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2.3 INQUIETAÇÕES TEÓRICO-EMPÍRICAS E AMPLIAÇÕES DOS CONSTRUTOS DE

2.3.3 Variáveis individuais e os construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’

Após terem sido tecidas considerações acerca das lacunas relacionadas à concepção de língua e a aspectos cognitivos que podem influenciar a definição e operacionalização dos construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ de fala estrangeira, passa-se à discussão sobre a influência de algumas variáveis individuais. Entre as lacunas apresentadas pelos estudos de Derwing e Munro, as características individuais de Falantes e Ouvintes não se mostram como um aspecto que os autores deixam de fora. Assim, os estudos que serão aqui resenhados ampliam alguns achados já apresentados pelos autores. Assim como o estudo de Munro e Derwing (1995b) e Derwing e Munro (1997), o estudo de Bent e Bradlow (2003) investigou o efeito da familiaridade com o sotaque estrangeiro, tendo Falantes nativos de inglês como Ouvintes, e Falantes chineses como locutores. O processo de aprendizagem perceptual de sotaque estrangeiro foi verificado de modo a expor os Ouvintes à fala de aprendizes chineses específicos, para, após isso, expô-los à fala de um aprendiz chinês ao qual os Falantes não haviam sido expostos anteriormente. Como objetivo específico, os autores procuraram investigar se os Falantes conseguiriam desenvolver o mesmo aprendizado em relação ao sotaque estrangeiro quando a fala tivesse um status de “independente de Falante” ou “específico de Falante”.

Em relação à concepção do construto de ‘inteligibilidade’, não há nenhuma menção explícita ao construto. No entanto, em vários pontos do artigo os autores deixam clara que a base linguístico-cognitiva norteia as discussões do estudo, uma vez que entendem o aprendizado de língua como algo dinâmico. É mencionada, contudo, a existência de uma vantagem “inteligibilística”, a depender do conhecimento adquirido a partir da familiarização com um determinado conjunto de aprendizes. Entre os resultados do estudo, existem evidências que apontam para o fato de que os Ouvintes sofrem um processo de independência do Falante no que diz respeito ao sotaque estrangeiro, ou seja, Ouvintes podem se adaptar ao sotaque estrangeiro dado o tempo de exposição aos Falantes, mesmo que não tenham sido expostos a um determinado Falante anteriormente. Em relação às contribuições do estudo, é interessante pensar não só como características idiossincráticas de Falantes influenciam a inteligibilidade de fala, mas também como

81 adaptações a Falantes diferentes podem conduzir a modificações das representações cognitivas da estrutura do sistema sonoro da língua-alvo, ao passo em que ocorrem processos de acomodação de padrões considerados como “desviantes” da fala em LA. A partir dessas considerações a respeito de processos de acomodação, parece ser possível pensar em momentos de equilíbrio e desequilíbrio dentro dos sistemas linguísticos dos Falantes e Ouvintes de uma dada situação comunicativa, com base em uma visão dinâmica e complexa de língua. Além disso, a familiaridade/contato linguístico prévio entre línguas conhecidas dos Ouvintes mostrou ter um grande impacto nas aferições de grau de inteligibilidade. A importância de tal aspecto será discutida ao longo deste capítulo e, principalmente, dentro do Capítulo 4, uma vez que as diferentes experiências linguísticas entre locutores e Ouvintes constitui uma parte fundamental do delineamento experimental proposto por essa Tese.

Ainda procurando investigar a influência da experiência do Ouvinte nos construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ de fala estrangeira, o estudo de Kennedy e Trofimovich (2008) tem como objetivo principal a investigação de como a experiência do Ouvinte (exposição prévia à fala não nativa) e o contexto semântico (grau de tipo de informação semântica disponível) influenciam na mensuração dos construtos de ‘inteligibilidade’, ‘compreensibilidade’ e ‘sotaque’ de fala não nativa. Será feita, aqui, a discussão dos encaminhamentos e resultados acerca dos dois primeiros construtos, os quais são o foco desta reflexão. As tarefas realizadas pelos Ouvintes com e sem experiência com fala estrangeira consistiram na transcrição e avaliação de 90 excertos em inglês. Os excertos variavam em relação a duas dimensões: expectativas do mundo real (excertos verdadeiros e falsos) e significância semântica (excertos com e sem significância), baseados em Mack et al. (1990, apud KENNEDY; TROFIMOVICH, 2008).

