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Assim, a relação das ciências da educação com a problemática da formação contínua constitui uma tema de

reflexão que não pode fazer a economia da análise das relações

que se estabelecem entre os seus referentes de cientificidade e a

natureza dos problemas a propósito dos quais essa cientificidade

é construída. Conforme se intentou defender nos capítulos que

precedem, a interdependência entre o carácter científico do

conhecimento e a sua função prática no que respeita à própria organização da acção h u m a n a com a realidade natural e social postula que uma nova ordem de problemas se traduza numa desordem epistemológica transitória de maior ou menor amplitude, de maior ou menor duração, conforme a natureza e o grau de tensão introduzido na relação teoria/prática, qualquer que seja o plano em que ela se manifeste.

No campo da educação, a emergência da questão da cientificidade, não obstante a sua específica problematicidade, constitui um fenómeno histórico-social em tudo idêntico ao que se passou noutros campos da prática social: à semelhança do que ocorreu na física ou na botânica, na medicina ou na farmácia, a educação confrontou-se com uma realidade social, à qual já não era possível responder por via duma ordem epistemológica que assentava os seus referentes teóricos n u m a concepção do mundo para a qual a prática social era encarada como o cumprimento dum destino natural, assumindo-se aqui por natural a posição social que a cada ser cabe ocupar no plano da natureza ou do mundo criado, nos termos duma leitura providencialista da realidade.

A industrialização, que representou, de facto, a intervenção deliberada e organizada da acção do homem sobre a natureza em ordem à sua exploração e consequente subordinação aos seus desígnios, consumou igualmente uma ruptura do homem consigo próprio no plano da ordem cósmica, a partir da qual se tornou epistemologicamente impossível invocar o peso da argumentação baseada na tradição ou na autoridade, precisamente porque, quer uma quer outra, remetiam para uma tópica comum de pensar e agir cujo suporte de referência deixara de ser estável e universal (MICHELI, 1990:52/53). Desta ruptura, resultou que a natureza h u m a n a se foi libertando da ordem cósmica a cujo plano

epistemológico pertencia (obviamente que por relação metafísica), actualizando-se, assim, a premonição de VIÇO (in LEACH, 1985): "Este mundo civil foi certamente feito pelos homens, por isso os seus princípios devem ser procurados e descobertos nas transformações do nosso próprio espírito humano".

A tese de VIÇO admite, benevolamente, que as transformações do nosso próprio espírito humano se processam a um ritmo tal que, apesar de tudo, consentem que se distinga nelas o que é do reino dos fenómenos daquilo que é do reino das essências, condição para que seja possível estabelecer os princípios que regem essas transformações, sendo aí que reside a possibilidade da ciência.

Esta tese traz assim consigo um paradoxo, que é o paradoxo de toda a ciência moderna e cujos efeitos são particularmente actuantes no campo das ciências sociais e, mais agudamente ainda, no da educação: o reconhecimento de que a ciência deve a sua existência às transformações sociais e naturais e, todavia, a partir do momento em que existe, tem de considerar suspensas essas transformações, sob pena da sua própria invalidade. É esta imposição paradoxal que, contudo, melhor atesta o carácter social da ciência ou, dizendo mais explicitamente, a sua condição de dependência social, enquanto instrumento da prática. Com efeito, se, em termos lógicos, a ciência é inconcebível à luz da sua própria génese, instituindo-se como uma arbitrariedade lógica, a verdade é que, em termos sociais, essa arbitrariedade torna-se historicamente necessária, à medida que os seus princípios, inventáveis nas transformações que os produzem, vão sendo apropriados socialmente, tendendo, assim a regular as próprias transformações e, idealmente, a suprimi-las.

O facto de a arbitrariedade lógica da ciência se converter numa necessidade histórica inscreve-se n u m a relação interna ao jogo das forças sociais e o facto de um paradigma emergir e se tornar hegemónico sobre outro, ou outros, significa que as transformações sociais ou as contradições, que elas suscitam entre essas forças, se revêem mais resolúveis nele que em outros, o que permite dizer que ele é reconhecido socialmente como mais pertinente e mais apto para conformar a realidade social. Daqui resulta que as transformações por que passa o espírito humano, a que aludia VIÇO são, por sua vez, transformadas n u m a nova forma e passam a ser réplicas dessa forma ou aplicações dela.

