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3.2 DESENVOLVIMENTO LINGUÍSTICO SOB UMA VISÃO DE SISTEMAS DINÂMICOS COMPLEXOS:

3.2.2 Emergência e não linearidade

Modelos e/ou abordagens mais tradicionais que se debruçam sobre o processo de desenvolvimento linguístico preveem a existência de etapas, relativamente fixas, para a aquisição de línguas adicionais. Assume-se que os processos de sequenciamento e organização de tais etapas estão relacionados a regras hierárquicas, de orientação top-

down, as quais se desdobram em pelo menos duas consequências: i) o desenvolvimento

linguístico seria semelhante para diferentes Falantes; ii) o efeito de uma determinada variável seria proporcional à sua causa. No entanto, discussões como as propostas pelos trabalhos organizados por Van Patten e Williams (2014) revelam a língua como inerentemente variável, construída a partir das experiências e padrões que emergem do seu uso. Nesse sentido, uma visão que tome a língua como dinâmica, complexa e multimodal daria conta de assumir que nem todo efeito será proporcional à sua causa (LARSEN-FREEMAN, 2015, p. 228), dado que uma pequena alteração ou mudança pode ter um grande impacto no sistema. Tomando o desenvolvimento linguístico como pano de fundo desta discussão, uma instrução explícita no ambiente de sala de aula, ou mesmo a mudança em algum aspecto da produção oral de um Falante, pode ter um grande efeito em vários aprendizes e Ouvintes dos excertos, mas o efeito não seria igual para todos, uma vez que o desenvolvimento não ocorre linearmente. A partir da reflexão acima feita, foca-se no entendimento acerca da emergência de novos padrões ao longo do tempo, dentro de um processo desenvolvimental de língua que se entende como não linear.

Em consonância com as características apontadas pelo trabalho de Beckner et al. (2009, p. 2), De Bot (2017) discorre que os sistemas dinâmicos são constituídos de diversas propriedades, entre elas a de serem não lineares e serem afetados pelas mudanças causadas pelas diversas variáveis que compõem o sistema e seus subsistemas. Tais alterações podem provocar o aparecimento de novos padrões que emergem com o desenvolvimento. A não linearidade pode ser explicada, em linhas gerais, através das interações entre as variáveis que compõem um sistema e seu ambiente, uma vez que as variáveis desenvolvem uma trajetória que inclui as interações frequentes e recorrentes do sistema, não sendo possível que se tenha uma equação fixa, a qual estipule valores exatos do sistema (DE BOT et al., 2013). Um exemplo do funcionamento entre as variáveis de

100 um sistema dinâmico poderia ser a de um sistema meteorológico, conforme Albuquerque (2012). Segundo a autora,

“a chuva não depende apenas de uma variável, como a evaporação da água dos rios, mas também da formação de frentes frias, por exemplo. Estas, por sua vez, têm sua ação condicionada a sistemas de pressão (que a impedem de atingir um determinado local ou permitem que ela o faça) ou a ventos, por exemplo, que a empurram para a costa ou para o continente. Em resumo: há uma diversidade de fatores que, conjugados, resultam em chuva numa determinada região. Da mesma maneira, o funcionamento dos sistemas dinâmicos pressupõe a interação de inúmeras variáveis.” (ALBUQUERQUE, 2012, p. 33)

Assim, conforme citado acima, apesar de existirem determinadas variáveis que condicionam a ocorrência de um fenômeno como a chuva, tal fato não significa que apenas a presença de tais variáveis culmine na ocorrência de chuva. As variáveis sofrem a influência da região, a qual opera aqui como o ambiente no qual o sistema está inserido. Tomando-se que a interação entre as variáveis se dá de maneira não linear, como possíveis padrões podem emergir do sistema?

