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3.2 DESENVOLVIMENTO LINGUÍSTICO SOB UMA VISÃO DE SISTEMAS DINÂMICOS COMPLEXOS:

3.2.1 Complexidade e dinamicidade

Conforme argumentado ao longo do Capítulo 2, o aprendizado de componentes linguísticos, como a pronúncia, não se restringe a um conjunto de padrões estabelecidos a priori, mas esses são construídos e estão em constante adaptação e transformação ao longo da vida do indivíduo. Na medida em que o desenvolvimento linguístico é visto como um processo cumulativo e variável e não como um produto estanque, isolado de outros sistemas e variáveis, aponta-se para a necessidade de se adotar uma visão que olhe para a língua enquanto inerentemente variável, multimodal, complexa e dinâmica.

Por “complexo” entende-se que o sistema linguístico dos indivíduos é composto de diversas variáveis (que atuam como elementos ou agentes dentro do sistema) e sua organização não se dá de modo isolado; pelo contrário, o gerenciamento de cada sistema se dá de modo a reconhecer o comportamento de todos os elementos e agentes integradamente, sendo que a sua organização é uma soma do comportamento de todos os seus agentes. A complexidade dos sistemas está relacionada com a conectividade, a qual garante que qualquer ação realizada por uma das partes do sistema irá acarretar mudanças em todas as outras partes, embora não de modo isonômico. Assim, ainda que não haja um mecanismo de controle central, há uma constante relação entre as partes e o todo, garantindo que as informações cheguem a todo o sistema. A partir dessa premissa, tem- se que um sistema complexo, como a língua e a cognição, está relacionado a outros sistemas e subsistemas, de modo que as relações mantidas entre eles não são unidirecionais. Em outras palavras, não existe uma ordem fixa para a conexão dos fenômenos, há interconexão e iteração (relação do estágio atual com os estágios anteriores do sistema) que irão se estabelecer a depender das variáveis envolvidas e do peso entre as relações que serão criadas.

Além de complexos, advoga-se que sistemas como a língua também são dinâmicos, uma vez que se organizam no tempo e por eles são modificados. Há, portanto,

97 diferentemente de paradigmas tradicionais (e.g. gerativismo), um foco mais no processo do que no produto, i.e., uma determinada resposta a um estímulo linguístico é resultado de experiências acumuladas pelo Ouvinte ao longo do tempo, e não apenas em um momento. Nesse sentido, tal reflexão remete à discussão feita no Capítulo 2, acerca da dinamicidade presente nos construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’, pois, por um lado, trata-se de construtos passíveis de modificações no tempo, seja o “tempo” relacionado à mudança na compreensão ao longo de uma mesma tarefa (NAGLE; TROFIMOVICH; BERGERON, 2019), ou ao longo de vários momentos de coleta (conforme testado por esta Tese); por outro, estipula-se que tais construtos não possuem uma finitude, i.e., nenhum indivíduo é inteligível ou compreensível em si e o tempo todo, uma vez que seu sistema linguístico está em constante desenvolvimento.

