• Nenhum resultado encontrado

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA

2.1 As Engenharias de Software, Didática e Didático-Informática

“A Engenharia de Software (ES) é um campo de conhecimento que se propõe a estabelecer princípios teóricos e metodológicos para a concepção, o desenvolvimento e a validação de software” (BELLEMAIN; RAMOS; SANTOS, 2015). De acordo com Pressman (1995, p. 31), essa engenharia abrange um conjunto de três elementos fundamentais: métodos, ferramentas e procedimentos, que possibilitam ao engenheiro de software certo controle do processo de desenvolvimento, oferecendo-lhe condições para a construção de software com alta qualidade.

Para esse autor, os métodos envolvem um amplo conjunto de tarefas que incluem: “planejamento e estimativa de um projeto de software, análise de requisitos de software e de sistemas, projeto da estrutura de dados, arquitetura de programa e algoritmo de processamento, codificação, teste e manutenção.” (PRESSMAN, 1995, p. 31).

Ainda para Pressman (1995), independente do paradigma de engenharia de software escolhido, três fases genéricas podem ser encontradas em todo desenvolvimento de software, independente do campo de aplicação, definição, desenvolvimento e manutenção:

A fase de definição focaliza no o quê, ou seja, durante a definição o desenvolvedor de software tenta identificar quais informações têm de ser processadas, a função e o desempenho desejados, as interfaces que devem ser estabelecidas, quais as restrições de projetos existem e os critérios de validação exigidos para se definir um sistema bem sucedido. A fase de desenvolvimento focaliza o como, ou seja, durante a definição, o desenvolvedor de software tenta definir como a estrutura de dados e as arquiteturas de software têm de ser projetadas e como os testes têm de ser realizados, por fim, a fase de manutenção que se concentra nas mudanças que estão sendo associadas à correção de erros, adaptações exigidas à medida que o ambiente do software evolui e ampliações exigidas por exigências variáveis do cliente. Essa fase reaplica os passos das fases de definição e desenvolvimento, mas o faz no contexto do software existente (PRESSMAN, 1995, p. 46-47).

A partir dessa engenharia, em se tratando de desenvolvimento de software educativos, na elaboração dos seus princípios, deve haver uma articulação entre conhecimentos de

educação, de informática, de conteúdos disciplinares e de didática desses conteúdos (BELLEMAIN; RAMOS; SANTOS, 2015).

Dentro desse contexto, nasce a Engenharia de Software Educativo (ESE), que, além do processo de engenharia propriamente dito, visa à elaboração efetiva de software voltados para a educação. “A ESE constitui-se como um verdadeiro campo científico objetivando a produção de novos conhecimentos, teorias, técnicas, tecnologias, métodos ou mesmo procedimentos investigatórios” (BELLEMAIN; RAMOS; SANTOS, 2015).

Ainda para esses autores, no contexto da ESE, o desenvolvimento de um software está mais relacionado à produção de novos conhecimentos do que para disponibilizar um novo artefato. O trabalho de ESE

não tem como finalidade construir EIAH19 utilizados nas salas de aula ou em formações (mesmo se alguns deles transformam-se para evoluir para tais objetivos, e que uma utilização banalizada pode ser necessária para o estudo de certas problemáticas de pesquisa), mas de melhor compreender os desafios a abordar, os fenômenos a considerar, os meios (noções, modelos, processos, ferramentas, etc.) úteis para a concepção dos EIAHs (TCHOUNIKINE, 2009, p.1, tradução nossa).

Portanto, “a engenharia dos EIAH é o domínio de pesquisa cujo objeto é a elaboração dos conhecimentos relativos à concepção desses ambientes” (TCHOUNIKINE, 2009, p.14).

Da complexidade e riqueza crescente dos recursos hardware, software, intelectuais para o ensino-aprendizagem, do aumento do nível de abstração das teorias educativas, emerge mais ainda a necessidade de formalizar os princípios de engenharia de dispositivos pedagógico/didático (Pedagocical-Didatical Settings). (BELLEMAIN, 2014, tradução nossa).

De acordo com Galvis-Panqueva (1997, p.1), a engenharia de software educativo (ESE) é muito mais do que simplesmente tentar fazer um apanhado de ideias exitosas por docentes com apoio da tecnologia informática. Afinal,

[...] não se trata de enriquecer as aulas com o uso de diferentes software educativos, nem tampouco, diz respeito ao educador, que consciente dos desafios da globalização e da integração das tecnologias digitais na sociedade ou mesmo para a socialização do conhecimento, decide de forma enfática abrir as janelas dessas tecnologias para o saber, colocando seus alunos em contato com outros seres humanos por meio das redes virtuais como as da internet, por exemplo. Neste caso, o docente está enriquecendo a educação com a informática, mas não está fazendo ESE (GALVIS-PANQUEVA, 1997).

