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6. Direito Constitucional Comparado 1 Importância.

7.2. Surgimento e evolução do juspositivismo.

7.2.3. Concepção juspositivista de Kelsen.

Na teorização de Kelsen acerca do ordenamento jurídico, alcança o

juspositivismo a sua quintessência, na opinião de Bobbio. O ordenamento jurídico kelseniano baseia-se em três caracteres fundamentais: a unidade, a coerência e a completitude. Em conjunto, tais elementos diferenciam o ordenamento da mera justaposição de normas jurídicas213. Trata-se de um significativo avanço, especialmente se combinado à idéia de prevalência da Constituição, como sistema de garantia de direitos.

A construção do juspositivismo em Kelsen, no que concerne à teoria da norma, se alicerça na equivalência entre vigência e validade214. Se a norma ganha condições de vigência, então ela é válida, reconhecida, seja qual for o seu conteúdo. Aí reside, seguramente, o grande problema da teoria kelseniana, o seu flanco mais vulnerável, que tem sido objeto de pertinentes críticas, até certo ponto irrespondíveis. José Afonso da Silva, ao assinalar que na doutrina de Kelsen a vigência é a existência com validade, consigna a sua posição divergente, considerando, ao contrário, que vigência é apenas o modo específico de existência da norma jurídica. Nada mais215. Bobbio traduz esse equívoco do juspositivismo no modo de abordar o direito da seguinte forma: o direito é tratado como fato, e não como valor. O jurista vinculado a tal matriz teórica adota um formalismo no qual a validade do direito se

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HART, H.L.A. O Conceito de Direito. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, p. 148, 1994; Kelsen elabora semelhante formulação, associando a interpretação cognoscitiva do magistrado a um ato de escolha voluntária dentre várias possibilidades (KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, p. 368-371, 1985).

211

DWORKIN, Ronald. Los Derechos em Serio. Barcelona: Ariel, p. 148-149, 1999.

212

HART, H.L.A. O Conceito de Direito. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, p. 303 e 313-316, 1994.

213

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, p. 198, 1995.

214

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, p. 205, 1985.

215

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, p. 52, 2000.

baseia em critérios que dizem respeito unicamente à sua estrutura formal, prescindindo do seu conteúdo216.

Ao descartar o aspecto valorativo do direito, Kelsen menospreza a sua dimensão ética, tornando-se merecedor do reparo dirigido por Reale, que, por sua vez, distingue três aspectos na validade: validade formal ou técnico-jurídica (vigência), validade social (eficácia ou efetividade) e validade ética (fundamento)217. Num espectro menos arrojado que Reale, Friedrich Müller também supera Kelsen, reivindicando para si a autoria da teoria estrutural pós-positivista das normas jurídicas, partindo da tese da não identidade entre norma e texto normativo, para impugnar o formalismo e a literalidade da norma, mediante a proposta de inclusão de aspectos da realidade social na compreensão normativa218.

A implicação mais séria das insuperáveis carências acima apontadas na doutrina kelseniana se exprime na segregação que esta promove nos planos direito/moral e direito/justiça. E, no particular, estamos diante de um pecado confessado. Afinal, escreve Kelsen, textualmente: “o Direito pode ser moral – no sentido que acabei de referir, isto é, justo -, mas não tem de necessariamente o ser; que uma ordem social que não é moral, ou seja, justa, pode, no entanto, ser Direito, se bem que se admita a exigência de que o Direito deve ser moral, isto é, deve ser justo”. Seu propósito de preservar a pureza do direito a todo custo o leva a expungir qualquer traço de interferência da moral na ciência do direito. E para isso, argumenta com a impossibilidade de determinação de um valor moral absoluto: “Quando se entende a questão das relações entre o Direito e a Moral como uma questão acerca do conteúdo do Direito e não como uma questão acerca da sua forma, quando se afirma que o Direito por sua própria essência tem um conteúdo moral ou constitui um valor moral, com isso afirma-se que o Direito vale no domínio da Moral, que o Direito é uma parte constitutiva da ordem moral, que o Direito é moral e, portanto, é por essência justo. Na medida em que uma tal tese vise uma justificação do Direito – e é este o seu sentido próprio -, tem de pressupor que apenas uma Moral que é a única válida, ou seja, uma Moral absoluta, fornece um valor moral absoluto e que só as normas que correspondem a esta Moral absoluta e, portanto, constituam o valor moral absoluto, podem ser consideradas ‘Direito’. Quer dizer: parte-se de uma definição do Direito que o determina como parte da Moral, que identifica Direito e Justiça”219.

