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O papel da terra na “luta pela terra”

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2.4 Problematizando algumas categorias

2.4.2 O papel da terra na “luta pela terra”

“Entrei no MST com a intenção de ganhar terra, mas acho que a terra vai acabar me ganhando”.107

A luta pela terra não existiu sempre e nem sempre com os mesmos objetivos. A emergência desse fenômeno social não foi algo que se produziu de forma espontânea e natural. Antes da luta pela terra foi necessário que se fortalecesse a luta pelo reconhecimento da importância e legitimidade de tal luta. Nesse cenário, vários atores sociais com poderes de reconhecimento empenharam seus nomes para consolidar e dar forma a esse processo. Em consideração a isso, pode-se concluir que o que se consolidou como lemas e certezas no início de tal luta chegou ao dias atuais enfrentando provações.

O fundamental para o qual chamo a atenção é que a luta pela terra oculta uma questão importante relativa ao sentido da “terra” nessa luta. O lema “terra para quem nela trabalha”, que é bastante caro ao MST, enfrenta na atualidade um teste empírico. Muitas de suas lideranças não querem a terra para trabalhar, e, em muitos casos, nem mesmo estão interessadas em devir camponês. Nesse caso, a luta pela terra é o lócus para o qual confluíram os vários sentidos de uma luta mais ampla (enfrentar o capitalismo, fazer a revolução socialista, destruir o agronegócio...). Falar da terra e lutar por ela tornou-se um imperativo que remonta ao que justificava a origem do MST. A certeza consolidada naquele momento era de que se deveria lutar contra o latifúndio improdutivo e torná-lo produtivo a partir de pequenos e eficientes empreendimentos agropecuários familiares. Seria na terra conquistada que se gestaria o exemplo de produção e produtividade para toda sociedade, e esse exemplo seria capitalizado pela causa da reforma agrária e, principalmente, pelo MST.

No entanto, nota-se atualmente que mesmo entre os que compõem a base do MST a conquista da terra não é um desejo unânime. Essas pessoas encontram no acampamento não uma etapa prévia à sua constituição enquanto “camponês”, mas quase um fim em si mesmo. Isso não se dá pelos mesmos motivos dos militantes, mas porque ali já encontraram um local de realização social e de qualidade de vida superiores aos seus locais de origem. Mesmo entre os que já estão assentados, há um parte significativa que não vêem a terra como espaço de produção, mas como espaço de moradia, como fuga da violência urbana, como meio de reunificação familiar, como local de maior qualidade de vida, para criar perspectiva de herança para os filhos108 ou como fonte de renda baseada em outra lógica. A questão dos arrendamentos dos lotes é significativa nesse sentido109. A possibilidade de auferir renda sem a necessidade de trabalhar diretamente sobre o lote é bastante tentadora. Certa vez, emiti minha opinião pessoal a respeito do arrendamento de terra em assentamentos a uma liderança do assentamento novo. Disse a ele que não achava um crime os assentados arrendarem seus lotes, pois se o arrendamento estava servindo a uma melhoria na qualidade de vida dos assentados, então a reforma agrária estava cumprindo ao menos um de seus objetivos. Ele foi categórico “não, vai contra os princípios do MST. A terra tem que ser trabalhada pelo

assentado” e reafirmou o lema “ocupar, resistir e produzir”. O curioso dessa fala é que foi

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Senhora de 66 anos já há um ano e meio vivendo sozinha sob um barraco de lona preta no acampamento.

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É recorrente os acampados e assentados colocarem à frente de suas justificativas de engajamento na luta pela terra uma preocupação com o futuro dos filhos. Muitos dizem que a terra conquistada não é para eles, mas para seus filhos.

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Falo a partir de um assentamento novo colado ao urbano e com aptidão produtiva peculiar, possivelmente os assentamentos mais distantes do urbano e com outras características físicas implicaria em limitação a tais possibilidades.

proferida por uma liderança que também havia arrendado seu lote e trabalhava como frentista num posto de combustível. Ou seja, seu lote, ao menos até aquele momento, quase quatro anos depois de assentado, apenas servia como local de moradia e para uns poucos cultivos ao redor da casa.