A ESE se refere à criação de ambientes educativos computadorizados, que oferecem muito mais do que boa utilização educativa genérica de soluções informáticas, desenhados para permitir a construção do conhecimento, elaborados com uma finalidade educativa específica (GALVIS-PANQUEVA, 1997).

19 Environnements Informatiques pour l'Apprentissage Humain (Ambientes informáticos para aprendizagem humana).

Do ponto (de vista) sócio técnico, o processo ESE não se limita à gestação e elaboração ou escolha de um produto que case com o que é educacionalmente necessário; vai além, ou seja, abrange a implementação e avaliação dele no campo (GALVIS-PANQUEVA, 1997). Por ser uma engenharia, ela é construída em cima de articulações entre a reflexão teórica sobre os fenômenos de ensino aprendizagem e a elaboração efetiva e técnica de artefatos. Nesse sentido, ela interroga os modelos teóricos para fundamentar a concepção, provocando assim a evolução desses modelos (BELLEMAIN, 2014).

Os artefatos desenvolvidos também criam um contexto de ensino aprendizagem com especificidades próprias que necessitam de um novo entendimento dos fenômenos de ensino, provocando a elaboração de modelos para a compreensão desses fenômenos. É nesse quadro da ESE que se apoia o desenvolvimento de um software em nossa pesquisa, tentando incorporar à ES princípios teórico-metodológicos relativos ao ensino aprendizagem, particularmente princípios relativos à avaliação qualitativa (BELLEMAIN, 2014).

Tchounikine (2011) coloca que um projeto de criação de uma ferramenta pode ser algo novo, ou partir da análise de uma ferramenta que já exista. No que diz respeito à concepção e ao desenvolvimento de software educativo, Benitti et al. (2005) e Tchounikine (2009) relatam em seus estudos a importância de uma equipe multidisciplinar, o que implica na participação de profissionais das áreas de “ciência da computação e diversas disciplinas das ciências humanas e sociais como a pedagogia, a didática, a psicologia, a ergonomia e as ciências da informação e da comunicação” (TCHOUNIKINE, 2004, p.4 tradução de BELLEMAIN; RAMOS; SANTOS, 2015).

Entretanto, entendemos, assim como Bellemain, Ramos e Santos (2015), que a formação dessa equipe não garante a qualidade do software concebido. A diversidade das competências envolvidas nessa concepção é uma riqueza, mas pode ser também um dos bloqueios da ESE:

Para a concepção de um software, não se trata somente de somar as competências, mas de integrá-las, o software não deve ser produto de uma atividade multidisciplinar, mas transdisciplinar20. Não se trata de justapor uma elaboração de requisitos feita por profissionais do ensino-aprendizagem a uma engenharia de software feita por profissionais da computação. A questão da digitalização e da computação deve ser considerada desde o princípio da concepção (BELLEMAIN; RAMOS; SANTOS, 2015, p. 3) .

20 A transdisciplinaridade é uma abordagem científica que visa a unidade do conhecimento. Desta forma, procura estimular uma nova compreensão da realidade articulando elementos que passam entre, além e através das disciplinas, numa busca de compreensão da complexidade. Além disso, do ponto de vista humano a transdisciplinaridade é uma atitude empática de abertura ao outro e seu conhecimento. (TEIXEIRA, 2015). Disponível em <http://www.helioteixeira.org/ciencias-da-aprendizagem/o-que-e-transdisciplinaridade/>. Acesso em 12 de setembro de 2018.

Ainda para esses autores, um ponto chave final em relação a essa situação é a “capacidade da equipe de reformular, para encontrar respostas, às questões teóricas, tecnológicas e técnicas levantadas pela concepção de software educativos dentro dos princípios de cada domínio de conhecimento envolvido” (BELLEMAIN; RAMOS; SANTOS, 2015, p. 3-4).

Ao se pensar em desenvolver um software educativo, a ESE ajuda a organizar certa estrutura de desenvolvimento e um dos primeiros passos é a escolha do domínio do conhecimento do software educativo. “Com efeito, já pelo fato que as modelizações da aprendizagem diferem em função da natureza do conhecimento (mais o menos estruturado, conhecimento fim, conhecimento meio, por exemplo), as ESE para a concepção- desenvolvimento de software para matemática, história, português, etc., também diferem” (BELLEMAIN; RAMOS; SANTOS, 2015, p. 4).

Em nosso estudo focaremos no Campo Conceitual das grandezas e medidas, mais especificamente na abordagem de área como grandeza, baseados nos estudos das pesquisadoras francesas Régine Douady e Marie-Jeanne Perrin-Glorian (1989). O segundo passo é a escolha do tipo de software, sua natureza (TCHOUNIKINE, 2011). Para esse autor, essa escolha diz respeito ao norte que se dará à engenharia para esse desenvolvimento. Optamos em conceber, desenvolver e validar um micromundo que favoreça a atividade matemática no ambiente computacional.

