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Assentamento antigo

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3.2 Os Assentamentos

3.2.2 Assentamento antigo

O segundo assentamento que pesquisei é bem mais antigo, foi criado há 15 anos e está localizado a uns 10 quilômetros de distância do assentamento novo. Apesar de ser uma área de terra contínua, ele está dividido entre dois municípios e conta com aproximadamente 2000 ha abrigando 100 famílias. Dessas, 30 estão organizadas no formato de CPA – Cooperativa de Produção Agropecuária e as 70 famílias restantes produzem individualmente. Entre estas há a formação de associações voltadas especialmente para a compra e uso de maquinário. Como no assentamento novo, ali também a produção de arroz é a principal atividade agrícola. Contam com uma área propícia à produção de arroz irrigado e uma outra área que é utilizada para culturas de sequeiro.

Esta fazenda na qual foram assentados foi desapropriada oficialmente em maio de 1994. Conforme relatos, o seu antigo dono havia contraído uma enorme dívida com o objetivo de construir uma usina para produção de álcool, no entanto, esse recurso foi desviado para outros fins e tal empreendimento não foi realizado. É possível ver os pilares de concretos, que marca o local e o início da obra, abandonados em meio à vegetação. Como não honrou sua dívida, toda a fazenda foi confiscada pelo Banco do Brasil. Da mesma forma que no assentamento novo, iniciou-se um longo processo judicial, o que não impedia que ela continuasse sendo explorada pelos arrendatários do arroz. Em 1987 o MST a ocupou pela primeira vez. Após um determinado período, aquelas famílias foram expulsas daquela área, mas lograram ser assentadas em outra área próxima dali. Em 1993 ocorre nova ocupação e dessa vez os acampados saem vitoriosos. Entre essa e a primeira ocupação ocorreram outras 3 ocupações.

Ao chegar nesse assentamento o que se destaca com relação ao assentamento novo é, naturalmente, a quantidade de benfeitorias existentes e a aparência de sítios já consolidados. Nota-se as casas de alvenaria ou de madeira definitivas, árvores frutíferas e ornamentais, jardins, galpões, porteiras na entrada da propriedade, enfim, a marca do tempo é saliente195. No caso da cooperativa esse aspecto é ainda mais ressaltante. A estrada que deixa a estrada principal para desembocar na sede da cooperativa (que também era a sede da antiga fazenda) é ladeada por enormes galpões e por estruturas de produção e beneficiamento. Ao final está o escritório administrativo da cooperativa que funciona na principal estrutura física herdada do processo de desapropriação. Numa parte desse imóvel também se estruturou um pequeno alojamento para receber as muitas visitas que são acolhidas durante o ano. Foi ali, inclusive, onde me hospedei por ocasião de minha pesquisa. Nesse mesmo imóvel, na extremidade oposta ao escritório, do seu lado esquerdo, funciona a creche que é responsável por atender aos filhos dos cooperados. Do seu lado direito há o refeitório, todo ele construído em madeira e composto por uma cozinha, uma “bodega” e uma área coberta que é onde todos os cooperados reúnem-se para o almoço, única refeição diária feita coletivamente. Ao seu lado está o campo de futebol que serve a todo assentamento. Toda essa estrutura está no centro da agrovila.

A agrovila é uma configuração de residências dispostas uma ao lado da outra formando um enorme “retângulo”. Cada família que mora ali tem um pequeno lote de terra de aproximadamente 400 m² onde constroem suas casas, criam pequenos animais e fazem suas

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Certa vez o Alberto Bracagioli, conhecido consultor de projetos sociais do Rio Grande do Sul, comentou sobre a constatação do pesquisador francês Marc Dufumier que, ao olhar desde um ponto topograficamente mais elevado de um assentamento recém criado, disse que um bom indício da pretensão de permanência ou abandono do lote era observar o plantio de árvores ao redor da casa. Essa forma de relação com o entorno poderia significar uma perspectiva de futuro e de integração ao ambiente. Pareceu-me uma dica interessante. De fato, passados todos esses anos as casas estão, boa parte delas, rodeadas por árvores.

