• Nenhum resultado encontrado

Ditadura, direitos humanos e hiperpresidencialismo: Brasil 1988 e Chile

O constitucionalismo no final do século XX foi muito impactado pelos dois fatos históricos mais significativos na época: a crise política e de direitos humanos derivada do avanço de ditaduras e governos autoritários em torno dos anos 1970 e a crise econômica relacionada com a aplicação dos programas de ajuste estrutural característico dos anos 1990.19 Em seguida, referir-nos-e-

mos a cada um deles com mais detalhes.

Acima de tudo, cabe assinalar que a influência das ditaduras no desenvol- vimento do constitucionalismo do final do século XX se mostrou, conforme dissemos, muito importante. Dito impacto foi direto em certas ocasiões e em outras, mais indireto. Casos como o do Chile e do Brasil ilustram de modo notável o que significou essa influência direta do constitucionalismo militar sobre a vida política da região.

O Chile, como sabemos, viveu sob a ditadura militar desde 1973, ano em que foi derrocado o presidente socialista, democraticamente eleito, Salvador Allende.

Uma vez chegado ao poder, o regime militar, liderado pelo general Augusto Pinochet, propôs realizar uma radical reorganização jurídica do país, o que incluía o pronunciamento de uma nova constituição, destinada a substituir a vigente do ano de 1925. Com tal motivo, Pinochet designou, rapidamente, uma Comissão (a Comissão Ortúzar) encarregada a projetar as bases da nova cons- tituição. Esta, entretanto, terminou de ser redigida vários anos depois, e em 1980 foi submetida à aprovação popular por meio de um plebiscito celebrado em condições tão restritivas que lhe tiraram a legitimidade (por exemplo, em razão das travas impostas à oposição para fazer campanha contra a Constituição).

O fato é que a Constituição militar de 1980 impôs um pesado legado sobre a vida democrática chilena, retomada a partir das eleições de 1989. Desde o final da ditadura, e durante mais de duas décadas, a comunidade democrática teve de se esforçar para acabar com as numerosas travas que lhe haviam sido impostas – os chamados enclaves autoritarios ou antidemocráticos. Tais tra- vas incluíam a instituição de Senadores vitalícios (o que permitiu ao general Pinochet passar a fazer parte do Senado, uma vez abandonado seu cargo); Senadores “designados” (o que permitiu que membros das Forças Armadas e os carabineros passassem a integrar também o Senado democrático); um (cada vez menos influente) Conselho de Segurança Nacional; o rol tutelar da democracia atribuído às Forças Armadas; um sistema eleitoral fortemente excludente (destinado a dificultar ao máximo a seleção de representantes de agrupações políticas minoritárias); o papel meramente subsidiário que foi reservado ao Estado; ou a exigência de maiorias qualificadas para reforçar aspectos cruciais da vida institucional, referentes aos temas mais diversos: desde a educação à organização do Congresso ou das Forças Armadas. Tra- tava-se de limitações claramente inspiradas em uma declarada atitude de desconfiança democrática (SIERRA, 2012). O poder democrático foi des- prendendo-se de tais limitações muito lentamente, por meio de sucessivas reformas constitucionais – a mais importante, a realizada durante o governo de Ricardo Lagos. Entre tantas modificações, destacam-se as dirigidas a: modificar o procedimento de reforma e limitar o peso dos estados de exce- ção (1989); mudar aspectos da organização geográfica interna (1991); redu- zir o período presidencial de 8 para 6 anos (1994); introduzir mudanças nos modos de seleção de juízes (1997); mudar o funcionamento do poder judiciário e os modos da eleição presidencial para o segundo turno (1999); modificar

o mecanismo de reforma constitucional (2000); acabar com a censura cine- matográfica (2001); fixar o dever do Estado de assegurar a educação gratui- ta (2003); acabar com os senadores designados e vitalícios; reduzir o man- dato presidencial para apenas 4 anos; permitir que o Presidente removesse os comandantes-chefes das Forças Armadas e o diretor dos carabineros; modificar o Conselho de Segurança Nacional (2005); introduzir modifica- ções no sistema eleitoral (2009).

