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A entrada da intencionalidade científica no campo educativo pela porta da psicologia, se configura uma estratégia de intervir

tecnicamente no plano dos comportamentos humanos, não é,

certamente, por acaso que o faz tendo por referência o público

escolar da escolaridade obrigatória (POPKEWITZ) num momento

em que o processo histórico, sujeito a um intenso surto de

industrialização, se confronta, por um lado com a ascensão da

conflitualidade social e, por outro, com a necessidade de produzir e gerir comportamentos individuais integrando harmonicamente traços pessoais e competências profissionais, aspectos que retomaremos com algum pormenor (Cf. Segunda Parte Capitulo II).

CAPÍTULO II

EM PROL DE UMA EPISTEMOLOGIA PRÁTICA

A pretensão à cientificidade que se acha legítimo atribuir à intencionalidade teórica que funda a epistemologia deste trabalho deve, assim, encontrar-se na própria natureza do conhecimento científico quando encarado como uma produção sócio-histórica. Na verdade, todo o conhecimento científico tem uma intencionalidade teórica que é, socio-historicamente, uma intencionalidade prática que o funda, correspondendo aquela intencionalidade a uma visão transcendentalizada das condições necessárias à resolução dos problemas sociais concretos. Nessas condições, inscrevem-se tanto o tipo de problemas a que o conhecimento se dirige, como as regras de transcendentalização (os dispositivos metodológicos e os referentes cognitivos) que o operacionaliza, isto é, que o torna tecnicamente eficaz (no sentido de tecnê). Há, portanto, na intencionalidade teórica uma intencionalidade prática e a transformação desta naquela só releva para efeitos científicos se essa transformação representar uma resposta simplificada aos problemas socialmente dominantes. Quando Sócrates, no quadro da sociedade ateniense do seu tempo, adopta a estratégia do diálogo como via de acesso à síntese conceptual, não é obviamente a construção do conceito, como elemento do saber, que o mobiliza, mas a perspectiva de superar as contradições político-sociais, exacerbadas pelos sofistas, que dependem, ao mesmo tempo, delas. Se o conceito se tornou, com Aristóteles, um elemento estruturante da lógica e, como tal, se autonomizou da sua raiz antropológica, isso significa que a intencionalidade prática, que lhe deu origem, se tornou de

tal modo socialmente dominante que se hipostasiou em princípio estruturante do discurso.

Outro tanto se poderia dizer da ciência moderna. Quando GELLNER (1990,: 97-119) diz que "a indústria moderna é inconcebível sem a ciência moderna" não diz apenas que a indústria moderna é uma aplicação possível, entre outras, da ciência moderna; ela é o seu polo prático socialmente intencionado, a condição mesma da sua emergência e da sua especificidade, o que permite ao próprio GELLNER afirmar, complementarmente, que "a ciência moderna é inconcebível sem a sociedade industrial". E se o paradigma empírico-analítico, característico da racionalidade moderna, se alargou até ao campo social e até moral, como vimos acima e é possível reconhecer em DURKHEIM e até num certo FREUD (HABERMAS,1976), isso significa que as relações sociais ganhariam em ser produzidas e reproduzidas segundo os mecanismos científicos da produção industrial. É esse, por exemplo, o ponto de vista de ARON (in ARCHER, 1990: 102) ao declarar que

"para além dum certo estádio do seu desenvolvimento, a própria sociedade industrial parece-me(lhe) alargar o leque de problemas referível ao escrutínio da ciência e apelar à competência da engenharia social. Mesmo as formas de propriedade e métodos de regulação que foram matéria de controvérsias doutrinais ou ideológicas durante os últimos cem anos parecem-me competir à esfera da tecnologia".

A aplicação do modelo das ciências naturais ao mundo das

relações sociais, ou seja a utilização p r á t i c a d a razão teórica, e m

nome da desideologização da vida social, significa, em última análise, a neutralização da alteridade, visada não já como contradição prática, mas como desvio utópico ou querela metafísica, incompatível em qualquer caso com a racionalidade

técnico-administrativa indispensável ao desenvolvimento da civilização ocidental. A supressão das diferenças ou a sua consideração como modalidades provisórias de um todo cientificamente administrável são a condição para que se torne plena "a comensurabilidade universal de todos os discursos, a qual não poderá ser produzida se não à custa da despolitização dos saberes..."(LAROCHELLE, 1995: 207; (ELIAS: 1993).