hortas. Na sua origem todos os moradores dessa agrovila eram cooperados. Com o passar do tempo, aqueles que foram desistindo da cooperativa, especialmente os casos mais recentes, mantiveram suas casas ali (na área da agrovila) e apenas abandonaram o trabalho coletivo, passando a cultivar individualmente seu lote. Há também aqueles cooperativados que, desde o princípio, optaram por construírem suas casas fora da agrovila. Antes da existência de toda aquela estrutura física, especialmente as enormes casas de alvenaria construídas e reformadas com créditos subsidiados, os primeiros desistentes decidiam por reconstruírem suas casas nos seus lotes individuais. Geograficamente, a agrovila se situa na crista de uma elevação que está no centro do assentamento.

No início da cooperativa nenhum cooperado sabia qual era o seu lote, para além daquela pequena parte onde residia. A área trabalhada era unitária, sem divisões. Com os processos de desistências aqueles que saiam acabavam, segundo alguns informantes, recebendo os lotes de pior qualidade, que eram selecionados a partir de uma divisão arbitrária. Tal situação findava por produzir conflitos que reverberavam por todo o assentamento. Para evitar a ocorrência de tal desajuste, a partir de um determinado momento decidiram efetivar a divisão dos lotes de todos os cooperativados antes mesmo que considerassem a possibilidade da desistência. Atualmente, portanto, cada um sabe qual será a parte da área coletiva que lhe caberá, caso decida produzi-la individualmente.

Diferentemente do assentamento novo esse assentamento é composto pelo perfil de assentado que motivou a criação do MST. As famílias ali estabelecidas são, em sua maioria, provenientes da região de origem do Movimento, ou seja, do noroeste do estado. Inclusive várias destas famílias compuseram o grupo de camponeses que foram expulsos das áreas indígenas de Nonoai, evento potencializador da emergência dos Sem-terra, como sinalizado acima. Ou seja, são filhos de pequenos agricultores expulsos de “suas” terras ou impossibilitados de seguir como camponeses na propriedade familiar e que viam no engajamento àquela luta a forma de se reproduzir no meio rural. Especialmente no caso dos que compõem a cooperativa, eles são, em sua maioria, antigos militantes de organizações vinculadas à igreja católica e em sindicatos de trabalhadores rurais. Ainda enquanto acampados, alguns deles foram enviados, no início da década de 1990, ao nordeste do país para atuar na expansão do Movimento naquela região196. Trata-se, portanto, de militantes históricos e fortemente orgânicos, como se diz entre eles.

O assentamento se organiza conforme a prática comum nos demais assentamentos do MST. Existem os grupos de assentados e de cada grupo saem os que formam a coordenação do assentamento. Há também os setores de trabalho, mas como me foi dito por um assentado, a preocupação principal que eles têm é relativo à produção e infra-estrutura geral do assentamento. Portanto há uma hierarquia marcante entre essas equipes, no topo da qual está o setor de produção do assentamento.

Durante o trabalho de campo pude perceber que o principal foco de tensão no assentamento é a divisão entre os cooperativados e os individuais. A cooperativa se estabeleceu no assentamento desde sua origem e era composta inicialmente por mais de 50 famílias que já vieram do acampamento com tal propósito. Ao longo do tempo as baixas foram ocorrendo até se “estabilizar” no formato que é hoje. É um grupo bastante fiel ao MST e essa cooperativa é considerada um modelo de organização da produção e de engajamento político para todo o país. Ali vigora a recomendação de que a cada 10 assentados cooperativados, um deve ser cedido para atuar exclusivamente para o Movimento. Portanto, daquele grupo três assentados se dedicavam à organização estadual e nacional do MST. Dali também foi eleito pelo PT o principal nome do MST a um cargo no legislativo do estado.

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Veja a pesquisa desenvolvida por Débora Lerrer (2008) a propósito desses militantes sulistas que se espalharam pelo Brasil na intenção de expandir o MST.

