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Este capítulo procurou recuperar um breve histórico dos estudos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ de fala estrangeira, que datam do período pós II Guerra Mundial. Como também ocorre com a trajetória de origem de diversos construtos, a motivação para os primeiros estudos e reflexões teóricas parece residir no volume de pessoas que passam a utilizar uma mesma língua como L1 ou LA e, a partir disso, dos diversos momentos de interações orais, de modo que haja a possibilidade de problemas na comunicação provindos da falta de compreensão.

Com o passar dos anos, após uma das primeiras definições, a de Abercrombie (1949), os construtos passam a receber diversas definições e delineamentos experimentais na tentativa de entender como eles operam dentro do gradiente de compreensão de fala estrangeira. Após um período de muita efusão terminológica, surgem alguns trabalhos que propõem debater as contribuições da área (SMITH; NELSON, 1985; NELSON, 2008) e também a estabelecer relações entre as definições e o modo de operacionalização dos construtos, com o objetivo de repensar estratégias de ensino-aprendizagem de LAs (MUNRO; DERWING, 1995a, 1995b; DERWING; MUNRO, 2005, 2015). Entre as duas orientações/visões acima mencionadas, a de Derwing e Munro é sem dúvida a mais disseminada entre os estudos em ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ de fala estrangeira, tanto no cenário internacional quanto no nacional, pela extensa trajetória de

89 contribuições (i.e., aproximadamente 30 anos de contribuições) e pela sistematização teórico-empírica. Tal agenda de pesquisa apresenta uma enorme contribuição, bem como algumas lacunas relacionadas à consonância entre as definições dos construtos e a operacionalização dos mesmos, por exemplo.

Ao retomar os objetivos específicos teórico-empíricos propostos na Introdução, a seção 2.2.1.9 apresentou um encaminhamento para a Questão Norteadora “1” (“Quando os estudos de Derwing e Munro passam a apresentar uma visão explícita de inteligibilidade e compreensibilidade de fala estrangeira?”), referente ao objetivo teórico- empírico A, o qual versava sobre o momento em que se pode verificar uma concepção explícita dos construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’. Conforme se discutiu na seção supracitada, a ‘inteligibilidade’ é definida pela primeira vez no trabalho de Derwing e Munro (1995a) e a ‘compreensibilidade’ e o ‘grau de sotaque estrangeiro’ em Derwing e Munro (1995b). Ao longo dos anos, há algumas alterações/ampliações das definições e modo de operacionalização dos construtos. Entretanto, conforme apresentado na seção 2.2 e no APÊNDICE A, considera-se que não se trata de uma mudança expressiva.

Em relação à Questão Norteadora “2” (“Há uma concepção de língua clara por trás dos estudos, que ampare as definições dos construtos supracitados?”), ligada ao objetivo específico B, de natureza teórico-empírica, também na seção 2.2.1.9, chegou-se a uma resposta negativa para tal questão (uma vez que, pelo menos de maneira explícita, tal concepção não foi delineada). Considera-se que tal concepção existe de forma fragmentada, quando Derwing e Munro tecem considerações sobre “pronúncia acurada”

versus “pronúncia inteligível”, ou quando discutem o envolvimento de aspectos

cognitivos e linguístico na compreensão de fala estrangeira, a impossibilidade de considerar os construtos como totalmente independentes, dentre outras questões. Entretanto, ressalta-se, mais uma vez, que tal concepção não foi expressa de forma explícita. Tal questão, conforme apontado na seção 2.2.1.9, possui sérias implicações sobretudo no que concerne à falta de um primitivo de análise e ao delineamento experimental.

Tomando as lacunas dos estudos de Derwing e Munro e a problematização e ampliação da definição e delineamento experimental das demais contribuições internacionais e nacionais resenhadas na seção 2.3, é possível que se responda ao objetivo teórico-empírico B, em sua Questão Norteadora “3” (“De que forma os estudos vigentes abordam tangencialmente a conceptualização de inteligibilidade e compreensibilidade a

90 partir de uma concepção dinâmica de desenvolvimento linguístico e de uma metodologia coerente a tal concepção?”). Em resposta preliminar a tal questionamento (uma vez que tal questão será retomada no Capítulo 3), conclui-se que há algumas lacunas (conforme discutido por esta Tese) em relação à ausência de uma concepção de língua explícita que ampare as definições e delineamentos experimentais utilizados e a relação entre aspectos linguísticos e cognitivos no processamento de fala estrangeira. É incontestável a contribuição dos quase 30 anos de pesquisa de Derwing e Munro na assunção de que ser entendido é possuir uma pronúncia inteligível e compreensível, mas não necessariamente sem sotaque. Trata-se de uma bandeira a favor da inteligibilidade e não da acurácia, assim como Abercrombie (1949) já preconizava no final da década de 40. No entanto, como foi discutido ao final deste capítulo, diversas contribuições apontam na direção de entender

o que os resultados de tarefas de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ desvelam sobre a compreensão enquanto construto linguístico-cognitivo, variável e influenciado por variáveis linguísticas e paralinguísticas. Além disso, outros estudos apontam para a necessidade de se olhar para construtos como a ‘compreensibilidade’ como sendo sensível ao tempo, complexo e multidimensional, associado a diversos aspectos da fala estrangeira para o Ouvinte. Nesse sentido, a dinamicidade e a complexidade do construto estariam sujeitas à variação no tempo, sendo esse: a) dentro de um mesmo conjunto de dados, uma vez que a compreensão dos Ouvintes pode variar a partir do contato com os excertos dos aprendizes (NAGLE; TROFIMOVICH; BERGERON, 2019); b) ao longo de um período de tempo de desenvolvimento linguístico (conforme testado por esta Tese).

