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Na conceituação esquemática de Jorge Miranda, as Constituições dirigentes, que ele intitula programáticas, directivas ou doutrinais, “são as que, além da organização política, estabelecem programas, directrizes e metas para a actividade do Estado no domínio econômico, social e cultural”431. Canotilho, em trabalho específico sobre o tema, propõe uma acepção ampla, na qual Constituição dirigente seja entendida como o bloco de normas

428

SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 4. ed. São Paulo: Malheiros, p. 82-137, 2000.

429

Apud DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus Efeitos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, p. 104, 1997.

430

DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus Efeitos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 107-114, 1997.

431

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo II. Constituição e Inconstitucionalidade. 3. ed. Coimbra: Coimbra Editora, p. 26, 1996.

constitucionais em que se definem fins e tarefas do Estado, estabelecendo directivas e estatuindo imposições432.

A origem da Constituição dirigente provém de uma filosofia iluminista, que aspira propor, constitucionalmente, um programa racional e um plano de realização da sociedade. Tal projeto afasta-se, nitidamente, do padrão sistêmico-institucionalista de garantia das regras do jogo da sociedade estabelecida433.

Um dos pilares para a compreensão da Constituição dirigente consiste no caráter essencialmente normativo que persegue. Nesse modelo, a programática, os princípios e as diretivas constitucionais não se curvam às supostas determinações da realidade sociológica; querem interferir no mundo dos fatos para aproximá-lo dos fins proclamados constitucionalmente. O intuito é obter a legitimação material de uma agenda jurídico- constitucional. “Um programa”, afirma Canotilho, “procura ser justo e não verdadeiro; aspira a uma prática e não apenas a uma teoria”434.

O procedimento típico da Constituição dirigente já havia sido previsto na doutrina de Kelsen, quando este admitiu a determinação constitucional do conteúdo de futuras leis. Observou, ainda, que as Constituições prescrevem e excluem conteúdos potenciais das leis. “No primeiro caso”, aduz, “geralmente apenas existe uma promessa de leis a fixar e não qualquer obrigação de estabelecer tais leis, pois, já mesmo por razões de técnica jurídica, não pode facilmente ligar-se uma sanção ao não-estabelecimento de leis com o conteúdo prescrito. Com mais eficácia, porém,”, arremata, “podem ser excluídas pela Constituição leis de determinado conteúdo”435.

Essa idéia kelseniana, reelaborada e enriquecida, foi apresentada por Konrad Hesse, quando este afirmou que embora a Constituição, por si só, nada possa realizar, pode, ao menos, impor tarefas. Sua tese se baseia na convicção de que a Constituição pode adquirir o caráter de força ativa na sociedade, mediante a efetiva realização de suas imposições436. Dessa perspectiva de estímulo concretizador, lançada por Konrad Hesse, tem origem a complexa teorização levada a cabo por Canotilho, em favor de uma programaticidade constitucional dotada deste viés437.

15.2. Constituição dirigente no Brasil.

A Constituição brasileira de 1988, inegavelmente, possui franco caráter dirigente ou programático, como ressalta Ingo Sarlet, aludindo a posições semelhantes de Tércio Ferraz Jr. e Flávia Piovesan. A comprovação dessa natureza residiria na existência de um grande número de disposições constitucionais dependentes de regulamentação legislativa, ao estipular programas, fins, imposições legiferantes e diretrizes a serem perseguidos,

432

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Editora, p. 224, 1994.

433

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Editora, p. 14, 1994.

434

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Editora, p. 22, 1994.

435

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, p. 242, 1985.

436

HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, p. 19, 1991.