Mais prudente quanto à aplicação do paradigma se mostrou VIÇO (in MORINI, 1988: 323) que, nesse aspecto, se apresenta como gozando de grande actualidade quando diz: "Não operam sabiamente aqueles que nos usos práticos da prudência civil se valem dos mesmos critérios de juízos empregados pela ciência". Reagia precisamente desse modo contra a tendência matematizante anunciada por GALILEU e DESCARTES, manifestando, assim, a consciência de que por essa via se dava início "a uma perda da força hermenêutica na penetração teórica de situações a dominar pela prática", a crer no testemunho de HABERMAS, citado por MORINI (l.c).

O confronto entre uma perspectiva hermenêutica e crítica e uma perspectiva experimentalista é, aliás, esclarecedor quanto ao sentido social da ciência e, mais explicitamente, quanto às relações que são estabelecidas entre o tipo de aparelho conceptual que integra qualquer corpo científico e os interesses sociais (ou profissionais) a que ele se encontra epistemologicamente vinculados. C.BERNARD (1934), ao descrever o seu método experimental em termos que fizeram dele um verdadeiro modelo académico para sucessivas gerações, atribuía à "observação fiel da realidade" um valor decisivo na validade do conhecimento científico. Ao fazê-lo, assumia que a observação devia ser uma operação rigorosamente neutra, atento ao princípio positivista de

que a ciência consiste "nas relações constantes que existem entre os fenómenos" (COMTE (1898), in HABERMAS, 1976): 112).

Todavia, a questão da neutralidade da observação só se torna cientificamente importante quando ela assume valor social, como argumento e critério de objectividade contra outros critérios socialmente disputáveis. A neutralidade torna-se, então, um operador ideológico, não no sentido explicitamente político, mas no de máscara socio-cultural, porque, ao remeter para o domínio da observação dos factos o fundamento da objectividade, correlato da universalidade do modo de observar, elide a questão da interpretação socialmente motivada como suporte de toda a observação. Entenda-se aqui "interpretação" não enquanto operação do foro psicológico, mas enquanto possibilidade de leitura socialmente dirigida segundo as regras instituídas no quadro científico-cultural e político dum dado contexto histórico. Como lembra T. KHUN (1983: 87)

"só quando as categorias conceptuais adequadas estão constituídas antecipadamente é possível descobrir sem esforço a

existência do fenómeno e a sua naíureza";(sublinhados do autorj

O que se inscreve nesse registo de pré-compreensibilidade e que organiza a possibilidade de observação não é, evidentemente, neutro, sob pena de se tornar impossível produzir qualquer juízo. A neutralidade, como categoria empírico-psicológica, tal como C.BERNARD aqui a toma, remete, portanto, para um quadro intencional de transcendentalidade cognitiva e axiológica onde seja possível discernir que a "neutralidade" é uma coisa desejável para a constituição da Ciência. A essa luz, a neutralidade adquire um sentido instrumental, que se exprime na negação da sua instrumentalidade imediata, cuja interpretação remete para o papel da Ciência num contexto em que se afrontavam projectos político-ideológicos, cuja legitimidade social era mutuamente

exclusiva, conforme é possível observar na questão do laicismo em

F r a n ç a (Cf. p . 1 6 7 e ss.)

A invocação da neutralidade, ao mesmo tempo que testemunha a radicalidade do conflito, apresenta-se, então, como caução da atitude desinteressada da Ciência e dos seus cultores, visto que ela é a garantia da soberania dos factos. Reencontramos, por esta via, o papel protagonístico do interesse na constituição da Ciência, ideologicamente disfarçado, na medida em que ele assume "o sentido de um conhecimento pretensamente desinteressado, servindo para dissimular o interesse sob a forma de uma racionalização" para usar os termos da interpretação de RICOEUR (s/d: 349) a propósito da posição habermasiana.

Essa racionalização aparece, no quadro do positivismo, sob a preminência do método que, depurado e autonomizado das contingências das práticas sociais concretas e formalizado enquanto objecto transmissível de conhecimento, escamoteia a insupribilidade do carácter intersubjectivo e, portanto, socialmente comprometido do próprio conhecimento. Tal como para DESCARTES, também para o positivismo naturalista, o método transforma-se no fundamento do saber e são os referentes lógicos das relações estabelecidas no seu interior que determinam a possibilidade e as modalidades de existência dos objectos, pese embora a afirmação do primado da empeiria no positivismo que, em última análise, significa a ausência de reflexão sobre a actividade do sujeito social na produção do conhecimento. Foi precisamente a função estruturante do método experimental na constituição da ciência que explicou e ainda explica a particular atenção que lhe foi dado na construção da comunidade científica

(FOUREZ, 1994: 32 e ss.), como suporte da objectividade e da

legitimidade científicas

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O reconhecimento, hoje pacífico, do carácter social da ciência

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