Para Tchounikine21 (2011), micromundos são simulações ou ambientes pedagógicos virtuais, ou seja, software que permitem aos alunos mergulharem em um ambiente virtual projetado para apresentar propriedades que favorecem certos objetivos pedagógicos traçados a priori, isto é, modelagem de um domínio especificamente adaptado a alguma aprendizagem direcionada, com características como reversibilidade de ações, repetição de sequências ou análise a posteriori de ações realizadas.

Para auxiliar essa concepção, contamos com os pressupostos da Engenharia Didático- Informática, que alia os aspectos da ES supracitados aos da Engenharia Didática (ARTIGUE, 1996), para gerar um modelo de processo de software que integra ambos os quadros metodológicos.

21Microwords: Simulation or virtual reality pedagogical environments, i.e., software que allowance learners to immerse themselves in a virtual word designed so as to present properties that will favor the addressing of the targeted pedagogical objectives: modeling of a domain specifically adapted to some targeted learning, taking advantage of features such as reversibility of actions, replay of sequences or a posteriori analysis; etc. Tchounikine (2011, p. 2).

A Engenharia Didática, segundo Artigue (1996), emergiu em didática da matemática

na escola francesa, na década de 80, com o objetivo de etiquetar uma forma de trabalho didático. Essa engenharia tem uma forma particular de organizar os procedimentos metodológicos da pesquisa, contemplando tanto a dimensão teórica quanto a dimensão experimental. Interliga investigação (plano teórico) e ação (experimental), sendo constituída por um conjunto de fases: análises preliminares, concepção e análise a priori, experimentação, análise a posteriori e validação.

Na fase de análises preliminares é realizado um levantamento na literatura concernente ao objeto matemático estudado, que pode comportar as seguintes vertentes:

• epistemológica dos conteúdos visados pelo ensino; • do ensino usual e seus efeitos;

• das concepções dos alunos, das dificuldades e dos obstáculos que marcam sua evolução;

• das condições e fatores de que depende a construção didática efetiva; • a consideração dos objetivos específicos da pesquisa;

• o estudo da transposição didática do saber considerando o sistema educativo no qual insere-se o trabalho (ALMOULOUD; COUTINHO, 2008, p. 66).

Os elementos supracitados podem ser retomados a depender da necessidade da pesquisa que está sendo realizada (ARTIGUE, 1996). Concordamos com Almouloud e Coutinho (2008) que “a expressão análises preliminares não implica que após o início da fase seguinte não se possa retomá-las, visto que a temporalidade identificada pelo termo ‘preliminar’ é relativa, pois se refere apenas a um primeiro nível de organização”.

A fase de concepção e análise a priori diz respeito “às tomadas de decisões do pesquisador no sentido de agir sobre as variáveis que presume serem importantes ao problema da pesquisa e também sobre as variáveis que podem conduzir a caminhos ou soluções para o problema” (MATOS FILHO, 2015).

Nesse caso, realiza-se um estudo relacionado às dimensões da fase anterior, a saber: “a dimensão epistemológica (associada às características do saber), a dimensão cognitiva (associada às dimensões cognitivas dos alunos sujeitos da aprendizagem) e a dimensão didática (associada às características do sistema de ensino, no qual os sujeitos estão inseridos)” (ALMOULOUD; COUTINHO, 2008, p. 67). A partir dessas análises, a sequência didática é concebida e aplicada na próxima fase denominada de experimentação: trata-se do “momento de se colocar em funcionamento todo o dispositivo construído, corrigindo-o se necessário, quando as análises locais do desenvolvimento experimental identificam essa necessidade, o que implica em um retorno à análise a priori, em um processo de complementação (Ibid, 2008 p. 68).

As fases de análise a posteriori e validação nos permitem confrontar os dados obtidos na experimentação sob a ótica da análise a priori, “dos fundamentos teóricos, das hipóteses da problemática da pesquisa” (ALMOULOUD; COUTINHO, 2008) para verificar a validação ou não da sequência didática.

Os elementos da ED como instrumento metodológico são necessariamente pertinentes, entretanto não são suficientes para resolver todas as questões relativas à criação de software educativos para matemática (BELLEMAIN; RAMOS; SANTOS, 2015). Por isso, Tibúrcio (2016) desenvolveu a EDI, que busca “aliar as contribuições da Engenharia Didática aos processos e princípios da Engenharia de Software para fundamentar um modelo que atenda tanto às necessidades do ensino e da aprendizagem da área a ser abordada pelo software, como as exigências das metodologias de sua concepção e desenvolvimento” (SILVA, 2016, p. 25). Para ilustrar a relação entre as engenharias citadas anteriormente, Tibúrcio (2016) apresenta a seguinte articulação:

Fonte: (TIBÚRCIO, 2016, p. 46).

