• Nenhum resultado encontrado

O político no religioso e o religioso no político

No documento Download/Open (páginas 178-181)

“A força dos revolucionários não reside em sua ciência; ela reside em sua fé, sua paixão, sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito... É a emoção revolucionária... é uma emoção religiosa. As motivações religiosas se mudaram do céu para a terra. Não são mais divinas, apenas humanas e sociais.”

José Carlos Mariátegui252 Parafraseando Levi-Strauss, Novaes (1997) apresenta a seguinte questão: "até que ponto e em que situações a dimensão religiosa pode ser 'boa para pensar' a política e vice- versa" (p.208). Ao respondê-la a autora recupera elementos do catolicismo popular presente desde o período que se seguiu à escravidão e que se mantinham presentes nas falas dos trabalhadores rurais envolvidos nos conflitos analisados. Isto é detectado a partir do uso freqüente de categorias bíblicas como a "Besta Fera", presente também nas falas dos latifundiários. Ainda que o empreendimento de Levi-Strauss tenha sido o de decifrar as formas mais elementares de pensamento, buscando nas articulações básicas de componentes da natureza a matéria prima original das construções mentais, suas pesquisas contribuem para compreender ou inspirar certas análises acerca de certas estruturas cognitivas que, neste caso analisado, se constituem a partir de categorias religiosas. Estas categorias religiosas formam filtros a partir dos quais os indivíduos classificam e reclassificam o mundo à sua volta. O que deve ser salientado, nesse sentido, é que estas categorias religiosas tanto podem permanecer inalteradas quanto se modificar, e modificar, assim, a classificação do mundo. Com isso, conclui-se que a igreja progressista produziu certas mudanças em determinadas categorias incorporadas pelos agentes em lutas e introduziram novas categorias religiosas a partir das quais pensam essa luta.

Em relação à pergunta inicial, é importante destacar, a partir de Catroga (2006), que foi com o cristianismo que a religião apareceu como coisa à parte, separada: “daí a César o que é de César e a Deus o que de Deus”. Na Grécia, assim como no judaísmo, não havia essa separação: em Jerusalém, Atenas e Roma, “o ritual cívico é religioso, e o ritual religioso é cívico” (Catroga, 2006, p.6).

Mas essa purificação não se realiza de forma completa. Pode-se perceber, facilmente, que a política, assim como a religião, é carregada de elementos simbólicos. Vale dizer, juntamente com Novaes, que a dimensão simbólica não é privilégio da religião e nem a política se constitui numa arena onde vigora exclusivamente elementos racionais. Como verificaram Fortes e Evans-Pritchard, nas sociedades africanas os símbolos são inspiradores de coesão e continuidade. Estes símbolos (na forma de mitos, ficções, dogmas, rituais, lugares sagrados e pessoas) “representam a unidade e exclusividade dos grupos que os respeitam. São considerados, porém, não como meros símbolos, mas como valores finais em si” (Fortes e Evans-Pritchard, 1981, p.28).

Dessa forma, parece ser possível se falar de uma certa interdependência relativa entre a religião e a política que se constituiu – de maneira tácita ou explicita – na dinâmica social pesquisada para esta tese. A partir da interação orgânica entre "fé e vida", tanto a política lança mão de categorias religiosas, quanto à religião de categorias políticas. Vão nesse sentido também, as análises realizadas por Max Gluckman (1987) sobre a Zululândia moderna que, ao destrinchar as relações entre europeus e as tribos nativas, descobre um intrincado jogo social

252

no qual interagem diversos elementos sociais que compõe tanto o que se poderia chamar de campo político, quanto àquele que poderia ser chamado de campo religioso.