É uma condição sine qua non para a TSDC que o sistema se mantenha longe de condições de equilíbrio (para que continue vivo e se modificando, uma vez que o equilíbrio pode significar a morte do sistema). Há, no entanto, a tendência de que ele se organize depois de uma dada trajetória temporal, uma vez que há a estabilização de alguns padrões, e isso está intimamente relacionado ao ordenamento emergente da TSDC. Cada sistema possui uma rede de muitos agentes operando em paralelo e cada um deles acaba por se encontrar em um ambiente e passa a interagir com outros dentro do sistema. A todo momento, existem forças de atração e repulsão fazendo com o que sistema nunca se estabilize totalmente. É a partir da interação dos agentes que surge um tipo de propriedade padrão, a qual não poderia ter sido prevista a partir do comportamento e rastreamento das mudanças em um agente individualmente, mas sim das relações entre diferentes agentes. Em decorrência desse atributo de emergência, o sistema procura não entrar em estado de equilíbrio pleno, passando sempre por momentos de estabilidade e instabilidade, ordem e desordem. A partir disso, há a possibilidade de que as novas trajetórias em relação ao surgimento de padrões emerjam da desordem, i.e., o ordenamento pode emergir das interações de feedback não linear entre os agentes.

De modo a pensar no papel da não linearidade e emergência para os sistemas linguísticos, é possível que se tome como ponto de partida o fato de que a língua tem um caráter social e que o conhecimento que acumulamos sobre a língua e sua estrutura advém

101 da interação humana e de processos cognitivos – de armazenamento de longo e curto prazo e de processos atencionais – (BECKNER et al., 2009). Mais especificamente, em relação aos construtos de ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’, o ordenamento emergente poderia surgir a partir das relações entre Falantes, Ouvinte e meio, e a depender das tarefas linguísticas que os indivíduos precisem realizar.

Um estudo que poderia se beneficiar de uma visão de língua enquanto SDC seria o de Munro, Derwing e Morton (2006). Nesse estudo, os autores investigam em que grau um grupo diverso de Ouvintes pode compartilhar uma resposta a estímulos de fala em L2. Entre os resultados do estudo, os autores apontam para uma interdependência entre Falante e Ouvinte, como se esses estivessem em uma relação simbiótica através de mudanças ocorridas ao longo do tempo, o que poderia se relacionar (na leitura proposta por esta Tese) com a emergência de novos padrões de compreensão entre os participantes do estudo em questão.

Adicionalmente, os resultados do referido esudo apontaram que, independentemente do background linguístico nativo, os grupos de Ouvintes mostraram uma correlação38 de moderada a alta nos escores de inteligibilidade, compreensibilidade e sotaque estrangeiro. Além disso, embora algumas diferenças inter-grupos tenham aparecido, os grupos tenderam a concordar sobre quais dos 48 Falantes eram os mais fáceis ou mais difíceis de entender; o tamanho dos efeitos inter-grupos foi geralmente pequeno. Embora tais resultados deixem de olhar para o dado individual, o qual é bastante caro em uma visão de língua via TSDC (LOWIE, 2017; LOWIE; VERSPOOR, 2019), chama-se a atenção para dois comentários dos autores, os quais se encaixam em uma visão de desenvolvimento via TSDC: (i) a não dependência de background linguístico e (ii) as diferenças individuais atenuadas pela análise dos grupos. Sobre o ponto (i), observa-se que os resultados inter-grupos podem ter “mascarado” as diferenças individuais, o que poderia indicar que a experiência ou contato linguístico pertencente ao grupo de Ouvintes não tenha tido uma relação direta com o julgamento de inteligibilidade realizado pelos Ouvintes, i.e., é possível que o background linguístico de alguns Ouvintes tenha influência nos escores de obtidos, mas não de maneira isonômica, conforme previamente discutido. Nessa linha de pensamento, via TSDC, seria interessante explorar

38 É importante que se aponte que a correlação sempre estabelece uma associação linear entre as variáveis estudadas, e o funcionamento das variáveis em uma visão de língua como SDC é sempre não linear. Assim, é necessário que se reflita sobre como analisar os dados via estatística inferencial, possivelmente sob um viés exploratório e dependente das demais relações dentro e fora do sistema em questão.