437

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Editora, passim, 1994.

implementados e assegurados pelos poderes estatais e pela sociedade438. No mesmo passo, Eros Grau mantém semelhante compreensão da Constituição brasileira, mesmo diante do prefácio elaborado por Canotilho, em 2001, para a 2ª edição de sua obra “Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador”. Eis o seu entendimento: “Ora, se tomarmos a Constituição dirigente como aquela oposta à Constituição estatutária ou orgânica (...) teremos que a atual Constituição brasileira permanece dirigente. Deveras, a Constituição do Brasil não é um mero ‘instrumento de governo’, enunciador de competências e regulador de processos, mas além disso, enuncia diretrizes, fins e programas a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. (...) a Constituição do Brasil é – tem sido – uma Constituição dirigente e vincula o legislador”439.

Essa abordagem de Eros Grau coincide com a recente manifestação do próprio Canotilho, ao ser confrontado acerca de uma pretensa revisão de pontos de vista em torno da Constituição dirigente. Disse ele, acerca da Constituição brasileira: “Estamos a esquecer que no Brasil a centralidade é ainda do estado de direito democrático e social, que a centralidade é ainda do direito constitucional, que é carta de identidade do próprio país, que são estes direitos, apesar de pouco realizados, que servem como uma espécie de palavra ordem para a própria luta política”440.

O empreendimento interpretativo proposto neste trabalho vincula-se

diretamente ao fenômeno da Constituição dirigente, seu perfil e seus desdobramentos na ordem jurídica. Analisaremos, mais adiante, mandamentos constitucionais positivos, incidentes sobre as relações de trabalho, em confronto com novidades legislativas que desafiam a linha originariamente traçada pelo constituinte, dando margem ao cotejo da sua constitucionalidade. Vale elaborar, por conseguinte, uma prévia revisão teórica do caráter ideológico e processual emanado da Constituição, para que haja adequada compreensão do sentido de suas proposições normativas.

15.3. Regulação legislativa e concretização constitucional.

A grande questão suscitada pela Constituição dirigente, sem dúvida, reside no processo de concretização constitucional. Em verdade, como leciona Canotilho, a realização constitucional depende, em primeiro lugar, de normação/regulação, e, mais a fundo, é um desafio de interpretação/aplicação441. Assim, todo o aporte interpretativo acima apresentado (Capítulo 2, itens 10 e 11) reverte-se ao cerne da efetivação da Constituição dirigente, cujo exemplo fiel, conforme já demonstrado, é a própria Constituição brasileira de 1988.

O momento paradigmático da concretização desenhada no modelo constitucional dirigente, irrecusavelmente, se desencadeia com a regulação legislativa442.

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SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 70, 2001; Com o mesmo entendimento, situa-se Oscar Vilhena Vieira, chamando a atenção para a desconfiança do constituinte frente à conduta do legislador, ao vincular a atuação deste, criando obrigações legislativas (VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua reserva de Justiça. Um Ensaio sobre os Limites

Materiais ao Poder de Reforma. São Paulo: Malheiros, p. 130, 1999). 439

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a Constituição Dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, [s.p.], 2003.

440

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a Constituição Dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, p. 35, 2003.

441

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Editora, p. 59, 1994.

442

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Editora, p. 61, 1994.

Serão, então, confirmados ou não os propósitos lançados pela Constituição em seu programa. Essa interposição legislativa, ademais, vincula-se ao instrumento típico do dirigismo constitucional: os direitos sociais prestacionais443.