Essas considerações que trago aqui estão inspiradas no debate ocorrido durante a apresentação do meu trabalho (Oliveira, 2009), que é parte dessa tese, e do trabalho de Marcelo Rosa (2009) debatidos no Grupo de Trabalho “Transformações sociais e projetos

políticos em concorrência: reflexões a partir do rural” do 33º Encontro da ANPOCS110. O trabalho de Rosa refletia parte da pesquisa que realizou comparando o MST com outro movimento semelhante atuante na África do Sul o Landless People´s Movement (LPM). Uma das questões que suscitou maior debate foi justamente a estranheza expressada pelos Sul Africanos ao verem brancos brasileiros reivindicando o direito à terra. A associação do branco ao colonialismo e, portanto, a uma posse indevida da terra, interpelava o branco do MST que estava naquele país apresentando sua experiência como sem-terra brasileiro. O sentido de colonização era diferente para ambos os grupos, mas era diferente, sobretudo, o conteúdo da reivindicação por terra nos dois países. Lá a terra reivindicada não estava regida pelo lema da produção, mas pelo lema do direito ancestral. A reivindicação da terra naquele país a partir de um movimento muito semelhante ao MST, estava mais próxima ao que seria a reivindicação da demarcação das terras dos indígenas brasileiros. Para eles era surpreendente que um branco reivindicasse terra, e para o branco sem-terra brasileiro era surpreendente que a terra conquistada pelas pessoas daquele movimento não fosse prioritariamente voltada para a produção.111

A relação com o meu trabalho foi feita pelos participantes do referido encontro justamente em torno da “função da terra” como fonte de surpresas para os dois perfis de sem terra. A lógica do militante sem terra brasileiro o fez estranhar que a terra para aquele movimento estava relacionada ao componente racial (ser negro) e não à produção. Dos novos sem terra que encontrei o que se nota é que a terra não assume necessariamente o imperativo da produção. A terra nesse caso não é justificada pela raça, pelo direito devido à ancestralidade, e também não é a terra camponesa, como patrimônio familiar transmitido de gerações em gerações e que tem seu valor cotado não tanto pelo mercado de bens materiais, mas pelo “mercado” dos bens simbólico.

Esse novo formato de relação com a terra está diretamente relacionado como o perfil do sem terra atualmente. São novas questões que surgem a partir de “novos personagens” e são novos rumos que a mobilização política atribui à vida desses “novos personagens”. Mas o novo não surge a partir de uma geração espontânea. O “velho” cria as condições para a emergência do novo e, ao mesmo tempo, está contido no novo. Nesse sentido, o caráter estático de uma definição sempre enfrentará limites em expressar a dinâmica que a faz tornar- se anacrônica.112

A definição proposta por Ademar Bogo, um dos principais dirigentes do MST, acerca de quem é o sem terra, não contempla o sem terra que encontrei no acampamento. Conforme Bogo, sem terra “Inicialmente é um substantivo composto que designa a condição social de

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Realizado em Caxambu - MG no período de 26 a 30 de outubro de 2009.

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Na pesquisa que realizei junto a famílias camponesas organizadas, em sua maior parte, na Confederation Paysan na região do “Larzac – França”, pude notar que a função da terra também tinha sentido diferente. Entre estes agricultores a terra era considerada unicamente como “outil de travail”, não era reivindicado a propriedade da terra, mas apenas a sua posse durante o período em que a família sobre ela trabalhasse ou até o momento de sua aposentadoria. Voltarei de forma mais detida sobre essa questão no capitulo 3.