Por razões óbvias, que têm a ver com a natureza do seu objecto - híbrido, complexo e empiricamente incontrolável - as ciências da educação sofrem um processo muito menos linear que o suposto na explanação acima, justamente porque são elas que mais intensamente revelam a sua dependência social. Contraditoriamente, porém, é a sua dependência social, isto é, a sua condição de ter de corresponder às necessidades sociais dominantes que lhes impõe a chancela da sua cientificidade, ou seja o reconhecimento dum carácter de independência face a essas mesmas necessidades, pois só mediante a atribuição desse carácter elas estão em condições de resolver as contradições inscritas nessas necessidades por uma via diferente daquela que as gera, que é o poder político explicitamente exercido.

Tal como na ciência moderna em geral, também na educação, o discurso científico tende a insinuar-se e, mesmo, a afirmar-se como u m a forma privilegiada de exercício vicariante do poder político ou como suporte estrutural da sua disputação; progressivamente, como afirma A. ARENDT (1972: 227), "a educação torna-se um meio político e a política uma forma de educação".

Todavia, a legitimidade para que o possa fazer passa, numa primeira fase, por uma prévia construção da autonomia do seu objecto. E aqui, é possível identificar três orientações teóricas, historicamente situadas, cujas problemácicas e respectivos desenvolvimentos científicos se projectam nos nossos dias, embora com fortunas diferentes e diferentes formas de significação, reflectindo, assim, as várias facetas do objecto da educação.

Embora essas três orientações possam ser consideradas constitutivas do processo do desenvolvimento da humanidade segundo uma relação lhe é ínsita, a verdade é que, do ponto de vista da sua expressão sob a forma de modelos de organização social, consciente e expressamente assumidos, elas correspondem ao voto de VIÇO no sentido de representarem a necessidade de o espírito humano pensar a ordem h u m a n a como um constructo decorrente das s u a s próprias transformações. Nesse sentido, as orientações que vimos referindo são claramente datáveis e reportam-se ao século XVIII, corporizadas nas posições filosófico- educativas de ROUSSEAU e CONDORCET, em nome dos enciclopedistas, e começos do século XIX, nas de HEGEL.

Sem pretender reeditar, em pormenor, a problemática do tempo que subjaz ao processo de emergência dessas posições no que elas têm de comum, independentemente do método que as caracteriza, designadamente a tese de que o homem é um projecto civilizacional que se constrói pelo exercício da sua autonomia racional (BOUTAUD: 1994), o que aqui nos preocupa são as marcas que as distinguem, enquanto reflexo duma disputa cerrada em torno da definição do objecto da educação. De facto, se hoje é relativamente pacífico que o fenómeno da educação implica, analiticamente, do ponto de vista da acção pedagógica, uma dimensão tripolar que se exprime, num momento

descendente, por ensinar, instruir e formar e, num momento, ascendente, por aprender, informar-se e formar-se (HOUSSAYE: 1988); (GOGUELIN: 1994: 9-19), o processo da sua articulação e, sobretudo, a sua estrutura hierárquica nada têm ue pacífico, como é patente nos conflitos que se registaram entre aquelas orientações e nas que nelas se filiam ou que com elas se recompõem no nosso tempo, pese embora as sucessivas reconfigurações históricas que, entretanto, ocorreram.

É conhecido o combate que HEGEL travou contra o pensamento de ROUSSEAU que, através de FROEBEL e, sobretudo, de PESTALOZZI (BOUTAUD, o.c. :205) adquiriu notoriedade e influência em muitos espíritos do seu tempo. Ê igualmente conhecida a animosidade que ROUSSEAU alimentava contra os enciclopedistas, assim como a distância que HEGEL guardava destes. Não passaria isso de simples curiosidade se, entretanto, estas particularidades não ilustrassem de modo tão vivo a forma como o objecto da educação se torna campo de disputa no contexto das transformações que se operam na Europa desde o século XVIII.

