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Religião: entre o ser e estar

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5.1 Religião e ethos religioso

5.1.1 Religião: entre o ser e estar

Porque se tu não tem uma religião, tu tem que ter outra né!!

Dona Catarina243 A religião é o registro dos desejos, das nostalgias e das acusações de inúmeras gerações.

Max Horkheimer244 Grande parte dos cientistas sociais reconhece o quão difícil é construir um conceito de religião ou de religioso que seja útil à compreensão do universo social a ser analisado245. Desde os clássicos até os contemporâneos vários autores se colocaram esta questão246, e boa parte das críticas formuladas nesse campo de estudo, assim como os vários estudos criticados, realizam um esforço em produzir uma definição mais ou menos abrangente e detalhada desses fenômenos sociais classificados como religioso. Portanto, há determinadas interpretações que destinam ao conceito de religião uma amplitude que acaba por fazer perder sua especificidade explicativa, pois, no limite, quase todos os atos de crença acabam sendo designado como um ato religioso. Por outro lado há certas análises que impõe fronteiras tão restritivas a este conceito que acaba por se tornar problemático seu uso.

No caso presente há outra especificidade: o fato de tomar como referência empírica os processos sociais de um universo social caracteristicamente definido como rural – apesar de boa parte de seu público ser proveniente do meio urbano. Muitos pesquisadores que analisaram a religiosidade no mundo rural encontraram ali manifestações singulares a esse respeito. Remontando a Fustel de Colanges que compreende a religião a partir de sua expressão no seio da família, e mesmo estudos antropológicos atuais baseados em etnografia

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Assentada no assentamento novo.

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Citado em Löwy (2000).

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A revista M.A.U.S.S. dedicou toda uma edição a responder/analisar a questão tema da revista: “Qu’est-ce que le religieux?” Um conjunto de questões foi enviado aos principais pensadores franceses acerca desse tema: “1° L’élaboration d’um concept général du religieux (et/ou de la religion) est-elle possible? souhaitable? (...); 2° L’idée même de religion n’est-elle pas étroitement liée à l’émergence de ce qu’on appelle communément les religions mondiales (ou universelles), instituant un écart entre le rite et la croyance, entre la croyance et sa rationalisation intellectuelle, entre le monde et l’arrière-monde, entre immanence et transcendance? (...); 3° Peut- il se produire une “sortie du religieux” (et est-elle identifiable à sa “sécularisation”)? Assurément, si l’on réserve le concept de religion aux religions universelles ou a fortiori si l’on pose que la société première est de part en part religieuse et que la naissance des grandes religions (et plus particulièrement du christianisme) marque un déclin toujours croissant de la religiosité. Non, si l’on pose que la religion est inséparable de l’existence individuelle comme collective et que nul, individu ou collectif, ne saurait vivre sans un stock minimal de croyances sacralisées (organisées par ce qu’on pourrait appeler un code inviolable du savoir et du croire); 4° Dans cette optique, largement “fonctionnelle”, il est parfaitement légitime de parler d’une religion du progrès, des droits de l’homme, de la démocratie, du communisme, voire d’une religion de l’économie ou de la Bourse. Cet usage vous paraît-il acceptable?” (Caille, 2003, p.7)

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minuciosa de comunidades rurais, como os estudos realizados por Carlos Rodrigues Brandão, fazem referência a uma religiosidade tradicional, de transmissão geracional, ancorado ao local, denso em elementos simbólicos e populares que se integram aos rituais formais. O estudo que realizei nestes dois assentamentos evidenciou elementos que apontam para outro tipo de complexidade relacionado às opções religiosas notadas entre as famílias de agricultores pesquisados.

Nesse meio, a presença de funcionários eclesiásticos é mais rarefeita e os serviços religiosos não são ministrados por estes na mesma medida que no urbano. Devido à ausência ou pouco fluência de padres e pastores, há maior visibilidade de lideranças religiosas locais, além de expressões religiosas de caráter mais comunitário. Nesse sentido, deve ser reconhecido que o mundo rural e os assentamentos em específico, carregam algumas particularidades que impõe efeitos ao modo como se vive o religioso nesse ambiente. Dessa forma, o que tentarei aqui é compreender as relações pessoais/sociais através das categorias religião e ethos religioso. Neste caso farei uma tentativa de definição a partir de uma conceitualização presente na fala nativa aliada e em contraste com definições de caráter mais teórico-analítico.