A partir do que foi acima explicitado acerca das premissas de complexidade e dinamicidade dos sistemas, é possível que se estabeleçam as implicações para contribuições acerca dos construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’ de fala estrangeira, como é caso do estudo de Derwing e Munro (1997). Esta pesquisa teve como objetivo avaliar o sotaque estrangeiro e a compreensibilidade da fala de aprendizes de inglês de nível intermediário, os quais provinham de diferentes L1s (cantonês, japonês, polonês e espanhol). Apesar de não ser explicitado pelo trabalho, nota-se uma preocupação dos autores em incluir Falantes de diversas L1s no delineamento experimental. Entre os resultados do estudo, convém chamar a atenção para o fato de que os autores apontam que a identificação da L1 dos Falantes foi afetada pela familiaridade, como estudos de experiência com sotaque estrangeiro como os de Flege (1995) já haviam apontado, ou seja, os Ouvintes nativos utilizaram diferentes critérios para avaliar os quatro grupos de Falantes e a familiaridade com a L1 de alguns grupos afetou no julgamento. Ao darem importância para o contato linguístico/familiaridade entre Falantes e Ouvintes, os autores acabam por revelar a relação de desequilíbrio constante pela qual o sistema linguístico dos Falantes e Ouvintes passa. Assim, embora os autores não adotem uma visão de língua a partir da TSDC explicitamente, seria possível prever que um dado sistema sempre está longe do equilíbrio, para que se mantenha ativo e possa ser alimentado, sempre, por novos dados, interações. Além disso, é possível destacar que uma vez que os resultados apontaram para distintos julgamentos a partir de variáveis intrínsecas aos Falantes, como o fato de experienciarem L1s distintas, o modo como cada grupo interagiu com o espaço (entendido aqui como ambiente linguístico) retroalimentou suas decisões em relação aos dados dos aprendizes.

98 De modo geral, o estudo, ainda que de modo tímido, demostrou preocupação e reflexão sobre os seguintes aspectos: a) a compreensão de que cada grupo de Falante operou com a interação de variáveis e sistemas ao longo do tempo, i.e., o sistema sendo a cognição e aspectos relacionados à recuperação de dados (memória), e à saliência de cada um dos dados apresentados (atenção); b) a diferença nas decisões de cada grupo, ao terem operado com diferentes condições iniciais, uma vez que os grupos possuíam perfis de experiência distintas com os dados e com os Falantes em questão.

A contribuição de Derwing e Munro (1997) apresenta aspectos embrionários de uma visão de língua via TSDC sobre os construtos de e ‘compreensibilidade’ (incluindo diversas L1s no estudo), em relação às premissas de complexidade e dinamicidade. No entanto, a complexidade e dinamicidade dos sistemas está intimamente relacionada com o fato de o desenvolvimento e a auto-organização desses se estabelecer, essencialmente, no tempo. A TSDC é uma teoria de tempo. Assim, o delineamento experimental proposto por esta Tese lança mão de uma investigação longitudinal dos construtos acima citados. Nesse sentido, o teste inclui diversas tarefas (produção oral, avaliação em escala Likert, contabilização do tempo de tomada de decisão sobre os excertos e uma caixa de opinião), as quais evidenciam que a complexidade dos construtos não se encontra apenas no resultado individual de cada tarefa, mas na integração dos insumos dessas, que proverão um entendimento mais holístico da compreensão no binômio entre Falantes e Ouvintes. Além disso, como tais tarefas se dão no tempo (na análise de várias coletas), é possível observar o processo de como o julgamento dos Ouvintes, em relação aos excertos produzidos pelos Falantes, a cada parte, retroalimenta e atua na iteração do sistema. Dessa forma, a cada coleta de dados, o sistema de ambas as partes do binômio, Falantes e Ouvintes, se encontra em um dado momento (que é resultado dos momentos anteriores e o atual). Assim, os índices de inteligibilidade e compreensibilidade serão afetados, por um lado, pela proficiência desenvolvida pelos Falantes haitianos ao longo de suas diversas interações em português e pelas mudanças causadas nos seus sistemas (em relação à sua L1 e a outras LAs) e, por outro, pelo maior contato linguístico dos Ouvintes brasileiros com a fala haitiana do português, do contato e experiência linguística de tais Ouvintes com outras LAs, entre outras variáveis e forças atuantes no sistema.

O delineamento experimental da Tese, por se basear em uma concepção de desenvolvimento complexo e dinâmico, entende que não há um ponto final para o aprendizado do sistema; pelo contrário, o aprendizado é constante, e o que ocorre são estados de mais ou menos equilíbrio por conta de mudanças internas e externas no

99 sistema. Tais mudanças, por sua vez, farão emergir novos padrões nos sistemas de Falantes e Ouvintes, como será discutido a seguir.