Como sua composição reúne os principais nomes do MST no estado, a cobrança pelo sucesso e por manter-se como vitrine para outros assentamentos e para a sociedade em geral, produz uma notável carga de responsabilidade entre seus integrantes. O impacto moral de uma desistência entre eles é muito forte, especialmente depois de passado o período inicial de experimentação. Na sua origem as desistências eram, naturalmente, mais comuns e menos carregadas moralmente. Após todos estes anos, o ideal de produção coletiva, tão sonhado pela direção do Movimento, encontra ali um caso de sucesso exemplar que está o tempo todo sendo estampado para dentro e para fora do assentamento.

Ao longo do ano são recebidas muitas visitas de outros assentados, militantes de esquerda e principalmente de estudantes. Também a cada ano se realiza uma enorme festa que tem o sentido de comemorar a criação da cooperativa. Essa festa está voltada especialmente para o público externo. São convidadas várias personalidades e amigos do MST em geral. Tive a oportunidade de participar da festa que comemorou os seus 15 anos de existência e me impressionei com a estrutura mobilizada para receber os convidados. Enormes tendas foram construídas no campo de futebol e uma descomunal churrasqueira era controlada por vários assadores. Na extremidade do campo de futebol havia uma gigantesca bandeira do MST e uma faixa com os dizeres: “Gritamos por terra, trabalho, educação, saúde e justiça – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra”. Todos os que trabalhavam na organização e condução da festa trajavam camisas pólo vermelhas com o emblema do Movimento na frente e com o logotipo da cooperativa nas costas. A festa começou pela manhã com discursos e mística e seguiu com um baile até de noite. As pessoas convidadas eram, em grande parte, de outros assentamentos ou familiares e amigos dos que estavam assentados ali. Era cobrado um determinado valor daqueles que desejavam almoçar e a comida era abundante. Com uma ficha, comprada ao custo de 25 reais, podia se servir de um grande espeto de churrasco, salada, batata doce, aipim e arroz, suficiente para bem alimentar umas quatro pessoas.

Logo que comecei meu trabalho de campo já haviam me falado sobre essa festa e automaticamente eu a associei como sendo uma festa do assentamento, uma vez que as datas de fundação da cooperativa e do assentamento se confundem. Quando comentei com um cooperativado sobre a ocorrência da “festa do assentamento” fui logo corrigido “não é do

assentamento é da cooperativa”. De fato, não havia uma festa que comemorasse a conquista

do assentamento, a festa da cooperativa celebrava as suas próprias conquistas. Notei que alguns dos assentados que havia conhecido fora da cooperativa não participavam daquela festa. Os que pertenciam ao assentamento – mas não à cooperativa – que encontrei ali foram aqueles que ainda se reconheciam militantes do Movimento e, na maior parte dos casos, já haviam pertencido à cooperativa. Fiquei com a impressão de que era uma festa dos militantes e, em última instância, do MST enquanto organização. A grandiosidade daquele evento visava, objetivamente, uma exposição ao público externo, mas sem negligenciar a legitimidade que lhe conferia (à cooperativa e ao MST) junto ao público interno, mesmo que, presumivelmente, fosse boicotada pela maior parte dos assentados.

Tal festa, extremamente ritualizada, se constitui num evento que sacraliza a Cooperativa e, em última instância, sacraliza o MST. Assume um caráter performático, ou seja, é a expressão condensada no tempo e no espaço de um poder político que, ao mesmo tempo, se lhe investe de poder perene. É a política revestida de uma estética religiosa que faz aliar as suas dimensões transcendentes e imanentes. Michelle Perrot relembra que o socialismo do século XIX já se preocupava com a necessidade de criar um novo ritual que fosse capaz de promover uma nova aliança entre a política e a religião, de reconciliar estética e política. Aponta também, como ilustração, para um grupo de socialistas saint-simonianos que, significativamente, usavam trajes, cores e práticas gestuais para edificarem cenas simbólicas. (Perrot, 2001, p.135-136). Essas características estavam e frequentemente estão presentes nos rituais políticos/religiosos promovidos pelo MST: as bandeiras, suas camisas