Religião é, no geral, compreendido como a pertença a um coletivo que professa, a partir de diferentes rituais, sua fé em algo transcendente, uma divindade, um poder superior, uma energia. Nas diversas entrevistas que fiz com agentes que viveram o processo de luta pela terra, há um conjunto predominante dos que expressam sua definição de religioso dessa forma. Ou seja, ao ser questionado acerca de sua religião a resposta, quase que invariável, é aquela objetivamente definida por uma palavra: católico ou evangélico. Os casos em que se professavam pertencentes a alguma religião Afro-brasileira, essa resposta quase nunca era imediata. Antes de explicitarem suas pertenças, havia alguma introdução. Em um dos casos um assentado se disse pertencente a uma religião pouco compreendida, e em outro se disse sem religião, mas logo em seguida assumiu que era filho de santo num Terreiro de Umbanda em um determinado município247. Há uma minoria que ao responder acerca de sua religião, reformula ou associa a minha questão diretamente a algo sobrenatural. Neste caso a religião é como a parte humana da qual estabelece um distanciamento para expressar uma religiosidade com características individuais e diretamente vinculada a uma divindade, normalmente impessoal, que pode ser chamada de “uma energia” de “uma força desconhecida”, que prescinde de um intermediário terreno para ser reconhecida ou respeitada. Neste caso a resposta à pergunta é: não tenho religião. Perfis como esse último é mais recorrente entre aqueles pertencentes ao que podemos denominar de classe média, com um grau distintivo de formação escolar e normalmente localizado em meio aos quadros de lideranças.

Pode-se concluir que a minha pergunta “qual a sua religião?” e as respostas enunciadas imediatamente ou mediada por uma reflexão que compreende o que estou perguntando, mas recusa aceitar os termos contidos na pergunta, carrega uma definição intrínseca subjacente ao senso comum compartilhado por todos, pelo pesquisador e pelos pesquisados. Ou seja, o sentido predominante na palavra religião que vigora no senso comum é a designação da pertença a uma igreja específica. Se não é esse o caso que define o estado do entrevistado este, para não ser confundido nem com um ateu e nem com um “igrejeiro”, responde a minha questão reformulando a idéia de religião e expressando um respeito a algo superior no qual crê. Saliento que esta pergunta, feita assim de forma explícita, tem esse

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Uma outra pessoa, antes de se dizer umbandista, me levou até o altar no qual estavam os vários elementos de sua religião e, na seqüência, tratou logo de esclarecer as diferenças entres algumas denominações religiosas Afro-brasileiras. Saliento que foram estas pessoas pertencentes a estas religiões as que mais empolgadamente falaram de suas pertenças religiosas, uma vez vencida essa primeira barreira da auto-definição. De qualquer forma, estas eram pessoas que ocupavam um certo grau na hierarquia de sua religião, outros que eu sabia freqüentavam tais religiões ocultaram tal informação.

propósito: o de estabelecer um momento reflexivo especificamente relacionado ao tema central da pesquisa. O tipo de reflexão induzida nessa pergunta não resolve todas as questões ali embutidas. Obviamente que o ethos religioso, imanente aos sujeitos pesquisados, se expressa sob diferentes formas e apenas pode ser compreendido a partir da observação participante e das respostas a outras questões menos diretas e mais relacionadas à forma como experimenta outras dimensões de sua vida.

Essa definição de religião é útil pra pensar o poder institucional da religião entre os pesquisados, mas não diz tudo sobre a sua religiosidade. Essa noção de religião não auxilia a pensar, por exemplo, estes que recusam reflexivamente a pertença a uma igreja especifica ou aqueles que deixam perceber que o vínculo enunciado se deve à tradição familiar ou ao costume social local248, e que não seguem as orientações dogmáticas e rituais da igreja à qual se diz pertencer. Ainda é recorrente expressões que reafirmam seu vinculo a uma religião herdada dos pais “nasci católico, vou morrer católico”. Mas, mesmo neste caso, o que pode ser depreendido, como referido anteriormente, é que o “ser católico” atualmente não diz respeito a um compromisso estreito com as orientações dogmáticas e institucionais e nem mesmo com a reprodução de costumes tradicionais.