Da mesma forma, a idéia de que, com a modernidade, se avançaria irremediavelmente para um processo de especialização funcional e uma diferenciação institucional entre religião e política, idéia esta consagrada nas teorias da modernização, é refutada por Löwy (2000, p. 62). Chamando a atenção especificamente para a América Latina, acentua que religião e política

têm um significado muito mais amplo e, mesmo quando permanece autônomas, desenvolve-se um elo verdadeiramente dialético entre elas. Conceitos tais como “trabalho pastoral” ou “libertação” têm um significado que é tanto religioso quanto político, tanto espiritual quanto material, tanto cristão quanto social

Ainda referente a esta discussão, Gaiger (1987) chama a atenção para o que ele denomina de “dinâmica afetiva” como um elemento importante que dá cimento à relação entre os agentes religiosos e os camponeses. Para melhor ilustrar a importância dessa dimensão, o autor faz referência a certos discursos de intelectuais da esquerda que desprezam os elementos que compõe essa dinâmica afetiva e centram o foco apenas no ataque à ideologia dominante, obtendo, dessa forma, pouca adesão dos camponeses. O que está sendo referido, portanto, diz respeito a uma dimensão que exalta os símbolos, rituais e outros valores coletivos que estão presentes de forma constante na fala dos agentes religiosos e que produz efeitos na forma como os camponeses elaboram, reelaboram ou consolidam elementos de sua identidade. Ou seja, são elementos não racionais que intervém de forma significativa na emergência da ação coletiva. Conforme também destacado por Mariatégui na epígrafe dessa seção, também Opazo acentua que

toda ideologia torna-se historicamente eficaz na medida em que se converte em uma fé, isto é, quando os elementos racionais passam ao segundo plano para que o elemento de convicção se consolide e se traduza em uma norma de conduta (Opazo, 1978, apud Gaiger, 1987, p.55)253

Ao analisar o nascimento do primeiro de maio na França Michele Perrot (2001) trás considerações que convergem com as análises construídas ao redor dessa dinâmica afetiva. Em seu estudo fica claro que o ritual de construção de um movimento é um ritual de produção de uma identificação, de maneira que o grupo se exponha tanto para dentro quanto para fora. Nesse sentido a importância dos símbolos na construção do primeiro de maio envolve muitos significados presentes em diversos espaços e contextos. Em diversas passagens esta autora analisa a política como festa e ilustra, a partir dos fatos históricos, processos que servem de

insight para pensar a realidade a ser pesquisada.

Da mesma forma, Gaiger (1987) destaca que os rituais e os símbolos religiosos são dotados de múltiplas funções quando se analisa o processo de envolvimento político dos camponeses. Os ritos produzem uma integração entre o religioso e o político e nesse espaço ritual “sacraliza-se a luta e materializa-se o sagrado”. Também são “momentos de exaltação do grupo e de manifestação de solidariedade que contribuem para refazer a auto-imagem e a segurança dos acampados”. Ao mesmo tempo “os símbolos jogam um papel de suporte para a

253

Esta perspectiva analítica referencia a hipótese, destacada anteriormente, da constituição de um crença quase religiosa em torno do MST.

transformação de um tipo de significação a outro” e faz vigorar um sentimento de unidade possibilitando a “estruturação de uma identidade coletiva” (Gaiger, 1987, p.40-41).

Os rituais e símbolos são revestidos dessas funções, mas não sem antes serem reformulados de forma a dotá-los de um sentido subjacente às lutas que estão conduzindo. Assim, a partir dessa perspectiva, Deus toma partido dos mais fracos, é um Deus da justiça, um Deus que se posiciona ao lado da luta dos oprimidos; desde essa leitura, a luta desses camponeses passa a ser uma “luta sagrada”254. Deve ser notado que a referência bíblica à “Terra Prometida”, aquela que foi destinada por Deus ao povo Hebreu, é resgatada como marco utópico que orienta a luta dos camponeses e os alimentam de esperança.255 Nessa nova interpretação, o Reino de Deus deve ser conquistado desde já (Gaiger, 1987, p.38-39). Também os ritos operários descritos por Perrot (2001) se assemelham a este caso, uma vez que carregam elementos religiosos ao redor dos quais se estruturam. Conforme esta autora

o rito operário se inscreve nas mais antigas tradições religiosas: a da comunhão dos Santos, a da comemoração sacrificial. Fazer a mesma coisa ao mesmo tempo: esse grande princípio da prática religiosa encontra-se aqui por um rasgo de gênio, transferido para o movimento operário, novo Moisés de uma nova Terra Prometida. Exaltação de um Povo unido por uma celebração comum, o Primeiro de Maio é em suma uma Missa Cantada operária (Perrot, 2001, p.138).

