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2.3 INQUIETAÇÕES TEÓRICO-EMPÍRICAS E AMPLIAÇÕES DOS CONSTRUTOS DE

2.3.1 Concepção de língua e operacionalização dos construtos de “inteligibilidade” e

Entre as questões apontadas acerca dos quase 30 anos de trabalhos levantados na agenda de contribuições de Derwing e Munro, encontra-se a falta de uma concepção de língua explícita. Novamente, é importante chamar a atenção para o fato de que em alguns trabalhos (como em MUNRO; DERWING, 2001, resenhado na seção 2.2.1.5), os autores deixam pistas de quais bases linguísticas e cognitivas estariam norteando a definição dos construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ de fala estrangeira e o delineamento experimental adotado. No entanto, não foi rastreada uma concepção de língua explícita e, consequentemente, um primitivo de análise que possa ser atribuído a paradigmas existentes em relação ao desenvolvimento de LAs.

Pensando em tal lacuna, alguns estudos problematizam a definição de Derwing e Munro e/ou apresentam o construto de ‘inteligibilidade’ dentro de uma concepção de língua explícita. Um exemplo seria o trabalho de Tajima, Port e Dalby (1997), o qual tem como objetivo investigar os efeitos das propriedades temporais da inteligibilidade de fala de sentenças produzidas por uma Falante não-nativa de inglês. Entre os pressupostos teóricos que norteiam este estudo de inteligibilidade, atribui-se importância ao tempo24 como uma variável intrínseca à produção e à percepção de fala. Isso se dá uma vez que, dentro de modelos dinâmicos, a implementação do tempo não é algo extrínseco, gerado a partir de uma ativação externa ao dado linguístico, mas o tempo se encontra dentro da equação dinâmica de ativação de gestos, o que confere à interpretação dos resultados um olhar mais detido para pistas tais como a duração dos segmentos, frequência de uso do item em questão, idade de início de aquisição, etc. (BROWMAN; GOLDSTEIN; 1987, 1988, 1989a, 1989b, 1990a, 1990b, 1992; ALBANO, 2001; SILVA, 2003; NISHIDA, 2012, PEROZZO, 2017). Tajima, Port e Dalby (1997) não seguem a definição de ‘inteligibilidade’ de Derwing e Munro ou tampouco definem explicitamente o construto de ‘inteligibilidade’, e quando mencionam questões relacionadas à percepção de fala

70 estrangeira, nota-se uma concepção bastante atrelada ao processo físico de recepção de informação.

O estudo de Tajima, Port e Dalby (1997) apresenta, também, algumas lacunas com relação a certos aspectos: i) os autores não proveem uma definição de ‘inteligibilidade’ ou uma proposta de entendimento do construto, não possibilitando um encaminhamento teórico sobre tal construto; ii) apesar de lidarem com dados de desenvolvimento linguístico, pouco se fala sobre variáveis que são importantes para o processo de desenvolvimento linguístico, como, por exemplo, idade e tempo de aquisição dos aprendizes, frequência de uso, etc; iii) as tarefas são mais voltadas a uma escolha forçada de dados (e.g., de discriminação, do tipo AXB, na qual o participante deve dizer se o som al qual é exposto é igual ao primeiro ou segundo estímulo; ou de identificação, na qual o participante deve dizer qual é o som ouvido, geralmente em forma de digitação na tela do experimento), a qual pode ter mascarado processos de desenvolvimento individual dos participantes; iv) os autores não possuem uma gama de trabalhos subsequentes acerca de inteligibilidade, o que torna difícil a elaboração teórico-empírica do construto. Em estudos como os de Gonçalves; Silveira (2015), os autores classificam que esse modo de aferir o construto ‘inteligibilidade’, a partir de testes de discriminação e identificação, acaba por classificar a pesquisa como um estudo de percepção e não de inteligibilidade. Conforme já argumentado anteriormente, tal questão parece trazer à tona o fato de a definição do construto de ‘inteligibilidade’ estar atrelado ou não à maneira como é mensurado, ao menos se a recuperação de informação é global25. Por sua vez, a tarefa de identificação pode ser entendida de forma a prover insumos para o entendimento da inteligibilidade local dos excertos em questão, conforme discutem Alves et al. (2019).