Entre os resultados, os autores apontam que os Ouvintes com mais experiência entenderam mais os Falantes de L1 e LA do que Ouvintes com menos experiência, mas esses não avaliaram diferentemente a compreensibilidade. Todos os Ouvintes compreenderam e avaliaram os excertos de Falantes de LA baseados no conteúdo semântico disponível, i.e., excertos verdadeiros e falsos foram mais bem compreendidos e avaliados, enquanto excertos sem significância foram mais mal avaliados. Além disso, os autores apontam para implicações de tais resultados na avaliação de pronúncia do aprendiz e no treinamento de aprendizes em estratégias comunicativas bem-sucedidas em LA.

82 Observa-se que os autores assumem a concepção de Derwing e Munro de modo a ampliá-la na problematização de aspectos que estão relacionados a fatores individuais dos Falantes, como a influência da experiência com Falantes estrangeiros, a qual é construída entre Falantes e Ouvintes. Além disso, os autores refletem sobre as avaliações feitas pelos Ouvintes, de modo não só a considerar o percentual de acerto das transcrições, em uma abordagem de natureza quantitativa, mas também as decisões por trás das transcrições, como um aspecto qualitativo do julgamento. Tais questões podem estar alinhadas com uma compreensão de desenvolvimento linguístico como algo compartilhado entre Falantes e Ouvintes e que se modifica a partir da mudança de variáveis externas e internas aos indivíduos. Embora os autores assumam a definição de Derwing e Munro (1995a), é interessante notar como eles unem ‘compreensibilidade’ e ‘sotaque’ em uma única definição, além de separarem ‘inteligibilidade’, como um “entendimento de fato” (e, portanto, talvez mais objetivo), de ‘compreensibilidade’, assumida como ‘percepção’ (como se fosse algo mais subjetivo).

Conforme já mencionado, a maioria dos estudos em ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ de fala estrangeira tem se debruçado sobre dados de aprendizes de inglês como L2 ou LA, de modo que outras línguas, como o espanhol ou o português como LA, acabam por ficar de fora do repertório de contribuições. Nesse sentido, Albuquerque e Alves (2017) configura-se como uma das poucas contribuições que investigam aspectos de compreensibilidade do Português Brasileiro (PB) como LA32. Os autores dissertam sobre o efeito da experiência com fala nativa e não-nativa, definida pelo estudo a partir do contato qualitativo com migrantes haitianos ou não, e o efeito do tipo de meio disponível, sendo esse o tipo de canal no qual a informação linguística tenha sido transmitida (via áudio ou áudio-vídeo), na compreensibilidade de excertos em PB de aprendizes haitianos por Ouvintes brasileiros.

Além de questões relacionadas à compreensibilidade e à natureza multimodal da fala, evidências teórico-empíricas sobre o papel desempenhado pelo aspecto “experiência” com fala não-nativa fornecem dados interessantes para a referida pesquisa. Estudos como os de Flege (1995) e Fowler e Hodges (2011) apontam que quanto maior o contato/a exposição de um dado indivíduo em relação a uma fala não-nativa, menos

32 É importante mencionar a recente publicação de Alves et al. (2019), que se debruça sobre hispano- falantes, aprendizes de Português como Língua Adicional. No entanto, não se irá concentrar, aqui, nas contribuições desse artigo, uma vez que inteligibilidade foi verificada no nível da palavra, enquanto identificação, tido como insumo para a inteligibilidade global.