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Ainda que deva ser considerado que “nenhuma estrutura de significação pode se fechar, pois o que ficou de fora quando da sua constituição lhe é parte integrante”. (Oliveira, 2008, p.183).

quem vive do trabalho agrícola e tem aptidão para o mesmo, mas não possui sua própria terra.” (Bogo, 2005, apud Rosa, 2009). Viver do trabalho agrícola e ter aptidão para tal não

me pareceu, propriamente, ser o que caracteriza grande parte dos acampados que encontrei. Ou ainda essa outra definição que Rosa retém de uma publicação do MST:

“Quem consideramos sem terra: Trabalhadores rurais que trabalham a terra nas seguintes condições: parceiros, meeiros, arrendatários, agregados, chacreiros, posseiros, ocupantes, assalariados permanentes e temporários e pequenos proprietários com menos de 5 hectares.” (MST, 2005: 178).

Percebe-se por parte das lideranças todo um esforço para buscar um fundamento camponês para cada sem terra de seus acampamentos.113 Nesse sentido, a definição consagrada de Sem-terra não está ajustada à realidade atual, pois são poucos os que encontrei no acampamento pesquisado que se reconheceriam, mesmo diante de uma definição de espectro tão amplo, no perfil delineado acima. Mas, de todas as formas, “Sem-terra” continua sendo uma identidade política importante, pois foi a partir dela que se consolidou sua força. Nesse sentido, continuar falando e buscando construir a identidade de Sem-terra não pode ser tomado como uma excrescência. A realidade social é dinâmica e complexa, o que desautoriza qualquer definição estática de identidade. Portanto, apontar a incoerência entre o Sem-terra idealizado pelos dirigentes do MST e o sem terra encontrado em sua base não visa nenhuma denúncia moralmente normativa. Tem o sentido analítico de apontar para sua diversidade de expressões e a força política da identidade de Sem-terra constantemente reconstruída. Mesmo porque, esse não parece ser um problema que se coloca para os sem terra e suas lideranças. Ao perguntar sobre os perfis de sem terra que atualmente formam sua base, a liderança não busca mais a definição contida em seus documentos, mas irá constatar que o sem terra não está mais no campo e sim na cidade. É lá que devem realizar o trabalho de conquistar novos adeptos.

Mas, no entanto, ainda que os ajustes à definição de sem terra sejam feitos sem grades rupturas, nota-se que a realidade atual coloca em questão também a centralidade da “terra de produção” como lema mobilizador. Ao que tudo indica, o próprio lema que fez o MST se fortalecer, e fortalecer a causa da reforma agrária, caminha agora para depor contra ele e sua causa. Não é lícito que uma família busque a terra para outro fim que não aquele de torná-la um exemplo de produtividade.114 No assentamento novo, como será discutido mais adiante, esse imperativo da produção provoca impacto tanto nas relações internas quanto nas relações com agentes externos. Trabalhar na cidade115 ou arrendar seu lote tornaram-se questões morais de grande peso para aqueles assentados.

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Inclusive, na discussão sobre a revisão do Índice de Produtividade constava o argumento de que tal índice serviria também para medir a eficiência na produtividade dos assentamentos de reforma agrária.

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Entre os acampados havia muitos que diziam que não aceitaria outro lote de terra que não fosse localizado na vizinhança do acampamento onde estavam. Suas justificativas diziam respeito à perspectiva de manterem-se próximos dos familiares e também por conhecerem melhor aquela região, o que facilitaria a manutenção de suas famílias. Ficava claro que um assentamento nas proximidades da cidade reunia o “útil ao agradável”, ou seja, a possibilidade de aliar a qualidade de vida de quem mora no campo com as oportunidades de trabalho existente na cidade. Não há a necessidade de migrar para a cidade, a proximidade e a facilidade de transporte produz uma certa interseção entre o campo e a cidade, em alguma medida é como se a cidade migrasse para (ou englobasse) o campo, como sugere Davis (2006, p.19). A presença de vendedores, funcionários religiosos, pesquisadores (como eu) e mesmo os ecos simbólicos do universo urbano que chegam mais facilmente até o assentamento são sinais desse movimento.

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