102 o que tal não linearidade poderia oferecer aos resultados do estudo de Munro, Derwing e Morton (2006) e, em última instância, olhar para o modo como o julgamento da inteligibilidade, compreensibilidade e sotaque estrangeiro se relaciona com variáveis pessoais. Sobre o ponto (ii), é importante apontar que o leitor não possui acesso ao quanto os dados e valores individuais afetaram a análise, mas a partir do comentário por parte dos autores, de que o tamanho do efeito inter-grupos foi pequeno, aventa-se a possibilidade de o tamanho do efeito já possuir uma distorção de saída, em relação à quantidade de participantes testados. Se os dados individuais fossem explorados, eles poderiam oferecer detalhes qualitativos acerca do desenvolvimento iterativo de Falantes e Ouvintes. A emergência de novos padrões para alguns dos participantes pode ter sido mascarada pela necessidade de realizar generalizações dos grupos.

Ainda em relação à ‘inteligibilidade’ e ‘compreensibilidade’, construtos testados por esta Tese, aponta-se que o delineamento experimental foi construído de forma a levar em consideração as premissas de emergência e não linearidade discutidas nesta subseção. Tais aspectos podem ser visualizados, por um lado, na escolha por uma tarefa de repetição oral para mensurar a inteligibilidade. Ainda que tradicionalmente a maioria dos estudos lancem mão da transcrição como operacionalização do construto de ‘inteligibilidade’ (conforme discutido no Capítulo 2), entende-se que a repetição oral do excerto recebido pode viabilizar uma elaboração linguística com maiores detalhes acerca dos aspectos semântico-pragmáticos e fonéticos envolvidos na compreensão da produção oral do Falante (assim como apontado na discussão dos resultados de Rosa et al., 2018). Acredita-se que a produção dos Falantes haitianos sofrerá mudanças (grandes e pequenas) ao longo das coletas e que estas provocarão efeitos na compreensão dos Ouvintes brasileiros de forma não linear.

Dada a natureza dinâmica e complexa do desenvolvimento linguístico, aponta-se que, ao elaborar oralmente uma informação, o Ouvinte tem a possibilidade, por um lado, de não precisar mediar sua compreensão por uma via ortográfica – a qual possui diversas implicações para o processo de percepção sonora (PORT; LEARY, 2005) – e, por outro, de enunciar (no ato da repetição oral) mudanças em sua percepção do excerto recebido. Este último argumento relaciona-se com a emergência de novos padrões dentro de uma visão de desenvolvimento linguístico via TSDC. Em outras palavras, novos padrões emergem a partir de perturbações no sistema e a ocorrência desses pode estar associada com o modo como as tarefas de inteligibilidade fazem o Ouvinte recuperar o conteúdo informacional (ZIELINKSI, 2006, 2008; LINDEMANN; SUBITERELU, 2013).

103 A presente Tese entende que, em um estudo de inteligibilidade e compreensibilidade de fala estrangeira, tanto aspectos como a natureza da tarefa para testagem dos construtos, quanto o repertório linguístico de Falantes e Ouvintes, podem influenciar a emergência de padrões acerca da compreensão de estímulos linguísticos. Novamente, é preciso ponderar que a emergência de novos padrões não acontecerá de modo isonômico (no mesmo momento temporal e com a mesma intensidade) para todos os Falantes e Ouvintes, uma vez que os sistemas se comportam de modo não linear. Mais especificamente, como a população-alvo desta Tese (haitianos, aprendizes de português como Língua Adicional) é pouco estudada, interessa a investigação de como se dá a emergência de padrões sobre os índices de inteligibilidade e compreensibilidade de fala estrangeira ao longo de várias coletas.