No entanto, apesar dos aspectos acima listados, a contribuição de Tajima, Port e Dalby (1997) se preocupa em adotar uma visão dinâmica de língua e adota um primitivo de análise que se alinha com uma noção não linear de desenvolvimento linguístico. Além disso, diferentemente de outros estudos, que não discutem o papel da variável “tempo” dentro das pesquisas em inteligibilidade de fala estrangeira, o estudo aqui resenhado destaca a importância de se entender a recepção de informação como um fenômeno dinâmico e, a partir disso, que pode se modificar a partir da interação entre as diversas variáveis relacionadas ao processo de desenvolvimento linguístico.

25 Por sua vez, a tarefa de identificação pode ser entendida de forma a prover insumos para o entendimento da inteligibilidade local dos excertos em questão, conforme discutem Alves et al. (2019).

71 Partindo de outros objetivos, o estudo de Zielinski (2006), de modo geral, problematiza a escolha da transcrição como forma de operacionalização do construto de ‘inteligibilidade’ e, ao realizar tal crítica, acaba por questionar o que os estudos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ de fala estrangeira (conforme vem sendo aplicados) estão de fato testando. É possível que tal inquietação resida na argumentação fragmentada acerca da concepção de língua, uma vez que os construtos estão intimamente atrelados à sua maneira de testagem e operacionalização e não a orientações de base que realizem previsões sobre como o desenvolvimento linguístico-cognitivo se dá. A respeito de sua orientação acerca do construto de ‘inteligibilidade’, a autora menciona que essa se assemelha mais ao entendimento de Field (2005) e Jenkins (2002, apud ZIELINSKI, 2006) do que ao de Derwing e Munro. A autora comenta que

Eu vejo a inteligibilidade como envolvendo ambos Falante e Ouvinte e uso o termo para descrever a habilidade do Ouvinte de identificar as palavras pretendidas pelo Falante. Inteligibilidade é, portanto, definida como a extensão até a qual o sinal de fala produzido pelo Falante pode ser identificado pelo Ouvinte como as palavras que o Falante teve a intenção de produzir26 (op. cit., p. 23).

Em relação à definição provida pela autora, observa-se que há, em relação a outras concepções, a adição do termo ‘habilidade’, e essa se coaduna com a visão de Field (2005) na medida em que expõe, explicitamente, que o aspecto a ser concreto é o físico, o “sinal de fala”. No entanto, apesar de a autora não mencionar que segue a concepção de Derwing e Munro, é possível notar uma semelhança na primeira parte da definição, com exceção do termo ‘habilidade’. Tal termo suscita uma reflexão acerca da flexibilidade e possibilidade de acomodação do construto, uma vez que, caso se trate de uma habilidade, ela pode ser melhorada, modificada, aprendida e (retro)alimentada. Na extensão da definição, Zielinski (2006) menciona algo bastante caro à reflexão aqui levantada acerca da relação teórico-empírica do construto de ‘inteligibilidade’ e seu modo de operacionalização. Segundo ela, os achados em inteligibilidade de fala de LAs podem sofrer influência da metodologia utilizada, uma vez que, por exemplo, mensurar ‘inteligibilidade’ a partir de uma pontuação baseada em palavras dentro de excertos ou palavras-chave não fornecem, necessariamente, informações acerca de onde está

26 I view intelligibility as involving both the speaker and the listener,and use the term to describe the

listener”s ability to identify the speaker”s intended words. Intelligibility is therefore defined as the extent to which the speech signal produced by the speaker can be identified by the listener as the words the speaker intended to produce.

72 localizada a redução na inteligibilidade27. Além disso, o estudo aponta para o fato de que a transcrição não acurada por parte dos Ouvintes pode estar relacionada a aspectos que não possuem relação com a produção do Falante em si, mas de aspectos como distração, dificuldade de memorizar excertos, dificuldades ortográficas, entre outros.

No entanto, chama-se a atenção para o trecho da definição da autora que toma a inteligibilidade como relacionada à “intenção do Falante”. Na mesma linha que a definição de Derwing; Munro (1995a, 1995b), tem-se, aparentemente, que o Ouvinte teria acesso à reprodução dos sentidos pretendidos pelo Falante. A definição de Derwing e Munro (1995a, 1995b), e a parte da definição de Zielinski (2006) acima mencionada, se inscrevem em uma problemática bastante cara a esta Tese. Questiona-se o real acesso a esse conteúdo (conforme pretendido pelo Falante), uma vez que a compreensão dos Ouvintes (quando expostos a contextos mais amplos, e.g., enunciados e blocos de ideias) parece recuperar diferentes níveis de informação, tanto locais quanto globais, a depender das variáveis discutidas ao longo do Capítulo 2, e.g., contato linguístico do Ouvintes com a L1 do Falante e com outras LAs, entre outros. Por conta do entendimento supracitado, acerca da existência de um gradiente de compreensão da fala, está entre as preocupações da presente Tese elaborar uma tarefa de repetição oral que procure oferecer ao Ouvinte a possibilidade de uma maior elaboração na recuperação da informação produzida pelo Falante (conforme apresentada no Capítulo 4).

