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2.1 INTELIGIBILIDADE E COMPREENSIBILIDADE EM L2: UM CONSTRUTO EM CONSTRUÇÃO

2.1.1 Inteligibilidade de L2: as contribuições de Smith e Nelson (1985) e Smith e Nelson (2008)

A fortuna crítica de trabalhos como os de Smith e Nelson não é tão extensa quanto a de Derwing e Munro, a qual será descrita na seção 2.2. No entanto, conforme foi discutido na seção 2.1, Smith e Nelson são dois dos primeiros pesquisadores a sistematizarem e a problematizarem as definições de inteligibilidade que estavam se estabelecendo no final da década de 1970.

Smith e Nelson (1985) organizam o entendimento do construto de inteligibilidade em três níveis, a saber: ‘inteligibilidade’, ‘compreensibilidade’ e ‘interpretabilidade’. Neste trabalho, os autores fazem um levantamento sobre o uso do termo ‘inteligibilidade’ e o definem como sendo o “reconhecimento da palavra ou enunciado” (SMITH; NELSON, op. cit., p. 334), ‘compreensibilidade’ como o “significado da palavra ou do enunciado (força locucionária)” e ‘interpretabilidade’, o “significado por trás da palavra ou do enunciado (força ilocucionária)”. Entre outros aspectos, quando se compara a proposta de três níveis dos autores a outros entendimentos prévios para o construto de ‘inteligibilidade’, é possível delinear um grau de refinamento enquanto modelo, pois há a tentativa de associar a ‘inteligibilidade’ a aspectos fonéticos e os demais construtos a aspectos semântico-pragmáticos. Tal delineamento teórico coloca a discussão de Smith e Nelson em um cenário no qual o ato de se comunicar, sob nossa leitura, é complexo e dinâmico, passando por graus de entendimento15. Além disso, os autores denotam

15 É importante mencionar que se trata de uma reflexão a posteriori. Smith e Nelson não teceram considerações a respeito da dinamicidade do processo de compreensão de informação linguística.

40 ‘compreensibilidade’ e ‘interpretabilidade’ como algo que não está relacionado ao Falante ou ao Ouvinte propriamente, mas sim como algo interacional entre Falante e Ouvinte. Considera-se que ambos os construtos supracitados poderiam ser entendidos sob um viés dinâmico de modo a não entendê-los como constantes/estáticos, mas sim alterando-se a partir de variáveis que agem no momento de interação entre os Falantes, i.e., experiência/contato linguístico prévio, L2s ou L3s compartilhadas, antecipação de estruturas/possibilidade de completar a fala ouvida com o conhecimento fonético-lexical adquirido etc. Assim, as expectativas dos Ouvintes são muito importantes, pois uma vez que o Ouvinte tenha como expectativa inicial entender o Falante em questão, ele terá mais chances de considerá-lo inteligível. Ainda, segundo os autores, ‘inteligibilidade’, ‘compreensibilidade’ e ‘interpretabilidade’ não possuem o mesmo peso e, portanto, não seriam intercambiáveis, uma vez que os erros/deslizes que podem causar mais problemas para a comunicação são os relacionados à compreensibilidade e à interpretabilidade.

A partir do modelo de três níveis de Smith, descrito no trabalho de Smith e Nelson (1985), é possível notar que não há clareza em relação ao que os autores entendem por “reconhecimento” e qual é a concepção de “força locucionaria” e “força ilocucionária” utilizada. A partir dos exemplos de situações de quebra de entendimento apontados pelos autores, pode-se inferir que os níveis de compreensibilidade e interpretabilidade estariam mais relacionados aos aspectos semântico-pragmáticos do que o nível da inteligibilidade, e isso explicaria a dificuldade em desfazer os erros/deslizes comunicacionais nestes níveis. Tal assunção possui um respaldo em questões linguístico-cognitivas, as quais podem estar relacionadas a conceitos como atenção e processamento16. Segundo discussões da psicologia cognitiva, como a de Sternberg e Sternberg (2012), quando Falantes estão em um momento de interação comunicativa com mais de uma pessoa, esses são capazes de prestar atenção a características sensórias distintas, como ritmo e intensidade do som, mas não, de forma tão atenta, a informações semânticas, do conteúdo da conversa do ouvido inatento. Tais associações linguístico-cognitivas entre o conceito de atenção e inteligibilidade se mostram bastante importantes para uma concepção de

Entretanto, a partir das previsões das orientações do trabalho dos autores, tais considerações se apresentam como possíveis.

16 Ainda que este trabalho não investigue empiricamente aspectos cognitivos, como processamento e atenção, tal discussão é levantada aqui, pois as reflexões teóricas aqui travadas em relação aos construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ levam em consideração o papel do cognitivo nos dados linguísticos. Tal aspecto será melhor discutido no Capítulo 3.

41 desenvolvimento de língua sob uma visão de SDC, e serão apresentadas com maior profundidade no Capítulo 3.

Em um texto posterior, Smith (1992) aponta que os três níveis, apesar de não intercambiáveis, possuem uma relação como se pertencessem a um contínuo, no qual a inteligibilidade seria o mais baixo e a interpretabilidade, o mais alto. Tal discussão parece inserir os três níveis como complementares dentro do ato comunicativo, apesar de serem passíveis de análise individual. A questão de os níveis conversarem entre si e, ao mesmo tempo, serem independentes de algum modo, dialoga com questões teóricas discutidas dentro de modelos perceptuais de L1 e L2, de modo a se entender, como para Smith (1992), a presença de um contínuo de relações entre os níveis de compreensão.