Por meio dessa ilustração, Tibúrcio (2016) faz uma relação das fases que compõem as duas engenharias e explica que os processos de desenvolvimento de software podem ser designados nas quatro etapas explicitadas acima (especificação, desenvolvimento, validação, manutenção/evolução) da ES, enquanto que as etapas da ED servem de fundamentação teórica e metodológica para o desenvolvimento de SE (software educativo).

Em resumo, esse autor explica as relações entre as fases das engenharias, ilustradas na figura acima, da seguinte forma:

A etapa de Especificação: momento em que se define a tipologia do software, requisitos e características, relaciona-se com as análises inicias da Engenharia Didática.

A etapa de Desenvolvimento: leva em consideração o levantamento teórico que foi realizado na Concepção e Análise a priori e nesse momento é iniciado o processo de experimentação do software.

O processo de Validação do software: relaciona-se com a experimentação da ED e coma última fase, a análise a posteriori e validação. Validar o software significa verificar se o mesmo realiza o que se propõe a fazer. A etapa de manutenção/evolução: relaciona-se com a análise a posteriori e validação no momento em que a análise comparativa fornecida pela ED, traz à tona elementos que servem para o aperfeiçoamento e evolução do software desenvolvido (TIBÚRCIO, 2016, p.47).

Segundo Tibúrcio (2016, p. 48), a partir desse contexto, surge a “Engenharia Didático- Informática (EDI)”, uma nova abordagem de desenvolvimento de produtos tecnológicos para o ensino e a aprendizagem de conhecimentos matemáticos. Fundamentado nessa engenharia, esse autor desenvolveu um modelo de processo de software constituído de fases permeadas pelas dimensões cognitiva, didática e epistemológica, provenientes da Engenharia Didática.

Em se tratando da EDI, Tibúrcio (2016) implementa as análises preliminares à dimensão informática, com o objetivo de investigar os aportes e limitações do computador para abordar a complexidade do conhecimento, sua construção e seu ensino destacado nas dimensões cognitiva, didática e epistemológica.

A imagem a seguir apresenta esse modelo:

Fonte: (ATELIÊ DE SOFTWARE/LEMATEC, TIBÚRCIO, 2018). Figura 2- Modelo de processo de software

As fases exibidas na figura 2 são descritas por Silva (2016), que também utilizou esse modelo no desenvolvimento de um micromundo para o estudo de funções numéricas da seguinte forma:

i) Delimitação do campo: Tal delimitação define o campo de conceitos

matemáticos a ser abordado pelo software.

ii) Análises preliminares: Nesta fase o objeto matemático a ser abordado pelo

software é situado no contexto das pesquisas já realizadas, abordando-se os aspectos cognitivos, didáticos, epistemológicos e informáticos relacionados ao objeto. Os resultados desta análise fundamentam as principais necessidades do software.

iii) Análise de requisitos: Tal análise tem por objetivo “traduzir” as necessidades

geradas na fase anterior em ferramentas e características do software, ou seja, os requisitos do sistema são definidos com base nos resultados das análises preliminares.

iv) Análise a priori e prototipação: Nesta fase se dão o desenvolvimento do

protótipo e a análise a priori, ou seja, uma análise das situações de uso e dos possíveis problemas que possam decorrer da utilização do software, a fim de corrigi- los.

v) Fase experimental (teste piloto, com professores, com alunos): Após o

desenvolvimento do protótipo, se dá a fase experimental, na qual ocorrem os testes do software com os sujeitos destinados ao seu uso, como professores e estudantes, antecedidos por um teste piloto que pode gerar necessidades de ajustes.

vi) Análise a posteriori e validação: Esta fase tem por objetivo analisar, com base

nos testes do software e em comparação com a análise a priori, se os objetivos estabelecidos para o software foram alcançados, resultando na validação do software (SILVA, 2016, p. 25-27).

Com relação a esse último aspecto avaliação/validação do software educativo Bellemain, Ramos e Santos (2015) deixam claro que, além da validação técnica (testes, benchmark22) e da validação do uso na sala de aula (aceitação pelos usuários finais), existe uma validação teórica feita pelos especialistas das áreas de conhecimento em jogo, assim como uma validação “semi-teórica” em condição de laboratório (situações didáticas específicas, professores e alunos escolhidos)” (BELLEMAIN; RAMOS; SANTOS, 2015, p. 4).

Nosso estudo para o desenvolvimento do novo micromundo contará com essas etapas do modelo de desenvolvimento de software educativo que serão descritas nas próximas seções.

22 Trata-se de um conjunto de critério, parâmetro de referência e qualidade, neste sentido voltado ao desenvolvimento de software.