De maneira análoga, as considerações de Lindemann e Subtirelu (2013), a partir dos resultados de estudos como Rubin (1992, apud LINDEMANN; SUBTIRELU, 2013), Rajadurai (2007), entre outros, trazem à tona um movimento de reflexão epistemológica em relação à acurácia dos resultados apresentados pelos experimentos que investigam construtos como ‘inteligibilidade’. Após 60 anos de pesquisas na área, estudos como o de Lindemann e Subtirelu (2013), além de trazerem contribuições em relação ao papel do Ouvinte e não só do Falante na atribuição do quão inteligível uma dada mensagem pode ser, sugerem que se leve em consideração a subjetividade empregada pelos Ouvintes na aferição de construtos como ‘inteligibilidade’, ‘compreensibilidade’ e, especialmente, ‘sotaque estrangeiro’.

27 Chama-se a atenção para o fato de que parte do delineamento experimental deste trabalho teve como base discussões como a apresentada por Zielinsky (2006), principalmente no que diz respeito a questionar a operacionalização dos construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’, de forma a tentar associá-los a um entendimento explícito de desenvolvimento, como é o caso dos Sistemas Dinâmicos Complexos.

73 Ao relatarem diversos estudos relacionados à influência de aspectos extra- linguísticos em experimentos de inteligibilidade, os autores exploram achados interessantes que apontam para a influência da impressão/expectativa e de estereótipos que podem entrar em jogo no momento de julgamento dos Ouvintes acerca das informações linguísticas produzidas por Falantes-aprendizes de uma LA em questão. Assim, o modo de operacionalizar acaba por interferir na maneira como o construto é definido e assimilado pelos participantes, uma vez que os resultados passam a ser explicados não só pelo julgamento linguístico dos Ouvintes, mas também por variáveis paralinguísticas. De forma geral, a contribuição dos autores pode ser vista como uma discussão emergente nos estudos de inteligibilidade, uma vez que, mais uma vez, a maneira como se testa acaba por influenciar a definição do construto e, a partir disso, afeta-se a impressão que se tem acerca da fala não-nativa e das impressões a respeito dos Falantes. É possível pensar que o construto de ‘inteligibilidade’ vai sendo repensado como fazendo parte de um gradiente, o qual é composto de variáveis linguísticas, forças internas e externas que orientam os julgamentos de ‘inteligibilidade’ (o que poderia ser acomodado por orientações de natureza dinâmica acerca do desenvolvimento linguístico). Entre os estudos nacionais, Gonçalves e Silveira (2015) realizaram um apanhado de trabalhos brasileiros que se debruçam sobre o construto de ‘inteligibilidade’ e se preocupam com propostas para o ensino de pronúncia em sala de aula (em específico, de língua inglesa para brasileiros). Embora o texto faça um levantamento bastante cuidadoso dos testes aplicados e dos resultados obtidos de cada um dos estudos analisados (BECKER, 2013; CRUZ, 2005; 2006; 2008, 2012a, 2012b; CRUZ; PEREIRA, 2006; GONÇALVES, 2014; REIS; CRUZ, 2010; RIELLA, 2013; SCHADECH, 2013 apud GONÇALVES; SILVEIRA, 2015), serão trazidas, aqui, apenas as reflexões sobre a operacionalização a partir da transcrição e a sua discussão acerca da linha tênue entre a definição de inteligibilidade e percepção. Sobre a transcrição ortográfica, operacionalização mais comumente utilizada pelos estudos da área, Gonçalves e Silveira (2015) mencionam que tal estratégia permite que o pesquisador tenha acesso ao que acontece num nível mais fino, de modo que se extraiam os detalhes acústico-fonéticos (MOYER, 2013, p. 93, apud GONÇALVES; SILVEIRA, 2015, p. 55). No entanto, segundo os autores, por lançar mão de um recurso ortográfico, tal modo de mensuração do construto pode sofrer com a influência da opacidade das línguas. A partir desse fator, poderia ser previsto que a transcrição ortográfica seja distinta a depender do grau de opacidade das línguas, como é o caso do português (de opacidade baixa/média) e o inglês