Ora, o que está em jogo no interior dessa disputa é a definição de princípios que devem presidir à forma de organizar, legitimamente, as relações que se processam entre as diferentes funções que integram o fenómeno educativo e, consequentemente, as relações que estruturam, de forma directa, o acto educativo legítimo. Partindo do princípio de que as funções educativas, acima assinaladas, não obtêm a mesma distribuição hierárquica em cada uma das orientações em análise, justamente porque a educação é pensada solidariamente com um modelo de organização filosófico-político que corresponde a interesses sociais diferentes, podemos construir um esquema analítico que permita pôr em evidência o modo como a diferença de distribuição

hierárquica das funções referidas traduz uma diferença de natureza relativa ao objecto da educação.

Considerando os eixos a que acima fizemos referência, propomos uma leitura segundo a qual o eixo vertical desempenha funções paradigmáticas, enquanto ao horizontal são atribuídas funções sintagmáticas. Se interpretarmos o eixo paradigmático como aquele que representa o domínio da referência da legitimidade educativa (o princípio da autoridade) que define o carácter de cientificidade (o princípio da competência) e, portanto, o do critério da articulação temporal das funções educativas, representadas no eixo sintagmático, reconhecemos que, para cada uma das orientações de que vimos tratando, há um paradigma dominante distinto dos restantes. Assim, para ROUSSEAU, o princípio que organiza a legitimidade educativa é a subjectividade humana, expressa na ideia de natureza dotada de auto-finalidade, pelo que a função que articula as restantes é a do aprender; para os enciclopedistas, designadamente CONDORCET, é a objectividade científica e técnica, correspondendo-lhe, como função articulatória da actividade educativa, a do instruir; finalmente, para HEGEL, é unidade do Estado, a quem compete formar, enquanto representante da síntese subjectividade versus objectividade.

Não é este o lugar para analisar, em pormenor, os ingredientes socio-históricos que estruturam cada uma destas perspectivas. Interessa, tão só, pôr em relevo, em termos epistemológicos, o que lhes dá consistência teórico-metodológica.

A via da subjectividade radical escolhida por ROUSSEAU, protegida por uma ideia de natureza, deliberadamente construída sob o registo da espontaneidade e da inocência, sendo a denúncia de uma sociedade que já não se revia na educação tradicional,

capitalizava em seu favor a força da irrupção do movimento naturalista, em plena expansão entre os círculos intelectuais europeus (HAZARD, 1974), com a vantagem adicional de, ao criar um objecto novo para a educação - a criança, essa desconhecida - criar, igualmente, a necessidade do seu estudo desde a base1 4.

Ora, z precisamente aqui, neste apelo ao estudo, que ROUSSEAU revela uma atitude epistemológica nova, heuristicamente fecunda.

Ao expor socialmente a criança como um objecto desconhecido, ela que era, do ponto de vista do conhecimento, o objecto mais familiar entre todos, ROUSSEAU introduz a dúvida, o espanto e a indignação15, sem que, em contrapartida, possa

oferecer, como tinha feito DESCARTES, a solução para o problema levantado a não ser pela via da desconstrução crítica do sujeito humano, exercida sobre si próprio, na sua própria história. A ruptura com a objectividade instalada, mormente quando essa objectividade estrutura as relações mais imediatas, que são justamente aquelas que, por tão óbvias, não precisam de mediação explícita ao nível da sua compreensão prática, é a primeira condição da ciência, entendida, aqui, em sentido lato de conhecimento teórico, como já adiantara ARISTÓTELES e, como repetidamente lembrará BACHELARD (1986, designadamente). Todavia, essa ruptura só é socialmente viável se houver passagem

14 - "Commencez donc par mieux étudier vos élèves, car très assurément vous ne les connaissez point" (Emile ou de

L'Éducation - Extraits -I, Paris, Larousse, Paris, s/d., p. 16).

