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Configuração de barracos

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3.1 O Acampamento: “Cidade da Lona Preta, Capital do Bolinho Frito”

3.1.1 Configuração de barracos

No período em que fiquei no acampamento estava claro pra mim que havia uma divisão geográfica baseada em alguma lógica. No entanto, nem a observação e as conversas explicitaram os elementos que estavam em jogo naquela estruturação espacial. Me coloquei a imaginar onde eu gostaria de implantar meu barraco, caso estivesse em tal situação, e coincidiu, talvez sem muita surpresa, com o lugar onde se reuniam as principais lideranças do acampamento e, coincidentemente, onde estavam os mais jovens. Por estar muito próximo de uma rodovia de grande movimento, o acampamento estava exposto a um constante barulho de carros e caminhões e boa parte dos barracos estavam próximos a uma das fronteiras do acampamento que fazia divisa com esta rodovia. O barraco onde me alojei era um desses. Se pudesse escolher, jamais implantaria meu barraco ali. Em boa parte do acampamento os

barracos ficavam totalmente expostos e no verão o calor era insuportável150. Outros barracos estavam localizados sob copas de árvores, o que produzia um ambiente muito mais agradável. Notei que essa configuração explicitava uma certa divisão territorial de poder e afinidades. No entanto, como se tratava de um momento em que as famílias estavam se preparando para irem para os lotes, tudo assumia um caráter muito mais provisório do que já se pressupõe a partir da imagem de um acampamento. Isso impediu uma compreensão mais clara de tal configuração.

Quando regressei ao acampamento, passados uns dois meses desde que umas 90 famílias haviam sido assentadas e outras haviam chegado, percebi que ocorreu um rearranjo na territorialização do acampamento, mas mantinha, em certa medida, a mesma estrutura anterior.151 Agora a composição desses espaços estava mais clara. Logo que cheguei um dos acampados que me reconheceu das outras vezes que havia estado ali, fez um comentário sintomático, mais ou menos assim: “muita gente mudou, ali naquele canto chegou umas

quantas famílias de crentes, ficaram todas ali juntas. São pessoas muito boas, me dou muito bem com eles”. Daquela parte do acampamento muitas pessoas saíram para serem assentadas,

era a parte que se situava em um nível topográfico mais elevado do acampamento. Ali também morava uma das principais lideranças do acampamento que fazia parte da frente de massas. Com a saída do pessoal mais antigo e a chegada dos novos ela também transferiu seu barraco para mais próximo das outras lideranças.

Numa reunião de um Núcleo de Base que casualmente participei, o coordenador desse núcleo fez um comentário que também indicou uma constituição de barracos: “ali no cantinho da felicidade”. Tratava-se exatamente do “canto” onde moravam as principais lideranças e que permaneceu com sua composição quase inalterada.

Em outro momento, numa conversa informal com um senhor que já estava ali há quase 3 anos152, ao indagá-lo sobre algumas pessoas que haviam morado ali perto dele e que não os encontrei naquela visita, comentou que dois deles haviam morrido, direta ou indiretamente em função da bebida, um de cirrose e outro atropelado. Um outro jovem que estava associado ao uso de drogas e aparentava alguns sinais de demência, havia sido expulso por haver “se passado” com uma mulher do acampamento153. Ao narrar esses casos logo emendou em tom de brincadeira: “acho que vou sair daqui, tem alguma coisa nesse canto”.

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Para se ter uma idéia, a vela, que eu utilizava para clarear o barraco à noite, quase atingia o ponto de fusão no auge dos dias mais quentes, ficava toda retorcida. Dizia-se por ali que internamente aos barracos se superava facilmente os 50 graus, o que me pareceu bastante realista. Entre os que habitaram por alguns anos estes barracos era consenso que o inverno, por mais castigante que fosse, ainda assim era preferível ao verão.

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É importante salientar que a configuração espacial do acampamento, mesmo quando permanecem muito tempo no mesmo lugar, é relativamente variável. Pode-se mudar porque não gosta do vizinho, porque vagou um barraco em lugar mais agradável, para ir ficar perto de pessoas das quais são mais afins, etc. Sem considerar o fato de que a qualquer hora podem mudar todo o acampamento para outro local. A possibilidade de mudança no assentamento é bem mais restrita. Pode ocorre, e de fato ocorre, trocas de lotes internamente ao assentamento e mesmo entre assentamentos, mas o procedimento é bem mais complicado, pois ali envolve questões burocráticas junto ao INCRA além da dificuldade em encontrar alguém interessado em mudar de lote ou de assentamento. Em situações insuportáveis, ocorre ou o abandono do lote, ou a sua “venda”.

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Ele ainda não havia sido assentando por sua própria opção, pois só aceitaria um lote se este se localizasse próximo á região do acampamento.

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Nesse caso se tratava de um jovem de 26 anos apelidado de Che Guevara – em função de suas semelhanças físicas. Ele não aparentava, fisicamente, haver vivido um passado de pobreza, como fica evidente entre a grande maioria daqueles acampados. Todos comentavam que ele “não regulava bem da cabeça” e acrescentavam que possivelmente se tratava de seqüelas da dependência de drogas. Numa breve conversa que estabelecemos, ele comentou que há um ano atrás ele já havia sido acampado durante um ano e meio, agora fazia 4 meses que estava de volta. Nesse intervalo ele esteve internado em algumas clinicas de recuperação de dependentes químicos. Disse-me que seu objetivo agora “era viver um projeto cristão”.

Desses três “cantos” muito bem delimitados o que me pareceu relativamente estável nesse período era o “cantinho da felicidade”. Mesmo com a mudança de muitas famílias para os assentamentos e outras transformações na configuração do acampamento ele se manteve inalterado.

No centro do acampamento sob uma grande árvore estavam as estruturas da saúde, educação, comunicação e o depósito de alimentos. É ali que boa parte das pessoas que moram naqueles barracos que ficam “no tempo”, expostos às intempéries, se reúnem quando o sol está muito forte. Ao redor ficam alguns barracos e a bodega, outro ponto de encontro, como já mencionado, quase que exclusivamente de homens.

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