É católico, por exemplo, para se distinguir, a partir de uma análise comparativa, das exigências impostas por outras igrejas, visando, sobretudo, o rigor moral imposto aos evangélicos. Como no caso de um senhor que ao se dizer católico emendou suas justificativas condensadas na frase: “sou católico e não mudo, sou livre, canto, bebo, danço...”. Ou mesmo quando não há esse tipo de regramento, outras questões são apontadas. É o caso de uma senhora que estava avaliando uma possível mudança da Igreja Católica para a Assembléia de Deus do Ministério da Restauração, uma igreja pentecostal criada há apenas três anos. Convidada por uma vizinha ela passou a “experimentar” tal igreja participando esporadicamente de seus cultos e motivada também pela possibilidade que lhe apresentaram da cura de certa doença que a acometia. No geral ela gostava dos cultos, dos hinos, das leituras da bíblia, a única coisa que lhe incomodava eram os gritos:

Mas a sra gosta, está gostando? São bacanas, eu não gosto muito é daqueles gritos que eles dão, eles gritam demais, [choram, roncam...] é, eu não gosto muito dos gritos deles (...), parece que Deus é surdo (risos), então é isso que não me anima muito de ir, se não eu não sei se já tinha virado a ser crente. (entre colchetes uma irônica intervenção

do marido)

No estudo que Evans-Pritchard (1965) realizou acerca da “religião dos primitivos” ele enumera três características que dão forma à religião professada em “sociedades fechadas” explorando, mais precisamente a sua dimensão objetiva. Ainda que sua referência empírica tanto espacial quanto temporal seja outra, suas considerações fornecem elementos para pensar as características empíricas do momento presente. A primeira características que ele aponta é para o fato de que a religião no caso estudado é invariavelmente de transmissão geracional. Ela existe antes do nascimento do individuo e manterá sua existência após sua morte é, portanto, individual num sentido e em outro é exterior ao individuo. A segunda característica é que todos praticam a mesma religião, ou seja, ela é generalizável, pois se situa acima do(s) indivíduo(s). E, por fim, a terceira característica apontada por Evans-Pritchard, é de que a

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Como no caso de um jovem, liderança do assentamento mais novo, que deu a seguinte resposta à minha questão: “eu quero ser católico”. Com essa resposta ele estava indicando que não pertencia a nenhuma religião, mas demonstrava um esforço e um desejo de adequação àquela que era a religião de seus parentes e da maior parte de seus vizinhos.

religião é obrigatória, pois mesmo que o individuo não sofra nenhum constrangimento objetivo, ele não tem escolhas249.

Obviamente que este tipo de analise que coloca peso no caráter estrutural e estruturante da religião não se ajusta, de forma integral, à maneira com a qual se pensa e se vive a religião atualmente. Mas ao mesmo tempo não é de todo inútil no auxilio à reflexão acerca de certas características, especialmente frente aos processos sociais rurais que aqui analiso. Não é possível aceitar que a religião praticada atualmente seja predominantemente de transmissão geracional, sobretudo quando se verifica a inobservância, pela geração atual, dos costumes e práticas religiosas tão caras às gerações passadas. Ou mesmo nos casos observados nesta pesquisa de jovens que passam a eleger reflexivamente, dentre um leque de possibilidades que se amplia a cada dia, opções religiosas diferente daquelas professadas pelos pais. Ou seja, raramente deixam de ser religiosos, mas passam a optar por outras possibilidades. Portanto, o sonho do iluminismo, que projetava um futuro no qual a sociedade veria um declínio implacável da religião, não se confirmou. Como em outras épocas, muitos são os eventos sociais vividos atualmente que tem na religião seu motor principal, o que torna facilmente perceptível o lugar importante que a religião ainda ocupa na sociedade. No caso desse estudo, o fato da quase totalidade dos entrevistados serem, a priori, crentes em Deus, mesmo que esse Deus assuma feições bastante diferentes e ainda que tal crença seja professada sob diferentes formas, é um indicativo de que a perspectiva secularizante está longe de auxiliar na compreensão dos processos sociais ali vividos. Como foi percebido, ainda há uma matriz que rejeita a possibilidade da não crença em um Deus pessoal e a forte predominância de uma religiosidade de perfil ocidental sobre aquelas de influência africana250 – o que permite falar de religião dominante e religião dominada. Estes elementos são indicativos do constrangimento social a que o individuo está submetido, mesmo que se reconheça a amplitude de possibilidades com a qual este mesmo indivíduo se depara cotidianamente. Pode-se dizer, portanto, que o debate acadêmico atual não mais se concentra em saber se a religião vai ou não desaparecer e sim em compreender a suas transformações contemporâneas. Conforme aponta Geertz (2007, p.8)

“la religion est de plus en plus – devient de plus en plus – un objet flottant, dépourvu de tout ancrage social dans une tradition ou dans des institutions. (…) La religion ne s’est pas affaible en tant que force sociale. Au contraire, elle semble s’etre renforcée dans la période récente. Mais elle a changé – et change de plus em plus – de forme”