74 (opacidade alta), conforme Veloso (2005). No entanto, a presente Tese considera que outros três fatores parecem influenciar a relação entre ‘o que foi recebido’ e ‘como foi recebido’, ao se utilizar a transcrição como modo de operacionalização: a) conforme Zielinski (2006), não há como saber se o índice de erros encontrados nos estudos de inteligibilidade advém da maneira como os participantes foram capazes de grafar o excerto recebido ou se do áudio em si; b) está se trabalhando com estímulos de naturezas distintas (estímulo auditivo, produzido pelo Falante), a recepção do estímulo, a compreensão oral do estímulo e a transposição gráfica do estímulo auditivo; c) não parece haver muito espaço na tarefa de transcrição para a recuperação de outros sentidos possíveis e que estariam de acordo com a definição de inteligibilidade, conforme Munro e Derwing (2015, p.3), como “grau de entendimento da mensagem pretendida do Falante pelo Ouvinte28”. Além disso, os autores delineiam uma tabela com as distinções entre as

definições de inteligibilidade, compreensibilidade, grau de sotaque e percepção. Em relação a inteligibilidade e percepção, Gonçalves e Silveira mencionam que

[a inteligibilidade] envolve a demonstração do real entendimento de um excerto de modo a prover uma transcrição ortográfica (ou possivelmente uma repetição), ou ao responder apropriadamente ao enunciado do Falante (estudos de interação face a face) [e a percepção] envolve [perceber e decodificar os sons] produzidos, sílabas ou palavras (a partir de tarefas de identificação e discriminação) (GONÇALVES; SILVEIRA, 2015, p. 58)29.

A partir das definições acima postas, há uma interessante problematização que amplia as discussões dos trabalhos de Derwing e Munro, de modo a problematizar as distinções entre os termos ‘inteligibilidade’ e ‘percepção’. Há, também, por outro lado, uma preocupação, já apontada por autores como Schwartzhaupt (2015) e Alves (2015), acerca do fato de a inteligibilidade ser definida a partir do modo como é operacionalizada. A presente Tese argumenta que a inteligibilidade e a percepção, enquanto construtos dentro de uma concepção de língua mais macro, estariam a serviço de diversas variáveis linguísticas e cognitivas e de processos de sintonização e acomodação do sinal acústico- articulatório30 recebido. A tarefa de transcrição pode ser entendida como de identificação,

28 No original: “degree of listener understanding of speaker’s intended message”. Chama-se atemção para a discussão já realizada neste capítulo acerca do sentido de “pretendido”, presente na definição dos de Derwing e Munro.

29 No original: [intelligibility] “Involves demonstrating the actual understanding of an utterance by providing an orthographic transcription (or possibly repetition), or by responding appropriately to the speakers” utterance (face-to-face interaction studies) [and perception] Involves perceiving and decoding spoken sounds, syllables or words by performing identification or discrimination tasks”.

30 Conforme será discutido no Capítulo 3, propõe-se que os construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ estejam amparados por uma visão dinâmica de desenvolvimento linguístico e

75 sendo, por vezes, de natureza discriminatória, uma vez que para realizar as anotações ortográficas acerca do que foi ouvido, os participantes precisam selecionar dados do sistema linguístico e cruzá-los com a produção do Falante. Assim, novamente, a questão sobre a definição e a operacionalização de construtos como a ‘inteligibilidade’ ou outros, como a percepção, não parece residir tão somente em questões relacionadas ao delineamento experimental, mas a uma concepção de língua que ampare e norteie as escolhas metodológicas e os processos linguísticos-cognitivos por trás de tarefas de compreensão.

A partir dos estudos citados, a discussão proposta pela presente Tese leva em consideração o caráter subjetivo que pode estar associado ao julgamento dos construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ de fala estrangeira e a influência que o modo tradicional de operacionalização do construto (e.g., a transcrição) pode ter nos índices encontrados para os construtos supracitados. Além disso, entende-se que a falta de uma concepção explícita de língua, como exposta a partir do estudo de Tajima, Port e Dalby (1997), também incide na ausência de um primitivo de análise, de modo que tais questões combinadas acabam por criar uma falta de coerência interna aos estudos na área.

2.3.2 Aspectos cognitivos e operacionalização dos construtos de ‘inteligibilidade’ e