• Nenhum resultado encontrado

29.1. Estímulo à empregabilidade.

Um dos argumentos mais efetivos trazidos à discussão pela vertente reformista do direito do trabalho reside na afirmação de que as garantias de valorização do vínculo empregatício devem dar lugar a modalidades de contrato menos rígidas, dotadas de menor padrão protetivo, que sejam capazes de estimular a empregabilidade. Nessa linha de raciocínio, o direito do trabalho estaria, a essa altura, cada vez mais, superado pela necessidade de impulsionar o combate ao desemprego, por meio da promoção do direito ao trabalho.

29.2. Reconhecimento jurídico.

O direito ao trabalho busca assegurar o acesso do indivíduo ao exercício efetivo de sua correspondente atividade laboral. Sua dimensão concreta traduz-se na obtenção e conservação do emprego, em sentido estrito, ou, numa perspectiva mais ampla, do trabalho remunerado.

O artigo 23, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas inaugura o seu texto com a proclamação de que “toda pessoa tem direito ao trabalho”. Antes, portanto, de assegurar prerrogativas de tutela à qualidade das condições de emprego (que constam na continuidade do referido artigo), o célebre documento elevou ao rol

705

dos direitos humanos o direito de acesso ao trabalho. O dispositivo contém mandamento de índole eminentemente prestacional, dirigido aos dinamizadores da atividade econômica, diretos (empregadores) ou indiretos (Estado promotor das condições de empregabilidade). Nada se confunde, pois, com o trecho subseqüente da Declaração, em que se deduz que toda pessoa tem direito a condições justas e favoráveis de trabalho. Estipulada claramente tal distinção, não se pode admitir que o incremento do direito ao trabalho possa estar vinculado à frustração de outro direito humano de igual status. O direito do trabalho justo e favorável ao trabalhador não admite, assim, ser esvaziado, mesmo ao pretexto de assegurar o direito ao trabalho.

A consagração do direito ao trabalho tem adquirido espaço no texto de diversas Constituições contemporâneas. Tanto assim que, na Constituição da Espanha de 1978, o artigo 35.1 consigna a todos os espanhóis “el derecho al trabajo, a la libre elección de profesión u oficio”. Com semelhante espírito, o preâmbulo da Constituição francesa de 1946, confirmado pela Constituição de 1958, proclama a todos o direito de obtenção de um emprego. Já a Constituição portuguesa de 1976 faz constar no artigo 58.º uma detalhada previsão acerca do tema, nos seguintes termos: “1. Todos têm direito ao trabalho. 2. Para assegurar o direito ao trabalho, incumbe ao Estado promover: a) A execução de políticas de pleno emprego; b) A igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado, em função do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias profissionais; c) A formação cultural e técnica e a valorização profissional dos trabalhadores”

No Brasil, o constituinte curvou-se ao mesmo propósito, mediante a declaração da liberdade de exercício de qualquer trabalho e a inclusão do trabalho no rol dos direitos sociais, conforme os dispositivos adiante transcritos: “Art. 5º (...) XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; (...) Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

De nenhuma forma, entretanto, pode a constitucionalização do direito ao trabalho vir a representar abalo, muito menos eliminação do patrimônio jurídico que assegura a organização do trabalho em condições socialmente dignas. Mesmo nos textos constitucionais que acolheram mandamentos promotores do acesso ao trabalho, foram paralelamente preservados, e até enriquecidos, os elementos de garantia da plena aplicação do direito do trabalho. Tal conclusão se deduz do artigo 59º, nº 1, da Constituição portuguesa de 1976 e do artigo 7º da Constituição brasileira de 1988.

29.3. Dimensões de afirmação.

Quanto às dimensões do processo de afirmação do direito ao trabalho, Jorge Miranda identifica fundamentalmente a liberdade de escolha, num determinado plano, e a liberdade de exercício, em outro. Chama a atenção, também, para o aspecto negativo da liberdade de trabalhar, traduzida na interdição do trabalho obrigatório. No que diz respeito à liberdade de escolha, o mestre lusitano alinha o direito de escolher sem impedimentos nem discriminações qualquer profissão; o direito de acesso à formação escolar e à aprendizagem necessárias; o direito de obter promoções; o direito de escolher uma especialidade, e; o direito de mudar de profissão. Relativamente à liberdade de exercício, Jorge Miranda aponta os seguintes desdobramentos: direito de obter as habilitações legais ao exercício do profissão;

direito de adotar a modalidade desejada de exercício da profissão; direito de escolher o lugar de exercício da profissão; direito de contratar atos jurídicos referentes ao exercício profissional; direito ao segredo profissional; direito de inscrição em associações profissionais, e; direito de não ser privado do exercício da profissão706.

