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2.3 INQUIETAÇÕES TEÓRICO-EMPÍRICAS E AMPLIAÇÕES DOS CONSTRUTOS DE

2.3.2 Aspectos cognitivos e operacionalização dos construtos de ‘inteligibilidade’ e

Outro aspecto que está relacionado a lacunas na definição e operacionalização dos construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ de Derwing e Munro é o cognitivo. Em alguns estudos, como em Derwing (1990) – sobre o papel da memória –, e Derwing e Munro (2005) – sobre o processamento –, os autores relacionam os seus resultados a possíveis conexões com aspectos cognitivos. Assim, estudos como Winters e O’Brien (2013) procuram tecer considerações a respeito do papel do processamento. O objetivo principal do referido trabalho foi investigar a influência de dois aspectos suprassegmentais e segmentais na ‘inteligibilidade’ e ‘sotaque’, tanto na L1 quanto na L2. Conforme os resultados dos autores, entre os aspectos que influenciam no julgamento de excertos de fala como inteligíveis estão modo de articulação, saliência perceptual distinta para diferentes qualidades de vogais, duração de segmentos e sílaba e velocidade de fala (maior incidência de sotaque estrangeiro em falas mais lentas). As manipulações

alocados dentro de um subsistema fônico, e possuam, como primitivo de análise, o gesto acústico- articulatório (ALBANO, 2001).

76 feitas afetaram negativamente a percepção do sotaque, bem como aspectos relacionados à inteligibilidade, i.e., quando a produção foi em alemão, a prosódia nativa/segmento não- nativo melhorou a percepção do sotaque estrangeiro, mas piorou a inteligibilidade; em geral, aspectos/pistas segmentais influenciaram mais do que as suprassegmentais para a percepção de sotaque; pistas não-nativas de duração e entonação contribuíram igualmente para a percepção do sotaque; padrões não nativos de entonação reduziram mais a inteligibilidade do que os de duração.

Em linhas gerais, os resultados corroboram acerca do fato de e ‘inteligibilidade’ não serem construtos processados da mesma maneira, além de ressaltarem a importância de se testar mais de um construto ao mesmo tempo, i.e., ‘sotaque’ e ‘inteligibilidade’, ‘compreensibilidade’ e ‘inteligibilidade’, ‘compreensibilidade’ e ‘sotaque’ ou até os três juntos, ‘inteligibilidade’, ‘compreensibilidade’ e ‘sotaque’. A diferença no processamento poderia ser explicada a partir da complementariedade dos construtos, uma vez que as pistas utilizadas pelos participantes do estudo possuem pesos diferentes no sistema de cada aprendiz, sendo que os aspectos segmentais e suprassegmentais auxiliaram em graus distintos para os diferentes construtos testados, sobretudo ‘sotaque’ e ‘inteligibilidade’.

Por fim, seria possível estabelecer uma conexão entre a diferença de processamento dos construtos testados pelo estudo a partir da premissa de não linearidade do sistema linguístico, em uma perspectiva de língua como Sistema Dinâmico Complexo, uma vez que inteligibilidade e compreensibilidade, quando tomadas dentro de um gradiente de recepção e processamento de informação, não seguem uma trajetória predeterminada. Em outras palavras, o sistema do aprendiz é afetado por distintas variáveis, as quais possuem pesos diferentes no sistema do aprendiz e, embora possam ser manipuladas e quantificadas, não exibem um comportamento igual para todos os conjuntos de dados.

Outros estudos que apontam para a influência de aspectos cognitivos nos testes de ‘inteligibilidade’ são os de Kang, Thomson e Morana (2018), Buske et al. (2018) e Rosa

et al. (2018). Do mesmo modo que os trabalhos de Derwing et al. (2004) e Crowther et al. (2015), a pesquisa conduzida por Kang, Thomson e Morana (2018) investiga a

influência de diferentes configurações no delineamento experimental em relação à aferição do construto de ‘inteligibilidade’. O estudo procura comparar cinco tipos de operacionalizações do construto de ‘inteligibilidade’ em seis variedades de inglês, de modo a investigar qual abordagem de mensuração de ‘inteligibilidade’ seria a mais confiável para prever a compreensão do Ouvinte.