Tal ato de criação legislativa, que tanto interessa no modelo da Constituição dirigente para a própria efetivação do sistema constitucional, deve ser encarado como um processo social, sugere Menéndez. É natural e saudável que dele participem numerosos sujeitos sociais particulares, a exemplo de sindicatos, partidos e entes da sociedade civil444. A partir desse contexto, terão início as relações materiais entre a Constituição e a lei, que podem ser enxergadas a partir de três distintas perspectivas. Numa delas, o legislador é concebido como mero executor da lei constitucional, pensamento que reduz a posição relativa da lei frente à Constituição a um vínculo hierárquico, assemelhado à relação entre a lei e o ato administrativo executor da mesma. Noutra abordagem, o legislador passa a ser visto como responsável pela aplicação da Constituição. Nessa circunstância, o poder legislativo torna-se, por excelência, o órgão destinado a dar aplicação aos preceitos constitucionais, sendo que estes representariam o impulso material primário da legislação, configurando a atividade legiferante como uma aplicação normativamente vinculada às determinações constitucionais. Por fim, no enfoque que qualifica o legislador na condição de conformador dos preceitos constitucionais, o exercício do seu papel de concretização legislativa contará com a disponibilidade de mecanismos de ponderação, valoração e comparação dos fins constitucionais. Essa derradeira visão concebe para o legislador uma função criadora embora jurídico-constitucionalmente vinculada. Não se trata aí de supor a mera execução ou aplicação de leis constitucionais445.

Seja como for, entretanto, as declarações constitucionais estão sendo, cada vez mais - parafraseando Dworkin - tomadas a sério, esperando-se a partir disso uma autêntica vinculação dos órgãos legislativos, não a uma rigorosa atitude hierárquica ou de conformação funcional, mas ao exercício criativo de uma fiel solução materializadora das expectativas da Constituição446.

Com tais premissas, estamos em harmonia com a idéia, desenvolvida por Canotilho, em linha de princípio, a favor da liberdade de conformação do legislador, democraticamente legitimado, para atualizar a Constituição. E, também convergindo, reconhecemos que o problema central dessa concretização legislativa da Constituição é a gradação da medida da força determinante das normas constitucionais na atividade ponderativa do legislador. Assim como o mestre lusitano, consideramos que “a lei, no Estado de Direito Democrático-Constitucional, não é um acto livre dentro da constituição; é um acto, positiva e negativamente determinado pela lei fundamental”447.

15.4. Âmbito de conformação legislativa.

443

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 267, 2001.

444

MENÉNDEZ, Aurelio Menéndez. Sobre lo Jurídico y lo Justo. In: ENTERRÍA, Eduardo García de, MENÉNDEZ, Aurelio Menéndez. El Derecho, la Ley y el Juez. Dos Estudios. Madrid: Editorial Civitas, p. 78, 1997.

445

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Editora, p. 216-218, 1994.

446

OLEA, Manuel Alonso. Introdução ao Direito do Trabalho. Curitiba: Genesis, p. 411, 1997.

447

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Editora, p. 62 e 242-244, 1994.

A discricionariedade do legislador - entendida como liberdade de escolha entre modos de comportamentos diversos, na concretização dos fins e tarefas pugnados pela Constituição – conhece limites, porquanto o fim constitucional em si não pode ser alterado. O que pode variar é a forma de expressão legislativa desse propósito constitucional. O legislador, no máximo, complementa a Constituição. Jamais modifica a linha adotada pelo constituinte. Não deve o legislador, pois, fugir dos quadros materiais da Constituição dirigente448.

Conquanto, hoje, admita a necessidade de ajustamento do conceito de dirigismo constitucional aos novos tempos, para afastar a idéia de um “normativismo constitucional revolucionário, capaz de, por si só, operar transformações emancipatórias” , Canotilho não abdica da preservação da programaticidade da Constituição, ao reafirmar que “o legislador não tem absoluta liberdade de conformação, antes tem de mover-se dentro do enquadramento constitucional”449.

Se a matéria constitucional alude a questões de interesse público, relacionadas a funções primordiais do Estado (inclusive em defesa dos direitos fundamentais), deve suceder uma automática redução do âmbito de conformação legislativa possível. Nesse caso, o legislador fica atrelado à realização dos interesses tidos como de interesse público. Evidentemente, se a discussão se opera em torno de princípios fundamentais constitucionalizados, o espectro de conformação legislativa será tanto mais fiel aos valores neles acolhidos. Como diz Canotilho, a concretização legislativa é um autêntico poder-dever: “O legislador exerce um poder, exerce-o de modo determinado e dentro de certos limites”. E, desatando a intrincada polêmica acerca da vinculação do legislador, sintetiza: “o problema da vinculação do legislador não é um problema de autovinculação, mas de heterovinculação; a legislação não conforma a constituição, é conformada por ela”450.