83 dificuldade esse terá de perceber o que está sendo transmitido. Assim, entre os resultados do estudo de Albuquerque e Alves (2017), foi encontrado um efeito principal de experiência no valor da média dos resultados da escala de compreensibilidade. Em outras palavras, existe uma diferença significativa nos julgamentos do Grupo de Alunos (graduandos do curso de Português-Inglês de uma Universidade de Curitiba) e do Grupo de Professores (docentes de PB para haitianos), sendo que aqueles consideraram mais difícil compreender a fala do locutor haitiano do que esses.

Apesar de o estudo seguir uma visão dinâmica de desenvolvimento linguístico, não ficava claro, na época da publicação, como tal visão se aliava aos construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ de fala estrangeira, uma vez que tal discussão é tema principal da presente discussão. Além disso, não foi feito um detalhamento, como fez Machry da Silva (2017), a respeito do desempenho individual dos participantes do estudo, os quais poderiam ter oferecido: a) cruzamento de informações quantitativas e qualitativas, a partir de informações de natureza sociolinguística; b) alguma explicação sobre a influência da variável contato linguístico/experiência linguística dos Ouvintes com outras LAs no julgamento de excertos de inteligibilidade e compreensibilidade de fala estrangeira. Tais questões são importantes dentro de uma visão de desenvolvimento linguístico dinâmico e serão investigadas pelo estudo proposto por esta Tese.

Por fim (sem o intuito de esgotar a resenha de estudos que contribuíram com fatores individuais para os construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ de fala estrangeira), trazem-se as contribuições do estudo de Silveira e Cristófaro-Silva (2018). O estudo tinha como objetivo verificar se a inteligibilidade de codas em posição de final de palavra seria afetada pelo tipo de coda compreendida pelos Ouvintes, pelo grau de informação semântica e pela língua materna desses Ouvintes. Também procurou-se realizar correlações ao se examinar a possível interação entre o perfil dos Ouvintes e as variáveis “proficiência na L2”, “familiaridade com a L1 dos locutores” e “tempo de residência no país dos locutores”. O grupo de Ouvintes, composto de 38 participantes de diversas nacionalidades, foi exposto à fala de brasileiros que produziam excertos em inglês. Os excertos continham características fonéticas tipicamente encontradas no inglês produzido por aprendizes brasileiros (e.g., palatalização, inserção vocálica). Entre os resultados, foi encontrada dificuldade com certos tipos de modificação de coda, além de ter sido verificado que a presença de informação semântica melhora a inteligibilidade de alguns excertos.

84 Em relação à influência das variáveis individuais incluídas pelo estudo, verificou- se que Ouvintes cujas línguas maternas eram tipologicamente diferentes do português brasileiro, mas que possuíam familiaridade com o inglês produzido por brasileiros, obtiveram melhores resultados na tarefa de inteligibilidade. De modo a contribuir com aspectos pedagógicos, o estudo aponta para a necessidade da inclusão de diferentes variedades da língua em questão em sala de aula, de modo que a maior exposição gere maior familiaridade com a diferença de sotaque estrangeiro. Ao entenderem a inteligibilidade como um construto compartilhado entre Falante e Ouvinte, as autoras apontam para o fato de que, ao beneficiarem os Ouvintes com a familiaridade com o sotaque estrangeiro e as distintas variedades de pronúncia na L2, os Falantes também podem ser informados das suas dificuldades em relação a aspectos de pronúncia de modo a aprimorá-los, ao estarem cientes da influência na compreensão de fala estrangeira.

Em suma, os estudos supracitados representam contribuições à área de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ de fala estrangeira, de maneira a trazerem novos dados sobre o papel de variáveis como a influência do maior/menor contato linguístico com outras LAs, familiaridade com a L1 dos Falantes, além da experiência linguística entre Falantes e Ouvintes. Tais contribuições possuem um grande impacto em um entendimento de desenvolvimento linguístico como dinâmico e complexo e, portanto, contribuirão com a elaboração do delineamento experimental desta Tese (discutido no Capítulo 4).

2.3.4 O “tempo” e o modo de operacionalização de variáveis relacionadas aos