É importante considerar que o MST, por exemplo, que se alimentou de muitos símbolos caracteristicamente religioso, especialmente na sua origem, como foram as cruzes, os cantos religiosos, as romarias (Gaiger, 1987; Chaves, 2002) viveu um processo de autonomização política que significou o abandonos desses símbolos diretamente associado ao religioso em prol de novos símbolos, como a bandeira, o hino, as místicas que colocavam em destaque os líderes da esquerda mundial mas, no entanto, não se eliminou “o sentido de sacralidade referido à luta que eles simbolizam” (Chaves, 2002, p. 141). Os elementos dessa simbologia e sua transformação é claramente evidenciado por este agricultor assentando que vivenciou essa transformação no seio do MST:

Os símbolos se dá mais no início, aqui, como era mais a igreja, tem toda aquela história... tem cruz com panos brancos de paz, o pretos de morte das crianças, era bastante nessa área. Depois foi passando, já era a foice e a enxada, que eram instrumentos de trabalhos, tinha o facão, a própria bandeira com o facão que é o símbolo do que o camponês usa para fazer a picada, pra ir pra roça cortar alimento, cortar pasto. Foi direcionando um pouco mais para essa área da produção. A foice e enxada pra nós hoje são os nossos símbolos da bandeira é a ferramenta do trabalhador diretamente. Antigamente não tinha tanto isso, era mais simbólico, era mais de fé, coisas assim que representavam as pessoas sofridas. Não quer dizer que não representa hoje também, representa o sofrimento do agricultor, tem os símbolos mais ou menos nesse sentido. Como mudou a tomada de linha de frente que o movimento optou na sua própria organização ele ficou mais autônomo a nível de

254

A própria idéia de predestinação imanente nessas formulações constitui um impulso à prática. Sobre isso ver Lowy (2000).

255

Como apontado em Bellah (1976, p.21-22) “Por trás da religião civil encontram-se arquétipos bíblicos: Êxodo, Povo Eleito, Terra Prometida, Nova Jerusalém, Morte Sacrificial e Ressurreição.” Mas também “tem seus próprios profetas e mártires, seus episódios e lugares sagrados, seus próprios rituais e símbolos solenes”.

símbolo também. Antes era mais guiado pelos apoiadores, pela igreja e sindicato que tinham os seus símbolos mais nessa área.

Ao buscar uma certa independência, as organizações se tornaram “impermeáveis” a este “sobrediscurso” (Romano, 1992) que tem feições bem definidas, o que não significa que eliminaram de suas práticas as dimensões que podem ser lidas a partir de uma matriz discursiva religiosa. O duplo processo do qual nos fala Romano, o da “religiosização do político e politização do religioso” ainda parece ser apropriado para pensar a imbricação das dimensões religiosas e políticas. Mas, não mais nos termos objetivos de vinculação a um Deus presentificado na hierarquia da igreja católica (ou outra) ou a partir do poder simbólico do agente religioso vinculado à CPT que se expressa através de um discurso carregado pela sua dimensão profética. Essa imbricação se dá de forma mais laicizada e entramada na sua dinâmica de organização, no formato de suas lutas sociais e na constituição de variados símbolos (hinos, bandeiras, místicas, referências aos mártires, etc). É nesse sentido que Chaves (2002) irá tratar a Marcha Nacional como um “rito de sacralização e dessacralização, sacrifício e festa”, considerando que

“a conformação do sagrado não é necessariamente religiosa”. A Marcha Nacional, processo de sacralização do MST e dessacralização do poder constituído, revelou-se criadora de um sagrado vinculado à configuração da autoridade pública e, consequentemente, aos mecanismos de legitimação e deslegitimação políticas. Ela revelou, ao mesmo tempo, o caráter extremamente volátil dessa legitimidade, o que parece impor uma contínua reconstituição dos fundamentos da autoridade política nos tempos contemporâneos. (Chaves, 2002, p.145).

No documento Download/Open (páginas 178-181)