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« Elle se transmet d'une génération à l'autre; donc si elle est individuelle, dans un sens, dans un autre elle est extérieure à l'individu, parce qu'elle existe avant sa naissance et qu'elle existera après sa mort. Il l'acquiert comme il acquiert le langage, par le fait qu'il est né dans une société déterminée. Deuxièmement, elle est générale, du moins dans une société fermée. Tout le monde a les mêmes croyances et les mêmes pratiques religieuses et ce caractère général, ou collectif, lui confère une objectivité qui la place au-dessus de l'expérience psychologique de tout individu; de tous les individus. Troisièmement, elle est obligatoire. Mises à part les sanctions positives ou négatives, le simple fait que la religion ait un caractère général signifie, toujours dans une société fermée, qu'elle est obligatoire, car même s'il n'y a pas contrainte, l'individu n'a pas le choix et doit accepter ce que tout le monde accepte, comme il accepte le langage qui lui est imposé. Fût-il même sceptique, il ne pourrait exprimer ses doutes que par rapport aux croyances que l'on professe autour de lui”. (Evans-Pritchard, 1965, p.41-42)

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Duas pessoas do assentamento mais novo comentaram comigo sobre um assentado que “era do Batuque” e apesar da minha insistência em saber mais a esse respeito, ambos desconversaram associando tal prática a algo que não podia ser referida como religião. Um deles comentou sobre uma celebração que esta pessoa conduziu, ainda na época do acampamento, provocando muito medo nos acampados. Tal pessoa foi repreendida e proibida de repetir tal celebração naquele espaço (estas questões estão discutidas no capítulo seguinte).

Também em relação ao segundo e terceiro ponto apontado por Evans-Pritchard, o que notamos atualmente, conforme apontado por Geertz, é que “ce qui est moderne dans la modernité, c’est la diversité de croyance, de foi et d’engagement” (Geertz, 2007, p.9). Nos dois assentamentos pesquisados ficou evidente a ocorrência de diferentes possibilidades de engajamento em uma religião. No caso do assentamento mais antigo, ainda que ocorra a possibilidade de experimentar opções no campo das igrejas evangélicas, pode-se dizer que a adesão nominativa ao catolicismo é absolutamente majoritário, conforme confirmado por este assentado:

Você falou que tem outras igrejas no assentamento. Quais são?

A que eu sei é a Assembléia de Deus, sei porque ta escrito, mas é uns 3 a 4 por cento, nem isso. Num assentamento de 100 famílias tem um grupinho de 5, 6. E daí eles já criam uma estruturinha lá, coisa muito pequena. Mas ta crescendo eu acho. Um tempo atrás não tinha nenhum assentamento que tinha isso. Não sei se é a nível de outras comunidades também, na cidade tem bastante, mas na área rural há um foco de crescimento, não sei muito o que que leva.

O que ficou evidente naquele assentamento era a variação de engajamento dentro do próprio catolicismo. De forma sintética pôde-se perceber a ocorrência de cinco grupos com expressão religiosa distinta. Um grupo de militantes que estiveram fortemente engajados em atividades da igreja na origem de seu envolvimento com as lutas sociais, mas que atualmente haviam se afastado da igreja e apenas participavam de celebrações conduzidas por padres que mantinham seu vínculo com a luta social. Neste caso, sua fé em Deus era pensada sempre a partir de categorias políticas e seu pertencimento ao catolicismo se dava de forma crítica e seletiva. Há um outro grupo sobre o qual se pode dizer que, apesar de haverem vivido um percurso semelhante, se mantinham fiéis à igreja católica independente do matiz do seu discurso ou do discurso do padre que celebra, mesmo que eles próprios mantivessem uma adesão, no campo político, em conformidade com o grupo dos militantes. Além desses, há o grupo dos que compõem o “tipo médio” ali presente que é freqüentemente caracterizado pela referência à sua condição de católicos praticantes e um outro grupo dos católicos não- praticantes por alusão especificamente à observância das orientações produzidas pela igreja251. E, por fim, há o grupo dos fiéis evangélicos pertencentes, majoritariamente, à Igreja Pentecostal Deus é Amor.

Já no assentamento mais novo, que está localizado mais próximo da cidade e que, pela formação recente, recebeu muitas pessoas provenientes das periferias das cidades, refletindo o novo perfil de acampado privilegiado pelo MST, a diversidade de engajamentos entre diferentes denominações é maior, especialmente devido à presença significativa de igrejas evangélicas e em função do padre local, conforme os relatos coletados junto aos assentados, não destinar muita atenção àquela comunidade. Obviamente que a diversidade de engajamentos dentro de cada denominação também existe, sobretudo no que está relacionado à intensidade desse engajamento.

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