização de setores básicos da economia local; as crescentes ocupações de terra no Brasil pelo Movimento Sem-Terra (MST); as “ocupações” praticadas pelas populações

pobres em Santiago do Chile; as “invasões” produzidas em Lima pelos desa- brigados buscando moradias; ou os levantamentos indígenas nas zonas minei- ras no Peru (SVAMPA, 2008; SVAMPA et al., 2010). O que se torna relevan- te, para o propósito desta análise, é que tais crises foram resolvidas de modo socialmente bastante custosos, mas sem cair – como havia sido a regra nas décadas anteriores – em processos de quebra institucional.

Paradoxalmente, a conclusão que muitos deduziram, de crises semelhan- tes, foi dupla (e, poderíamos agregar, duplamente preocupante), não apenas declarou-se que: i) os sistemas políticos haviam aprendido a lidar com tais eventos de modo “exitoso” (sem golpes de Estado), mas considerou-se ii) que os processos em questão assinalavam a necessidade de – outra vez – recuperar ou reforçar a autoridade presidencial, em face da ameaçadora situação de “vazio de autoridade” ou “caos político”, que afetava tantos países na região. Definitivamente, a mesma crise institucional que poderia ter reafirmado o ceticismo existente em torno das bondades do hiperpresidencialismo, acabou por se colocar a serviço do dito sistema, reforçando-o, o que representa uma leitura muito questionável do ocorrido.23

Efetivamente, as crises desatadas na região desde o final dos anos 1990 não implicaram golpes de Estado, mesmo que terminassem, em muitos casos, com gravíssimas quebras institucionais que ocorreram junto às crises políticas, combinadas em muitos casos com amplos processos de rebelião popular. Entre outros resultados, ditos protestos e crises forçaram a renúncia (habitual, mas não unicamente, por meio de mecanismo de julgamento político) do presiden- te Collor, no Brasil, em 1992; Carlos Andrés Pérez, na Venezuela, em 1993 (ambos destituídos após processos de corrupção); Abdala Bucaram no Equa- dor, em 1997 (depois de uma insólita declaração de incapacidade mental); Raúl Cubas, no Paraguai, em 1999 (renunciou após um processo de julgamen- to político que foi iniciado após liberar um militar acusado de conspiração);24

Alberto Fujimori, no Peru (que decide fugir do país em 2000, depois de iniciar um julgamento político contra ele); Lucio Gutiérrez, no Equador (que termina sendo derrocado em 2005); Fernando de la Rúa e seus sucessores imediatos, na Argentina (forçados a renunciar, em 2001, após uma agitada série de pro- testos populares); González Sánchez de Losada e Carlos Mesa, na Bolívia, em 2003 e 2005, respectivamente (ambos levados a renunciar também depois de fortes protestos populares).25

3.3 Da crise “neoliberal” à reforma constitucional