Numa abordagem ainda mais específica quanto ao caráter do direito ao trabalho aqui discutido, Bidart Campos extrai do seu conteúdo, em primeiro lugar, a razoável liberdade de eleger uma atividade. Descortina, porém, como segunda dimensão, o direito de ser contratado para desempenhar a profissão escolhida, que introduz um problema essencial: haverá daí uma obrigação em sentido jurídico, que venha a compelir um sujeito passivo (qual?), e em que medida? Esse questionamento é formulado pelo constitucionalista argentino da seguinte forma: “En el progreso histórico de los derechos humanos se ha pensado y sugerido que como desglose del clásico derecho de trabajar de puede independizar un derecho ‘al’ trabajo, derecho que de ser tal (y no mera fórmula inconducente) significaría el derecho del hombre que no consigue trabajo, a que alguien le provea ocupación remuneratoria. Si este contenido existe, hay que encontrar un sujeto pasivo en condiciones de cumprir la obligación de dar empleo a quien no puede procurárselo por sí mesmo mediante una relación laboral contractualmente convenida con outro sujeto”707.

29.4. Apropriação pela ideologia neoliberal.

A apropriação pela ideologia neoliberal do argumento jurídico em defesa do direito ao trabalho passou a atribuir a este a responsabilidade pelo desestímulo à empregabilidade. Nessa ótica, as normas protetivas trabalhistas constituiriam um desnecessário estorvo aos custos da produção, afetados intensamente pela competitividade, resultando na queda das admissões de empregados, ao menos pelos meios formais. Na outra ponta, haveria a tendência irrefreável à eliminação dos postos de trabalho, não tanto pela evolução tecnológica, mas principalmente em razão do excessivo ônus causado às empresas pelos encargos sociais e trabalhistas.

Tal novo discurso em favor do direito ao trabalho, por conseguinte, parte da premissa, denunciada por Lyon-Caen, de que um suposto excesso de proteção ao trabalhador funcionaria como causa da desocupação. Disso deriva a expectativa de que os trabalhadores e os seus sindicatos deveriam abrir mão de alguns seus direitos históricos para não se acumpliciarem do crescimento do número de desempregados708.

Crítico da excessiva regulamentação trabalhista, José Pastore advoga a tese segundo a qual os dispositivos legais do campo trabalhista seriam fator relevante na geração de empregos, dando a entender que essa relação seria inversamente proporcional: quanto mais regulamentação protetiva, menos empregos disponíveis haveria709. Daí se estrutura uma severa reprovação lançada em direção à rigidez na aplicação do direito do trabalho, que teria o efeito de impedir a empregabilidade, ao passo que regulações meleáveis permitiriam o ajustamento do conteúdo do direito do trabalho a patamares suportáveis pela economia.

706

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Direitos Fundamentais. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, p. 438-441, 1998.

707

CAMPOS, Germán J. Bidart. Teoría General de los Derechos Humanos. Buenos Aires: Astrea, p. 139-141, 1991.

708

LYON-CAEN, Gérard. ¿Derecho del Trabajo o Derecho del Empleo? In: Evolucion del Pensamiento

Juslaboralista. Estudios en Homenaje al Prof. Héctor-Hugo Barbagelata. Montevideo: FCU, p. 267, 1997.

709

PASTORE, José. A Agonia do Emprego: Investimentos de Menos e Regulamentos de Mais. In: Revista LTr, São Paulo: LTr, ano 60, nº 01, p. 18, jan. 1996.

Entendendo que a consideração rígida do direito do trabalho impede grande parte da criação dos empregos, Cássio Mesquita Barros propõe novos modelos de ocupação (trabalho de duração limitada, trabalho a tempo parcial e outros), como forma de impulsionar a criação de novos empregos710.

Professa esta crença, em Portugal, o juslaboralista Pedro Martinez, que chega a questionar a proteção do trabalhador do ponto de vista principiológico, nos seguintes termos: “O favor laboratoris deve ser hoje entendido numa perspectiva histórica, sem uma aplicação prática; o Direito do Trabalho não foi estabelecido para defender os trabalhadores contra os empregadores, ele existe em defesa de um interesse geral, onde se inclui toda a comunidade. A comunidade, de que fazem parte trabalhadores e empregadores, beneficia da mútua colaboração e da paz social. A ideia de que no Direito do Trabalho se pretende favorecer o trabalhador contra o empregador dificulta inclusive a criação de novos postos de trabalho, pelo receio que as entidades patronais têm das conseqüências que daí poderão advir”711.