Em seu levantamento e análise bibliográfica, Nelson (2008) faz uma crítica em relação aos trabalhos que vieram pós Smith (JAMES, 1998; JENKINS, 2000; DERWING; MUNRO; MORTON, 2006, apud NELSON op. cit.), os quais diziam partir dos conceitos lançados pelo autor, mas que, de acordo com Nelson (op. cit.), acabavam por acoplar outros conceitos dentro do construto de inteligibilidade.

Neste sentido, a diferenciação entre processamento de som e significado, apresentados por Smith, foram convergidos em ‘inteligibilidade’, e, deve-se admitir, um processo um tanto quanto que forçado foi aplicado à palavra ‘compreensibilidade’17 (NELSON, 2008, p. 306).

A partir da citação acima, é possível que se realize uma reflexão mais aprofundada sobre o que está imbricado e constitui o julgamento de construtos como ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ para Nelson, uma vez que parece existir não só uma camada de reconhecimento físico do som, mas também de sentido. Tal análise tecida por Nelson (2008) poderia ser estendida à definição proposta por Derwing e Munro (2015a), anos mais tarde, acerca de a inteligibilidade estar conectada com “grau de compreensão” e, compreensibilidade, com “dificuldade ou facilidade de compreensão”. Por mais que, retoricamente, Derwing e Munro mencionem a importância de se considerar o sentido por trás dos enunciados, não fica claro o que entendem por ‘compreender’, e de que modo a transcrição feita como tarefa de julgamento de inteligibilidade fornece uma medida de sentido e não de código sonoro.

17 In this treatment, the differentiation between processing sound and meaning introduced by Smith has

been conflated in “intelligibility,” and, it must be admitted, some rather heavy-handed redefining has been applied to the word “comprehensibility”.

42 Por outro lado, Nelson (2008, p. 306-307) cita outros estudos que acabaram por seguir os conceitos de Smith, realizando testes que procurassem verificar individualmente ou ao mesmo tempo o modelo tríplice do autor, a saber: Smith e Bisazza (1982), Matsura, Chiba e Fujieda (1999), van der Walt (2000, apud NELSON, 2008) e Nelson (2001). As investigações possuem uma contribuição de peso no entendimento da metodologia empregada por Smith e Nelson, uma vez que não fica claro em seus trabalhos, principalmente no de Smith e Nelson (2008), como é o delineamento experimental por trás das investigações dos construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’. Tal aspecto tem impacto direto na disseminação e adoção da proposta dos autores, uma vez que é preciso inferir como seria o modo de testagem.

Algumas críticas em relação à proposta de Smith e Nelson (2008) são estabelecidas por Derwing e Munro (2015). Apesar de os autores apontarem os avanços da discussão teórica proposta por aqueles, a hierarquia presente por trás do modelo de três níveis, segundo os autores canadenses, traz uma dificuldade para a análise empírica, uma vez que tarefas de transcrição, por exemplo, exigem um tipo de conhecimento que é de nível mais alto; por essa razão, não seria possível que, a partir de tal tarefa de transcrição, os participantes tivessem recuperado dados de nível mais baixo (do primeiro nível, i.e., de ‘inteligibilidade ‘inteligibilidade’, no modelo de Smith e Nelson). No entanto, apesar de se entender que a noção de níveis mais baixos e mais altos pode ser entendida como fazendo parte de uma hierarquia, conforme Derwing e Munro (2015) apontam, tal noção de hierarquia fixa não se encontra presente na descrição de Smith e Nelson (2008). Assim, seria possível pensar mais em uma noção de contínuo de compreensão, como proposto por esta discussão.

Por fim, ao se chegar ao final desta seção, de forma a retomar brevemente a proposta de Smith e Nelson (1985) e Smith e Nelson (2008), alguns aspectos são dignos de nota: a) a proposta se mostra como um avanço crítico na construção do construto de ‘inteligibilidade’, por alocar tal construto dentro de aspectos linguístico-cognitivos; b) os autores procuram discutir os achados e as definições de trabalhos anteriores aos seus, de modo a ponderar sobre conceitos importantes para a ‘inteligibilidade’, como a noção de ‘entender’, por exemplo. Pensando-se a partir de um ponto de vista dinâmico de produção e percepção de fala, a proposta de Smith e Nelson (2008) introduz a noção de “‘forças’” (e.g., “locucionária”, “ilocucionária”) atuantes no sistema de Falantes e Ouvintes. Nesse sentido, apesar de se tratar de uma análise catafórica ao trabalho de Smith e Nelson (op.cit.), seria possível tratar um paralelo com o que os Sistemas Dinâmicos Complexos

43 mencionam como forças de atração e repulsão presentes no sistema linguístico, i.e., indivíduos que sejam bilíngues, por exemplo, serão afetados por aspectos como as suas línguas maternas, LAs que tenham contato, contexto de ensino-aprendizagem etc., e tais aspectos podem atuar positiva ou negativamente na compreensão de enunciados em uma LA.