O caso do constitucionalismo brasileiro da pós-ditadura, ou seja, o caso de uma constituição que se vê na necessidade de sair para afrontar, diretamente, uma constituição autoritária anterior, reproduz, de certo modo, o exemplo chileno. No Brasil, de fato, a Constituição de 1988 pode ser lida como uma reação diante do constitucionalismo promovido pelos militares. Em tal senti- do, convém recordar que a Ditadura de 1964 – como no Chile, porém diferen- temente do que ocorreu em muitos outros países – decidiu reorganizar a vida do país com a ajuda de uma nova constituição. Com efeito, foi durante o gover- no militar do general Humberto Castelo Branco que se ditou a nova Consti- tuição. Aprovada em 1967 (e modificada logo, radicalmente, por uma duríssi- ma emenda, datada em 1969), a Constituição contribuiu para restringir de modo extremo o poder dos estados federativos e limitar, também de modo mais estrito, as liberdades políticas e civis da população.20

Por isso, pouco depois de recuperada a democracia, os brasileiros elabora- ram uma nova constituição, que tentou recuperar os graves retrocessos consa- grados constitucionalmente pela ditadura. Assim, a Constituição democrática de 1988, aparentou repassar e corrigir, um a um, os problemas de sua anteces- sora. Em tal sentido, ela proscreveu a tortura e as medidas tomadas contra o estado democrático; restabeleceu o voto direto e secreto; reordenou os crité- rios para o funcionamento dos partidos políticos; fixou penas severas contra as restrições às liberdades civis; dispôs medidas antidiscriminatórias; incluiu mecanismos destinados a estimular a participação política (tais como plebis- cito e referendo); restabeleceu o compromisso federalista e expandiu a auto- nomia municipal; incorporou medidas de proteção das terras indígenas; e consagrou uma larga e muito detalhada lista de direitos e garantias sociais (incluindo os direitos de educação, saúde, trabalho, descanso, segurança, pre- vidência social, maternidade, e criando, por exemplo, o significativo Sistema Único de Saúde) e sindicais.

Notavelmente, no entanto, se deve apontar que a Constituição de 1988 – talvez afetada pelo trauma da Constituição de 1946 (que havia criado, na opi- nião de muitos, um Presidente muito fraco) – manteve um sistema presiden- cialista poderoso, respeitando as competências adicionais que a ditadura havia transferido ao Executivo por meio da Constituição de 1964.21 Isto é, a nova

Constituição democrática se diferenciou significativamente da anterior, por meio de mudanças profundas relacionadas, sobretudo, com a organização dos direitos, ao mesmo tempo que manteve o presidencialismo reforçado que a ditadura organizara (LIMONGI, 2008).

Em todo caso, pode-se dizer que a Constituição de 1988 surgiu, para mui- tos, como o “marco zero” de uma “nova história” (BARROSO; BARCELLOS, 2005, p. 273). Tratava-se, como argumentou o jurista Oscar Vilhena Vieira, de uma constituição que se destacava, sobretudo, por estabelecer “um catálogo de direitos fundamentais sem precedentes” na história do país, considerando, particularmente, não apenas “o passado imediato”, caracterizado pela “arbi- trariedade e violência do Estado”, mas também a “história mais remota” mar- cada pela “desigualdade e a hierarquização (VIEIRA, 2006, p. 11; PEIXI- NHO et al., 2006).

Os exemplos citados nos ajudam a reconhecer o pior lado da influência do poder militar sobre o novo constitucionalismo. Em todo caso, correspon- de dizer que, todavia, mais vasta se tornou a influência indireta dos governos autoritários sobre os desenvolvimentos constitucionais posteriores. Isso cabe, a partir da necessidade reconhecida pelo novo constitucionalismo democrático de reagir ante as causas que haviam possibilitado tanto as experiências autoritárias, como os reiterados golpes de Estado produzidos ao longo do século.