Sem generalizar, mas suscitando uma ponderável situação, Javillier indaga se é legítimo e proveitoso forçar a aplicação do direito do trabalho quando disso possa resultar, quase mecanicamente, a própria desaparição de uma empresa712.

Essas reflexões ajudam a compreender o fenômeno identificado por Lyon- Caen, mediante o qual o direito do trabalho experimenta uma inversão, para reorientar-se unicamente no sentido do interesse da empresa713. Nos parece pertinente tal observação, em particular, na medida em que vislumbramos na relação capital-trabalho um antagonismo intrínseco e um embate de poder, que sugerem a regra de precedência do interesse obreiro, ora sob ataque. Ainda que as partes sociais possam – e devam – caminhar para o entendimento, a natureza conflituosa da sua relação é inegável, pelo que a convivência de dois princípios fundamentais antípodas – em benefício do trabalhador e em benefício da empresa – revela-se impraticável. Nessa circunstância prevalecerá o poder patronal, frustrando a sobrevivência do direito do trabalho.

29.5. Novo papel para o direito do trabalho.

O enfoque que privilegia o direito ao trabalho pode apresentar-se de uma maneira atenuada, contemplando a premissa da prévia negociação coletiva das mudanças sugeridas para incentivar a empregabilidade. Nesse modelo, os sindicatos de trabalhadores tornam-se agentes da construção de alternativas que visem à preservação de empregos e à criação de novos postos de trabalho. Aparentemente, esta ressalva protege os trabalhadores contra lesões a seus direitos, na medida em que a sua entidade representativa deveria recusar- se a firmar acordos prejudiciais. A realidade contesta tal suposição, porquanto a premência de questões de natureza econômica, associada à disparidade de poder de pressão dos sindicatos obreiros frente ao poder patronal permite a assinatura de instrumentos nitidamente desvantajosos para os trabalhadores, mesmo contando com a participação sindical.

710

BARROS, Cássio Mesquita. O Futuro do Direito do Trabalho. In: Revista LTr, São Paulo: LTr, ano 66, nº 05, p. 526, maio, 2002.

711

MARTINEZ, Pedro Romano. Os Princípios e o Direito do Trabalho em Portugal. In: SILVESTRE, Rita Maria, NASCIMENTO, Amauri Mascaro (Coord.). Os Novos Paradigmas do Direito do Trabalho (Homenagem a Valentim Carrion). São Paulo: Saraiva, p. 41, 2001.

712

JAVILLIER, Jean-Claude. Hacia un Nuevo Derecho del Trabajo. In: Evolucion del Pensamiento Juslaboralista. Estudios en Homenaje al Prof. Héctor-Hugo Barbagelata. Montevideo: FCU, p. 225, 1997.

713

LYON-CAEN, Gérard. ¿Derecho del Trabajo o Derecho del Empleo? In: Evolucion del Pensamiento

Sucede, então, nas palavras de Lyon-Caen, uma alteração de sentido da negociação coletiva: não mais se negocia sobre a promoção de melhores condições de trabalho, mas sim sobre a conservação dos empregos714. As medidas tomadas nesse caminho buscam a tutela do empreendimento econômico, em detrimento dos empregados, com o pretexto de oferecer mecanismo de combate ao desemprego715.

Pode-se traçar um novo perfil a que se amolda o direito do trabalho, nessa perspectiva de prioridade da gestão econômica e social, em lugar da sua função precípua de proteger o trabalhador. Robortella vislumbra assim uma contribuição do direito do trabalho para a governabilidade democrática, a partir do seu direto compromisso com os programas governamentais de emprego, com a formação profissional (esta visando à reinserção no mercado de trabalho), com a absorção de novas tecnologias e com a diminuição dos custos do trabalho716.

Assim, o direito do trabalho, na verdade, passa a abdicar de sua personalidade própria, de sua nota distintiva, facultando até uma freqüente substituição de sua denominação original pela expressão regulamentação do mercado de trabalho. Isto acontece, conforme destaca Bronstein, porque sua conotação social deixou de ser considerada virtude, para ser designada como vício717.

O objetivo subjacente a esta tendência consiste em permitir o livre funcionamento do mercado de trabalho, sem a incidência de princípios de proteção laboral, como conseqüência do neoliberalismo. A idéia, bem descrita (e criticada) por Floriano Vaz da Silva, consiste em sustentar a submissão do direito do trabalho à lei da oferta e da demanda, para que por esta se determinem salários e condições de trabalho, como se aí residisse a quintessência do ajuste social das relações trabalhistas718.