77 Entre os resultados, é interessante apontar que embora os autores mencionem que todos os cinco tipos de testes tenham se mostrado significativos para mensurar o construto de ‘inteligibilidade’, a força das associações do construto com os preditores (tipos de teste) evidencia que cada tipo de operacionalização recorta ‘inteligibilidade’ de jeitos distintos, o que pode levar a um entendimento de que se trata de construtos diferentes. Tal afirmação é extremamente valiosa na reflexão aqui feita, uma vez que faz emergir algo discutido no início do Capítulo 2 acerca dos construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’, sobre o problema de serem definidos a partir do modo de operacionalização.

A partir dos resultados, os autores mostraram que mensurar a ‘inteligibilidade’ com base nas respostas dos Ouvintes expostos às sentenças sem sentido foi o preditor mais forte para os escores de compreensão auditiva. Ainda, eles apontam que a escala, quando usada conjuntamente com a medida supracitada, pode operar como uma forma eficaz de operacionalização. Com base em tal achado, é possível notar a complexidade acerca do construto de ‘inteligibilidade’, o qual é permeado por uma grande gama de variáveis. Além disso, chama-se a atenção, novamente, para o papel que variáveis qualitativas associadas às mensurações quantitativas podem ter no sistema do aprendiz, quando se toma uma visão de língua que opera com a complexidade como inerente ao sistema, como nos Sistemas Dinâmicos Complexos.

Do ponto de vista de falseabilidade científica, assumir que um construto será mensurado de diferentes modos e que sua maneira de operacionalização modifica a visão sobre o construto torna as comparações entre estudos e seus resultados, consequentemente, problemática. Por outro lado, tal reflexão mostra, mais uma vez, a complexidade e a sensibilidade das pesquisas e achados em inteligibilidade de LA, uma vez que a ‘inteligibilidade’ de fala estrangeira é um construto formado por diversas variáveis e a soma dos efeitos destas variáveis não corresponde ao efeito total. Assim, se por um lado a variabilidade de operacionalizações se apresenta como uma variável a mais quando se pretende construir um caminho teórico-empírico para uma área, por outro, ao olhar para a inteligibilidade sob um viés de língua como Sistema Dinâmico Complexo, deve-se abraçar a diversidade dos achados, desde que essa opere com as premissas-base da referida Teoria. Tais premissas serão discutidas com maior robustez no Capítulo 3 deste texto.

Outra importante contribuição do estudo de Kang, Thomson e Morana (2018) está relacionada à reflexão explícita acerca dos aspectos relacionados à cognição, como o

78 papel da memória de trabalho na transcrição e o quanto isso pode influenciar os achados do estudo. Como pode ser verificado nas resenhas feitas até o momento, não é comum encontrar considerações explícitas sobre os aspectos acima mencionados, de modo que a presença deles aqui evoca os seguintes questionamentos: que tipo de nível de processamento e memória uma tarefa de transcrição exige do participante? A partir do resultado de uma medida de transcrição, até que ponto estamos testando a percepção/compreensão do excerto ou a capacidade de completude gerada a partir da ativação de léxico? Evidentemente, o fato de, no trabalho em questão, uma tarefa de sentenças sem sentido ter sido considerada a melhor para prever a compreensibilidade indica o importante papel que a memória e recursos atencionais possuem na codificação e recuperação de informação linguística.

Investigações preliminares, como as de Buske et al. (2018) e Rosa et al. (2018) trazem resultados interessantes com relação ao papel de mensurações para o construto de inteligibilidade a partir de transcrição ortográfica e repetição oral de excertos produzidos por seis locutores hispanos, aprendizes de Português como LA e julgados por 36 participantes brasileiros31, acadêmicos de Letras Inglês da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em ambos os estudos foram utilizadas as mesmas frases, as quais retratavam as opiniões de tais aprendizes sobre o Brasil. O delineamento experimental do experimento de Buske et al. (2018) operacionalizou a inteligibilidade a partir da transcrição dos excertos produzidos pelos aprendizes hispanos, e o de Rosa et