Foram muitos os juristas (não apenas latino-americanos) que se pergunta- ram, dessa forma, qual responsabilidade teria o constitucionalismo e o que poderia este fazer com relação ao drama da instabilidade política. A dita instabilidade aparecia diretamente vinculada com a repetida chegada de regi- mes militares que, por sua vez, haviam implicado (uma e outra vez, e cada vez mais gravemente) violações massivas dos direitos humanos. O constituciona- lismo tinha relação com a produção de golpes de Estado e/ou com a chegada de novos regimes autoritários? O constitucionalismo poderia fazer algo para evitar a chegada de novos governos autoritários? A resposta para tais perguntas

foi afirmativa. Ao menos por um tempo, a academia jurídica e política formou um extenso consenso em torno da questão. Defendeu que, de fato, o constitu- cionalismo tinha alguma relação com a instabilidade e que, portanto, poderia fazer algo para remediá-la. O presidencialismo – ou mais precisamente o hiperpresidencialismo –, foi considerado o fator fundamental e mais impor- tante que ajudava a explicar, a partir do constitucionalismo, os níveis de ins- tabilidade política que haviam sido registrados durante todo o século na região (NINO, 1987; LINZ; STEPAN, 1978; LINZ; VALENZUELA, 1994).

As reflexões constitucionais da época, desse modo, começaram a colocar em seu centro de discussão o sistema político hiperpresidencialista. Conforme veremos, tais discussões não terminariam por implicar modificações consti- tucionais concordes. Por diversos motivos, alguns dos quais analisaremos em seguida, as novas constituições do fim do século XX se mostrariam resistentes ao embate teórico contra o presidencialismo.

As novas constituições, não obstante, apareceriam muito mais permeá- veis e receptivas ante outra grande iniciativa reformista da época: a outorga de um status supralegal a diferentes compromissos internacionais assumi- dos pelos países em questão, em matéria de direitos humanos – um fato que acompanhou uma crescente litigiosidade destinada a reparar as graves vio- lações aos direitos humanos cometidas pelos governos militares (SIKKINK, 2012; ACUÑA; SMULOVITZ, 1996). Vários países da região encararam, de modo distinto, reformas desse tipo: da Argentina à Bolívia, da Costa Rica a El Salvador, Brasil, Chile e Colômbia. Mais uma vez, tratava-se de uma resposta jurídica relevante que pretendia sair da interferência do passado trágico, e impossibilitar ou dificultar – a partir do constitucionalismo e para o futuro – a repetição dos dramas ocorridos. Nesse caso, entretanto (e dife- rentemente do que ocorrera com o consenso antipresidencialista), se tratava de um tipo de resposta legal que não afetava diretamente a organização de poderes vigente. A resposta se dirigia, nessa conjuntura, à seção dos direitos constitucionais, e se pretendia agnóstica com relação aos modos da organi- zação dos ramos do governo.

Em todo caso, o renascer jurídico dos acordos dos direitos humanos sur- gia intimamente vinculado ao legado da recente e cruel violência, ao qual se pretendia (ajudar a) colocar freios. O fato de que tantos países retomaram e reforçaram, quase simultaneamente, seus compromissos em matéria de

direitos humanos, apareceu, então, em oposição a outro fenômeno prévio, também generalizado: a grave e massiva violação dos direitos humanos que havia sido produzido em toda a região.22 Tal decisão se tornava plausível a

partir da extensão e do tipo de violência que havia ocorrido, porém, ainda assim, não deixava de ser surpreendente. Isso, sobretudo, considerando a história dos grupos que durante tanto tempo haviam depreciado como irre- levante ou superficial a questão dos direitos e que agora tomavam a dita bandeira como própria e prioritária.

3.2 Programas “neoliberais”, crise social