Enxergamos em tal abordagem a promoção de uma falsa dicotomia entre direito do trabalho e direito ao trabalho, estimulada por uma pauta ideológica de receitas neoliberais, que não encontra arrimo constitucional. A questão não remete apenas a uma contraposição entre partidários do ajuste econômico neoliberal, de um lado, e simpatizantes do direito do trabalho garantista, inspirados no intervencionismo estatal, de outro, como sugere Bronstein719. Acreditamos que a pretendida confrontação desafia, até mesmo, o direito do trabalho em bases democráticas, que tenha em sua agenda o desenvolvimento primordial de uma negociação coletiva equilibrada.

29.6. Transferência de ônus aos trabalhadores.

714

LYON-CAEN, Gérard. ¿Derecho del Trabajo o Derecho del Empleo? In: Evolucion del Pensamiento

Juslaboralista. Estudios en Homenaje al Prof. Héctor-Hugo Barbagelata. Montevideo: FCU, p. 272, 1997.

715

CATHARINO, José Martins. El Rebrote de la Doctrina Liberal y los Modelos Flexibilizadores. In: Evolucion del Pensamiento Juslaboralista. Estudios en Homenaje al Prof. Héctor-Hugo Barbagelata. Montevideo: FCU, p. 118, 1997.

716

ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorim. Terceirização - Tendências em Doutrina e Jurisprudência. In: RIBEIRO, Lélia Guimarães Carvalho, PAMPLONA FILHO, Rodolfo (Coord.). Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, p. 312-313, 1998.

717

BRONSTEIN, Arturo S. Reforma Laboral en America Latina: entre Garantismo e Flexibilidad. In: Revista Internacional del Trabajo, Ginebra: Oficina Internacional del Trabajo, volumen 116, número 1, p. 10-11, 1997.

718

SILVA, Floriano Vaz da. Os Princípios do Direito do Trabalho e a Sociedade Moderna. In: SILVESTRE, Rita Maria, NASCIMENTO, Amauri Mascaro (Coord.). Os Novos Paradigmas do Direito do Trabalho (Homenagem a Valentim Carrion). São Paulo: Saraiva, p. 143, 2001.

719

BRONSTEIN, Arturo S. Reforma Laboral en America Latina: entre Garantismo e Flexibilidad. In: Revista Internacional del Trabajo, Ginebra: Oficina Internacional del Trabajo, volumen 116, número 1, p. 10, 1997.

Como assinala Ronald Souza em trabalho específico sobre o direito ao trabalho, a álea da conjuntura econômica da empresa não deve ser igualmente suportada por empregado e empregador. Diz ele: “O exercício da atividade econômica, nos regimes de livre iniciativa, traz uma certa álea que exige um esforço do detentor do capital para levar a bom termo o seu empreendimento. Dessa álea não participa, direta e efetivamente, o empregado que não foi auscultado, não sugeriu, nem escolheu o tipo de atividade a que o empresário destina seu patrimônio. Tratar igualitariamente empregado e empregador, junto à conjuntura econômica da empresa, seria uma negação da justiça. A proteção jurídica há que considerar as circunstâncias, as pessoas, a detenção de bens, enfim todos os fatores que ensejam respeitar a desigualdade para dar tratamento igualitário na proporção em que se desigualem. (...) As restrições de mercado e de crédito emergem de leis econômicas e são situações conjunturais mais fáceis de suportar pelo empresário que pelo obreiro”720.

Estamos, com Plá Rodriguez, inclinados a pensar que a desocupação é um fenômeno de origem econômica e causalidade complexa, que transborda o direito do trabalho721. Nos parece precipitado perseguir a solução de um drama social tão intrincado em alterações que transfiguram o direito do trabalho. Para nós, nessa senda sucumbirá este, sem resolver o problema em mira.

Vale salientar o ensinamento de Siqueira Neto, para quem o direito do trabalho não existe para resolver problemas da economia. Lembrando que nos países de industrialização avançada e democracia consolidada as transformações, modificações e reformas trabalhistas abstiveram-se de atentar contra os princípios fundamentais da disciplina, o autor assinala que o direito do trabalho “é o patamar de cidadania nas relações de trabalho”722, longe de constituir mero instrumento de regulação econômica, acrescentaríamos.

30. Desregulamentação do Trabalho.

Outline

Documentos relacionados