15 - Como é sabido, o Emílio foi objecto de todo o tipo de perseguições e condenações, assim como o seu autor, por parte de autoridades civis e religiosas. Cf. DUHARCOURT, in ROUSSEAU, J.-J., Emile ou l'Éducation, Paris, Larousse, s/d.

entre a ordem epistemológica nova e a ordem ontológica vivida , isto é, quando a relação do sujeito com o objecto se revelar problemática nos limites da ordem antiga. O trabalho de ROUSSEAU foi tornar problemática a educação, ali onde a pretensa realidade dos factos não oferecia problema: o estatuto de dependência e de invisibilidade da criança. Era verdadeiramente afrontar os factos, contrapondo-lhe outros que ninguém reconhecia como objectivos, inclusive o Genebrino, que tem plena consciência de que o seu novo objecto de estudo não se deixa apreender segundo uma representação estável e, portanto, objectivamente definível. Esse novo objecto não pode ser categorizável, segundo um conjunto de propriedades que possam ser descritas como constitutivas da sua realidade, tida como independente da relação que se estabelece com ele.

É nestes termos que a subjectividade, que ROUSSEAU inaugura na educação, introduz uma fractura decisiva na teoria educativa, fractura essa que traduz a irredutibilidade do sujeito educando à representação que as ciências particulares, que se ocupam do educativo ou do didáctico, fazem dele. E poderemos, até, ir mais longe afirmando que essa fractura é insuturável ao nível do conhecimento humano em geral, uma vez que este, admitida a sua dependência da subjectividade socio-histórica, jamais alcançará o sujeito na sua imediatitude. A estabilidade e a

objectividade, ou seja, u m a pretensa unidade da ordem ontológica, que procure reconciliar o sujeito humano consigo mesmo, só poderá ser possível através do trabalho das ideologias, que terão, justamente, por tarefa a "suspensão da historicidade das contingências, o que implica restaurar o indubitável" (LAROCHELLE, 1995: 112).

ROUSSEAU intui, claramente, o drama da educação pela subjectividade, isto é, por um caminho sem mediação. É por isso

que escolhe a utopia, em vez da ideologia e à semelhança dos clássicos utopistas, utiliza a alegoria como base da sua problematização. Como alguém que, coerente com o teor da própria proposta apresentada, ao objectivar a sua subjectividade, só o pudesse fazer no registo do "como se", beneficiando dos efeitos do jogo da metáfora que é, precisamente, assegurar a radicalidade da diferença entre o dito e o sentido.

É neste quadro que a hipótese do bom selvagem, regenerador da espécie h u m a n a é, certamente um artifício, como sustenta SALOMO-BAYET, (1974 e GUINERET, (1994) e como já tinha intuído KANT16, assim como é um artifício a própria ideia de

natureza donde procede; como tal, não se destina a ser testada socialmente em ordem a ser confirmada ou a ser aplicada, ainda que Emílio seja colocado no mundo em condições laboratoriais. Trata-se, antes, de uma hipótese estratégica, destinada a questionar os fundamentos da educação face a uma sociedade cujos convencionalismos se apresentavam como profundamente arbitrários, incapazes de gerar outra ordem social que não fosse a que HOBBES tinha concebido. Aprender tudo de novo em contacto

16 - KANT, E. (1947): La Philosophie de l'Histoire, Paris, Aubier, p. 153:...Si l'on se mettait a dresser de toutes pièces une histoire sur des conjectures, on ne ferait guère autre chose, semble-t-il, qu'ébaucher u n roman. Et d'ailleurs une telle oeuvre ne méritait m ê m e p a s le titre d'Histoire conjecturale, m a i s t o u t a u plus celui de pure fiction romanesque. Néanmoins, ce que, dans le cours de l'histoire des actions humaines, on n'a pas de droit d'oser faires, on peut bien tenter d'établir par des conjectures pour les premiers débuts de cette histoire, dans la mesure où c'est de l'oeuvre de la nature qu'il s'agit alors. (Itálico no texto francês)

com a madre natureza, perante a qual todos somos ignorantes,

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