vermelhas, seus bonés, a unidade do grupo colocada à vista, os símbolos camponeses magnificados e ostentados, os mártires e lutadores das causas populares locais e globais.... “a religião civil será o lugar estético onde, através de símbolos, cerimônias e festas, dar-se-á livre curso à comunicação política”. Com essa frase, citada em Perrot (2001, p.136), Pierre Leroux197 sugere algo muito próximo ao tipo de investimento que o MST confere às suas manifestações públicas. A festa da cooperativa condensa exemplarmente essas características. É o momento de dar a conhecer o sucesso de seus empreendimentos que estão carregados de uma forma de comunicação política. Desde Bachelard sabemos que mesmo um artefato mais técnico e pretensamente neutro é teoria materializada. Aquela festa se aproximava dos rituais de redistribuição característicos de algumas tribos indígenas na qual o seu chefe se fortalecia justamente partilhando sua riqueza e festejando o período produtivo precedente. Ali, mais do que em outro lugar, é onde a técnica se apresenta, sem disfarce, carregada de ideologia. A festa, mesmo que não tivesse um caráter de redistribuição, era o momento de dar a conhecer o poder acumulado, comunicar para o exterior os seus sucessos para se fortalecer interna e externamente.

Outra festa que participei neste assentamento foi a “Festa da Comunidade”. Quando me falaram dessa festa havia sempre a cautela de me alertar para que não esperasse algo muito elaborado e de grandes dimensões. O comparativo em alguns comentários era inevitável, “festa grande é a festa da cooperativa!”. A festa da comunidade que tive oportunidade de participar havia ocorrido um ano e meio antes da festa da cooperativa descrita acima, portanto eu não tinha uma referência comparativa.

Esta festa aconteceu numa estrutura física na forma de um galpão de madeira que era a sede da comunidade. Ela se localizava num local relativamente isolado do assentamento, realmente não me parecia ser um espaço que servisse à sociabilidade dos assentados. Em outros assentamentos e comunidades rurais é notório uma maior preocupação em manter próximos – constituindo o que chamam de “comunidade” – o campo de futebol, um salão de festas, uma capela e outros espaços de jogos e lazer. Não é à toa que havia uma discussão entre algumas pessoas da cooperativa e os dirigentes da comunidade em transferir a sede da comunidade para a agrovila, onde também havia o projeto de construção de um ginásio de esportes. Era na agrovila que o encontro das pessoas estava potencializado devido à presença da bodega, do campo de futebol e pela existência de outros espaços de lazer198.

A participação na festa da comunidade foi, de fato, incomparavelmente inferior à festa da cooperativa. É uma festa que se realiza anualmente, no início de outubro, próximo ao dia dedicado ao padroeiro da comunidade que é São Francisco de Assis. Apesar dos convidados externos, ela estava voltada para o público interno ao assentamento e ali ficavam explicitados os motivos da cautela com que me preveniam para não esperar algo grandioso. A participação bastante pequena das famílias assentadas explicitava uma comunidade enfraquecida, como vários já haviam me adiantado.

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Socialista francês do século XIX, inicialmente saint-simoniano, que irá propor um tipo de socialismo (à época um neologismo retomado por ele na França) no qual estaria previsto elementos de base religiosa.

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Tudo indicava que não havia controvérsia quanto à sua transferência, mas essa proposição emerge como sintoma de outro problema identificado pelos assentados: a fraqueza da comunidade: “A transferência da comunidade não me preocupa muito, o que precisa é saber o que nós queremos com a comunidade, pra que, com que objetivo. Depois tem a área, foi destinado lá pra ser a comunidade, aqui é uma área da cooperativa.... Não tem como manter lá se as pessoas não sabem o que quer”. (Jaime, uma das principais lideranças religiosas do assentamento antigo).

Assentamento Antigo

Fonte: INCRA (detalhe da Agrovila acrescentado pelo autor) Agrovila e sede da Cooperativa

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