al. (2018) solicitava aos Ouvintes que repetissem em voz alta, ao contrário de transcrever

por escrito, o excerto que haviam ouvido. Ambos os experimentos fizeram uma análise mais pontual, i.e., o percentual de acerto, obtido através da contagem de palavras exatas ou o percentual de repetição exato, além de uma análise mais holística do conteúdo das frases, de modo a verificar qualitativamente as respostas. Os resultados apontam para resultados complementares em relação às duas metodologias testadas. Ambos os estudos apresentaram altos índices para os construtos de transcrição e de repetição correta de palavras. No entanto, a variabilidade foi maior na tarefa de repetição oral, uma vez que, possivelmente, a tarefa oferecia um grau de controle de elaboração de resposta menor por parte do participante, quando comparada com a tarefa de transcrição. A partir da contribuição acima, observa-se que existem investigações que procuram entender mais a

31 É importante mencionar que os locutores estavam há aproximadamente três meses no Brasil e, apesar de tais locutores terem sido os mesmos para ambos os estudos, foram selecionados dois diferentes grupos de 36 acadêmicos para compor os grupos de Ouvintes.

79 fundo o processamento linguístico feito pelos aprendizes e que chegam a interessantes conclusões acerca de uma complementaridade dos tipos de tarefas, não as vendo como excludentes. Assim, embora nenhuma comparação mais estrita a respeito de qual tipo de operacionalização (repetição oral ou transcrição) seria mais eficiente para mensurar o construto de ‘inteligibilidade’ tenha sido conduzida, os autores apontam para o fato de que a tarefa de repetição oral (uma vez que não há a preocupação em se encontrar um correspondente grafêmico para a sequência sonora recebida) pode favorecer uma maior elaboração do conteúdo linguístico por parte do Ouvinte no momento de responder à tarefa. Em outras palavras, a tarefa de repetição oral pode operar como uma pista a favor do tipo de processamento linguístico utilizado pelos participantes no julgamento do construto e, consequentemente, permitir uma maior associação e recuperação de informações compreendidas no contexto alvo. Tal elaboração oral, acerca da informação recebida, possibilitada pela tarefa de produção oral, pode auxiliar na compreensão de nos construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ de fala estrangeira residirem tanto aspectos fonéticos, quanto semântico pragmáticos (conforme argumentado no Capítulo 2, seção 2.1). Uma das evidências que apontam para a inteligibilidade residir, também, em aspectos semântico-pragmáticos, poderia ser apontada nos casos em que os Ouvintes recuperam sons e sequências sonoras inteiras, mas essas não compõem um sentido possível ou apresentam um sentido diverso ao enunciado pelo Falante. Ao mesmo tempo, Rosa et al. (2018) relatam que, no caso de alguns excertos, os Ouvintes foram capazes de recuperar o sentido da frase ao utilizar vocábulos distintos dos produzidos pelo Falante, de modo que a tais casos tenha sido conferido um alto índice de inteligibilidade.

A preocupação com a cognição enquanto sistema integrado ao linguístico, demonstrada pelos estudos resenhados nesta subseção, se encontra imbricada em uma concepção de língua que entende a inteligibilidade e a compreensibilidade como construtos dinâmicos, uma vez que olha para o desenvolvimento linguístico como sendo composto de diversas variáveis, linguísticas e cognitivas, que se modificam a partir das experiências vividas pelos participantes do binômio comunicacional: Falantes e Ouvintes. Tal preocupação, com aspectos linguísticos e cognitivos (não vistos, aqui, dicotomicamente entre si), é passível de ser observada na explicitação sobre o delineamento experimental desta Tese, descrito no Capítulo 4. Parte-se de tais considerações a respeito do papel da memória e de aspectos linguístico-cognitivos, como os relacionados com o processamento de informação (e suas respectivas implicações acerca de escolhas como a operacionalização da inteligibilidade a partir da transcrição ou

80 outros meios), para mensurar os dados coletados com haitianos, aprendizes de Português como LA.

2.3.3 Variáveis individuais e os construtos de ‘inteligibilidade’ e