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11. Interpretação Constitucional 1 Identidade própria.

11.3. Aspectos ideológicos.

A disputa ideológica está impregnada no processo de interpretação constitucional, revelando que o direito, especialmente o constitucional, mantém um estreito convívio com a política. Ademais, o direito dificilmente consegue escamotear o seu caráter intrinsecamente ideológico. Afinal, até mesmo o purismo metodológico do juspositivismo, embora o negue com veemência, é também fundado em uma ideologia, a do “dever absoluto ou incondicionado de obedecer à lei enquanto tal” 334.

Se quisermos averiguar a presença da ideologia na interpretação constitucional, convém, a princípio, especularmos acerca do seu conceito. Fernando Barcellos de Almeida, numa definição assumidamente sucinta, diz que ideologia “é a maneira de pensar que caracteriza um indivíduo ou um grupo social”335. Bobbio, de sua parte, recorre à seguinte enunciação: “A ideologia (...) é a expressão do comportamento avaliativo que o homem assume face a uma realidade, consistindo num conjunto de valores relativos a tal realidade, juízos estes fundamentados no sistema de valores acolhido por aquele que o formula, e que têm o escopo de influírem sobre tal realidade”336.

Justamente em virtude dessa aspiração de influir na realidade, própria da ideologia, não há como cogitar da descontaminação ideológica do processo de interpretação constitucional.

Considerando natural a chamada crítica ideológica do direito, Canotilho não vê nisso qualquer risco à relativa autonomia do jurídico, muito menos ameaça de aniquilação dos métodos jurídicos do conhecimento. Ao revés, diz que o principal perigo para o direito constitucional, no sentido republicano, “não resulta da afirmação do caráter político desse direito, mas precisamente do inverso: do mito do Estado de Direito impolítico”. Para ele, a confrontação de ideologias na discussão dos problemas constitucionais é irrecusável337.

332

COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 26, 1997.

333

HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição:

Contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio

Fabris Editor, p. 18 e 23, 1997.

334

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, p. 223-225, 1995; Na mesma linha de raciocínio, no Brasil, manifesta-se Plauto Azevedo (AZEVEDO, Plauto Faraco de.

Método e Hermenêutica Material no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 70, 1999). 335

ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria Geral dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, p. 20, 1996.

336

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, p. 223, 1995.

337

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Editora, p. 8 e 44, 1994; Sobre o politicismo do direito, Dworkin adota o seguinte entendimento: “a prática

Perez Luño vai além: afirma que o horizonte ideológico aparece como elemento substancial de qualquer processo hermenêutico, esteja ou não consciente disso quem o leva a cabo338. Com semelhante propósito desmistificador, Manoel Jorge e Silva Neto chega a designar a ideologia como um “pressuposto indeclinável no iter interpretativo”. E esclarece, adiante, que a forte presença ideológica no panorama constitucional resulta da introdução de valores na instância constitucional pelo próprio constituinte, como, aliás, assevera também ocorrer na elaboração das leis. “Nesse passo,” conclui, “o único modo de colher os valores incluídos no sistema do direito positivo é o recurso à ideologia” para estimar o conteúdo axiológico já presente na ordem jurídica339.

Ivo Dantas, ao tratar de princípios constitucionais fundamentais, delimita a ideologia como um conjunto de juízos de valor, relativo a questões políticas, econômicas, sociais e culturais. E assinala que ideologia constitucional significa uma opção, necessariamente condicionada, diante de modelos políticos, econômicos e sociais340. Na medida em que patrocina determinados princípios fundamentais, a Constituição delineia o tipo de Estado que deseja construir, incutindo nele uma conotação ideológica, consagradora de tais valores políticos em sentido amplo. Se uma Constituição, por exemplo, adere ao modelo de Estado social, deverá, inevitavelmente, assumir a correspondente mensagem ideológica, que repercutirá na interpretação do texto constitucional e nos seus desdobramentos em todo o sistema jurídico.

Sob a ótica do percurso interpretativo, a ideologia traduz-se na pré- compreensão que o intérprete opera, porquanto grava com o seu conteúdo valorativo a deflagração de toda e qualquer análise de índole constitucional341. Não será possível, pois, voltando ao exemplo do Estado social, deixar de considerar o seu substrato ideológico como premissa interpretativa de todos os dispositivos da Constituição respectiva. Nesse sentido, quando a Lei Fundamental da República Federativa da Alemanha proclama um “Estado federal democrático e social” (artigo 20º, nº 1), adota princípios definidores de uma ruptura com a leitura liberal da vida cívica, para adquirir, na definição Nuno Rogeiro, uma índole eminentemente social342.

Fica demonstrado, pois, que a ideologia constitucional integra a própria raiz do processo interpretativo. Estamos, assim, sintonizados com a afirmação de Paulo Pimenta –

jurídica é um exercício de interpretação não apenas quando os juristas interpretam documentos ou leis específicas, mas de modo geral. O Direito, assim concebido, é profunda e inteiramente político. Juristas e juízes não podem evitar a política no sentido amplo da teoria política. Mas o Direito não é uma questão de política pessoal ou partidária, e uma crítica ao Direito que não compreenda essa diferença fornecerá uma compreensão pobre e uma orientação mais pobre ainda” (DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo:

Martins Fontes, p. 217, 2000).

338

Apud CAMPOS, Germán J. Bidart. Teoría General de los Derechos Humanos. Buenos Aires: Astrea, p. 389, 1991.

339

SILVA NETO, Manoel Jorge e. O Princípio da Máxima Efetividade e a Interpretação Constitucional. São Paulo: LTr, p. 35, 1999; Confirmando a tese, Maria Helena Diniz lembra que a idéia de justiça contida na Constituição, além de ser um valor, é também ideológica. (DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus

Efeitos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, p. 35, 1997). 340

DANTAS, Ivo. Princípios Constitucionais e Interpretação Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 50, 1995.

341

AZEVEDO, Plauto Faraco de. Método e Hermenêutica Material no Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 139, 1999.

342

ROGEIRO, Nuno. O Sistema Constitucional da Alemanha. In: A Lei Fundamental da Alemanha da República Federal da Alemanha. Coimbra: Coimbra Editora, p. 80, 1996.

por sua vez inspirado em Wróblewski -, segundo a qual “a principal peculiaridade da interpretação constitucional consiste no enraizamento político das valorações”343.

Essas valorações, convertidas em ideologia, que orienta o processo interpretativo da Constituição, não são, todavia, um leque inteiramente aberto à potestade do intérprete. Se, por um lado, o recurso à atuação da ideologia contribui para a oxigenação do texto, expandindo seu significado e potencialidades, por outro lado o componente ideológico não deve transcender os limites do razoável344.

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