A partir do cenário exposto até o momento, pode-se considerar que os objetivos teórico-empíricos A e B, bem como as questões norteadoras “1”, “2” e, parcialmente, a Questão “3”, associadas a esses objetivos específicos, foram encaminhadas e respondidas. Assim, passa-se à argumentação de como uma concepção dinâmica e complexa do desenvolvimento linguístico pode fazer emergir aspectos acerca da compreensão como parte de um gradiente, intrinsicamente variável e multidimensional. Para tanto, serão exploradas algumas das premissas que regem os Sistemas Dinâmicos Complexos (VERSPOOR; DE BOT; LOWIE, 2011) e suas implicações para o processo de interação oral entre brasileiros e haitianos, aprendizes de Português Brasileiro como uma Língua Adicional.

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3 UMA PROPOSTA DINÂMICA PARA OS CONSTRUTOS DE

‘INTELIGIBILIDADE’ E ‘COMPREENSIBILIDADE’ DE FALA EM LA

As pesquisas relacionadas ao desenvolvimento linguístico de LAs têm passado por inúmeras mudanças em relação a qual concepção de língua se afiliar (VAN PATTEN; WILLIAMS, 2014). É possível dividir as mudanças relacionadas ao modo como se concebe o processo de desenvolvimento linguístico em dois prismas: a) semelhante ao funcionamento de outros sistemas, como o meteorológico e o econômico; b) como algo especial e específico ao domínio da linguagem. É mister apontar que a reflexão aqui feita se coaduna à primeira visão mencionada, entendendo, assim, que o processo de desenvolvimento de uma LA não é algo específico ao domínio da linguagem, mas que opera dentro de uma visão mais holística de desenvolvimento.

Assim, neste capítulo, na seção 3.1, será apresentado um breve panorama das origens de teorias que estão ligadas ao ramo dos Sistemas Complexos, de modo a delinear, também, pontos de convergência entre diferentes termos ligados a elas. Em um segundo momento, na seção 3.2, será proposta uma reflexão acerca de algumas premissas de base dos Sistemas Complexos e como elas auxiliam na compreensão de processos relacionados ao desenvolvimento linguístico-cognitivo de aprendizes de LAs, especialmente no tocante aos construtos de inteligibilidade e compreensibilidade de fala estrangeira. A seção 3.3, em sua subseção 3.3.1, traz como foco mais específico o componente fonológico, ou o fônico, como será discutido posteriormente, de modo a tecer considerações a respeito de seu funcionamento como um subsistema35 dentro de sistemas maiores, como a língua e a cognição. Em decorrência dessa discussão, os construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ serão revistados dentro de uma visão de língua como Sistema Dinâmico Complexo. A seção 3.3.2 apresenta uma descrição e análise do sistema linguístico de haitianos, aprendizes de Português como Língua Adicional, os quais compõem a população analisada por este estudo. Por fim, a seção 3.4 traz um resumo das principais discussões realizadas ao longo do capítulo.

A organização do Capítulo 3 procura retomar o objetivo B, em sua Questão Norteadora “3” (nas seções 3.2 e 3.3, de forma a dar o encaminhamento final na seção 3.4) e responder ao objetivo específico teórico-empírico C e a Questão Norteadora “4”.

35 De acordo com De Bot (1992), o sistema linguístico é uma coleção de módulos, como por exemplo a fonologia, a morfossintaxe e o léxico. Cada sistema linguístico, como o Português, por exemplo, constitui um subsistema de um sistema linguístico ainda mais amplo.

92 Além de discorrer sobre aspectos relacionados ao desenvolvimento linguístico a partir das premissas do SDC, as seções 3.2 e 3.3 têm como objetivo a análise de características embrionárias ou explicitamente relacionadas a uma visão de inteligibilidade e compreensibilidade de fala estrangeira como um fenômeno complexo e dinâmico, a partir de cinco trabalhos de Derwing e Munro e colaboradores já resenhados no Capítulo 2 (novamente, a partir da resenha dos estudos acima mencionados pretende-se retomar o objetivo B e a Questão Norteadora “3”): i) quatro discutidos na subseção 3.2 (DERWING; MUNRO, 1997; MUNRO; DERWING; MORTON, 2006, MUNRO; DERWING, 2001; DERWING; MUNRO, 2013); ii) um discutido na subseção 3.3.1 (MUNRO; DERWING, 2015).O critério de seleção dos cinco trabalhos foi estabelecido a partir de uma nova análise das contribuições, de modo a recuperar as resenhas de estudos que possuíam, mais claramente, uma metodologia e/ou discussão de resultados que demonstrassem uma visão de desenvolvimento linguístico como algo emergente, dinâmico e complexo.

3.1 Sistemas Adaptativos Complexos e Sistemas Dinâmicos Complexos: origens e