7.3. A centralidade da lei.

A penetrante cultura do juspositivismo tem fundações sólidas, que remontam à monopolização da produção jurídica por parte do Estado, como narra Bobbio, retrospectivamente: “Estamos atualmente tão habituados a considerar Direito e Estado como a mesma coisa que temos uma certa dificuldade em conceber o direito posto não pelo Estado mas pela sociedade civil”220. Como conseqüência dessa estatização do direito, tornou-se factível pugnar, sob a égide do juspositivismo, por uma filosofia que considera justo o que está de acordo com a norma estabelecida positivamente, e injusto o contrário221. Isso produz uma presunção que não esconde o seu artificialismo, como denuncia Nelson Saldanha: “Uma

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BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, p. 131, 1995.

217

Apud PIMENTA, Paulo Roberto Lyrio. Eficácia e Aplicabilidade das Normas Constitucionais

Programáticas. São Paulo: Max Limonad, p. 101-102, 1999. 218

Apud ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, p. 74-75, 1997.

219

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, p. 69 e 75, 1985.

220

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, p. 27, 1995.

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norma pode ser considerada justa, ou injusta, se atende – ou não – a critérios considerados válidos com referência à justiça; seu conteúdo pode, ademais, atender a certas concepções sobre o que convém, ou sobre o que ‘interessa’ à sociedade. Mas a atribuição, a uma norma, de um conteúdo justo (ou de um caráter ‘justo’), ocorre no fundo por analogia. A norma como tal não teve a ‘chance’ de optar por outro conteúdo. O justo se acha nas consciências humanas, no caso a dos autores da norma, ou a de seus aplicadores”222. Nas palavras de Menéndez, esta foi, sem dúvida, a grande redução operada pelo positivismo jurídico: a redução da justiça à lei, que equivale à atitude de considerar justo apenas o que a lei define como tal223.

A centralidade dos textos legais constitui, assim, o pilar fundamental do juspositivismo, e se deduz da convicção, oriunda de Bentham, quanto à possibilidade de edificação de uma ética objetiva, consubstanciada em leis racionais, válidas para todos os homens. A legislação desponta, a partir de então, como a incontrastável fonte de direito, por excelência224. Daí resulta uma visão particular do Estado de direito, classificada por Dworkin como concepção centrada no texto legal. Ela estabelece que o Estado, assim como os cidadãos, devem agir segundo regras explicitamente especificadas num conjunto de normas públicas à disposição de todos, até que as mesmas sejam mudadas, também de acordo com regras adicionais preexistentes. Dworkin assinala que tal concepção é insuficiente, porque nada estipula a respeito do conteúdo das regras que podem ser colocadas nos textos jurídicos, pelo que sejam quais forem essas regras, elas deverão ser seguidas, até que sejam modificadas225.

Em outro pólo, apresenta-se uma segunda abordagem, também exposta por Dworkin, classificada como concepção centrada nos direitos. De acordo com ela, vigora o pressuposto de que “os cidadãos têm direitos e deveres morais entre si e direitos políticos perante o Estado”. Nesse contexto, o acolhimento de tais direitos morais e políticos pelo direito positivo é uma exigência que deve contar com os mecanismos institucionais necessários para a sua efetivação. O modelo centrado nos direitos, preconizado por Dworkin, não distingue, ao contrário da concepção centrada no texto legal, entre Estado de direito e justiça substantiva. Antes, busca compelir o texto legal a retratar e aplicar os direitos morais226.

A causa imediata do positivismo jurídico se arrima no advento histórico das grandes codificações, ocorridas no final do século XVIII e início do século XIX, as quais, na expressão de Bobbio, “representaram a realização política do princípio da onipotência do legislador”227. Tal princípio ainda mantém-se bastante prestigiado, porquanto sua justificativa teórica remete a valores democráticos, segundo os quais a vontade da maioria parlamentar deve ter prevalência. Suas derivações recaem, em primeiro plano, na idéia exegética de que

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SALDANHA, Nelson. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, p. 140, 1998.

223

MENÉNDEZ, Aurelio Menéndez. Sobre lo Jurídico y lo Justo. In: ENTERRÍA, Eduardo García de, MENÉNDEZ, Aurelio Menéndez. El Derecho, la Ley y el Juez. Dos Estudios. Madrid: Editorial Civitas, p. 75, 1997.

224

BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, p. 92 e 132, 1995.

225

DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, p. 6-7, 2000.

226

DWORKIN, Ronald. Uma Questão de Princípio. São Paulo: Martins Fontes, p. 7, 2000.

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juiz deve ser a boca que pronuncia as palavras da lei228, e, em segundo plano, nos riscos inerentes às arbitrariedades praticadas pelo próprio poder legislativo, que, podem ser muito graves e perigosas229.

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