Pertinente, a esta altura, identificar a conduta viciada do legislador que se despede das diretrizes constitucionais. Nesse sentido, Josaphat Marinho expõe a contumaz violação legislativa das normas constitucionais de índole social, assunto que será, mais adiante, objeto da nossa atenção específica: “Esses direitos não se efetivam pela só declaração constitucional. Em que pese a forte tendência social do contexto em que estão situados, há necessidade de leis que os regulem, esclarecendo e complementando os princípios, quase sempre apenas delineados. Não raro, porém, as leis tardam de ser elaboradas, ou se afastam da diretriz constitucional, prejudicando a aplicação ou a substância dos direitos proclamados”451.

15.5. Reserva do possível.

Em contraposição à expectativa de cumprimento fiel dos fins constitucionais, o legislador pode, eventualmente, invocar a impossibilidade real de observância da pauta de prestações incluída na Constituição. Trata-se da chamada reserva do possível, incidente sobre a efetivação legislativa de previsões constitucionais. O recurso a tal argumento deve ser,

448

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Editora, p. 235-237, 1994.

449

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a Constituição Dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, p. 15, 2003.

450

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Editora, p. 63 e 252-253, 1994.

451

MARINHO, Josaphat. Constituição e Direitos Sociais. In: RIBEIRO, Lélia Guimarães Carvalho, PAMPLONA FILHO, Rodolfo (Coord.). Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, p. 45, 1998.

sempre, encarado com a máxima cautela. Afinal, a presunção, nesse caso, milita, iniludivelmente, em favor da possibilidade de realização do programa constitucional, não o contrário.

Ademais, a banalização desse expediente pode conduzir ao risco, denunciado por Canotilho, de converter as prestações constitucionais em cláusulas vazias, a partir de decisões governamentais ou parlamentares fundadas em suposta impossibilidade de atendimento. Não obstante, a existência de um instituto dessa natureza, que permite a alegação da reserva do possível, tem o mérito de moderar o entusiasmo político que, por vezes, contribui para divorciar o direito do mundo das possibilidades452.

15.6. Constituição dirigente na atualidade.

Reconhecidas as suas virtudes - especialmente na promoção de um programa de cunho prestacional, indispensável à realização da missão constitucional, sob o influxo dos direitos fundamentais de segunda dimensão -, a Constituição dirigente também apresenta carências e vulnerabilidades, antecipadas desde a primeira edição da clássica obra de Canotilho a respeito do tema. Cogita o autor, já naquela ocasião, de necessárias tarefas de atualização da Constituição dirigente, tendo em vista que a opção por determinado modelo constitucional é uma opção “concretamente histórica e historicamente concreta”, sujeita, pois, a um equacionamento na respectiva situação histórica453.

Mais recentemente, Canotilho procedeu a uma nítida revisão do seu conceito de Constituição dirigente. Consignou que, “em virtude da atenuação do papel do Estado, o programa constitucional assume mais um papel de legitimador da socialidade estatal do que a função de um direito dirigente do centro político”454. Esse movimento foi percebido por Jorge Miranda, que atribuiu o recuo de Canotilho na intensidade de suas anteriores convicções ao imperativo de aceitação das contradições da realidade, mesmo por parte do projeto normativo representado pela Constituição455.

A eloqüente sinalização de novos tempos para o constitucionalismo, contudo, não poderá dar margem a uma frustrante vinculação material dos atos de direção política. Como sustenta Jorge Miranda, “A política não é um domínio juridicamente livre e constitucionalmente desvinculado”. É preciso resistir à substituição da normatividade constitucional pela economização da política456.

16. Constituição Compromissária.

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