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A gradual autonomização do pensamento relativamente à prática produtiva que é acompanhada duma diferenciação social a

caminho da aristocracia e duma promoção acelerada da

linguagem como substituto da acção, (veja-se o caso da Sofística

grega), ocorre à medida que os problemas antropológicos e

políticos - a legitimação e manutenção da vida da polis - se

tornam mais instantes que os problemas da relação com a

natureza e com a técnica. É este processo que está na origem

duma viragem na relação teoria/prática. Aristóteles reconhece

explicitamente que a sua noção de ciência, ou melhor de

sabedoria, não tem nada a ver com com uma ciência produtiva.

"Que não é uma ciência produtiva torna-se claro até pela

consideração das mais antigas filosofias", diz, citado por

FARRINGTON (o.c: 92). A ciência torna-se então teoria, esforço

especulativo, metafísico, para encontrar a essência, a partir da

qual se estabelece o lugar natural das coisas e dos seres. A produção é degradada à condição de tecnê como "aplicação reflectida de regras determinadas"(HARDY, 1979:10).

Simultaneamente, opera-se uma clivagem no interior do conceito de prática, distinguindo-se entre o que é acção moral e acção técnica, reservando-se para o primeiro sentido o que é distintivamente humano, enquanto actividade {ergon)4 específica que realiza a essência do homem, visto que assenta na sua inteligência como instância deliberativa, e deixando-se ao segundo o estatuto de artes mecânicas, cuja forma, originariamente dependente do génio inventivo e demiúrgico, passa agora a depender da encomenda dos clientes ou da intenção de lhes ser útil (Cf. VERNANT, 1958:402 e ss.). Note-se que, for força desta distinção que, no fundo corresponde a u m a separação entre o espiritual e o material, as artes são despojadas do seu sentido

4 - A propósito de ergon, Aristóteles, em vários momentos da sua obra, deixa claro que a tarefa {ergon) essencial do homem consiste no exercício actual do pensamento, traduzido em actos virtuosos, orientado pela ideia de Bem Soberano e não por qualquer fim particular. E pergunta-se expressamente: «Será possível que um carpinteiro ou um sapateiro tenham uma função e uma actividade a exercer, mas que o Homem (enquanto tal) não tenha n e n h u m a e que a sua natureza o tenha dispensado de qualquer obra a realizar?": ( in Ética a Nicómaco, 1,6, 1097b, 29), citado por LADRIÈRE (1990:16. La Sagesse pratique, in CONEIN, Bernard e Al., Les Formes d'Action, Paris, École des Hautes Études en Sciences Sociales). Torna-se evidente que o trabalho, enquanto actividade técnica, é excluído da natureza humana. Como diz GAUTHIER, R.-A. (1973: 60), La Morale d'Aristote, Paris, PUF, "o humanismo aristotélico não é um humanismo do trabalho".

criativo e remetidas para o domínio do manual, sendo por isso que para os gregos perde significado a distinção entre artes mecânicas e belas-artes, porque ambas se subordinam ao domínio do útil e não do bem. A reabilitação das belas artes, como uma actividade associada à subjectividade criadora e à autonomia da imaginação corresponde, por sua vez, ao fim da produção artesanal e ao desenvolvimento da produção em série de mercadorias (TARDIF, in GOUTHIER, 1993: 29.

Com a ciência moderna, o pensamento iluminista vai tentar reaproximar estas duas dimensões da prática, embora com profundas oscilações. Se com KANT é ainda a dimensão prático- moral que domina a relação do homem com o mundo da técnica, em HEGEL e, sobretudo, com MARX, as duas dimensões tendem dialecticamente a intercondicionarem-se no sentido da produção da verdadeira essência do Homem como liberdade.

Para HEGEL, "o trabalho forma" isto é, confere uma forma adequada aos elementos naturais. A consciência objectiva-se no trabalho, ou antes, "sai fora de si no elemento do permanecer", enquanto humaniza as coisas, dando-lhes u m a forma particular, adaptada às necessidades h u m a n a s . Deste modo a consciência servil suprime a objectividade morta da natureza, destrói este negativo que lhe é estranho e reintegra-o no interior da consciência; esta "transforma-se assim por si própria em algo que existe por si", "alcança a consciência de ser ela própria em si e por si" (BEDESCHI, 1985:209).

Esta formação do homem pelo trabalho é, então, entendido por Hegel como um processo de desalienação progressiva comandado pelo espírito que, de subjectivo primeiro e objectivo, depois, se reconhece absoluto na s u a identificação com o Estado que representa a síntese do particular no universal. Na

perspectiva da história h u m a n a , o trabalho para HEGEL tem, portanto, u m a conotação sempre positiva, mesmo quando ele é um trabalho escravo, porque representa a condição pela qual o senhor reconhece a s u a dependência dele. Como diz o próprio MARX (1981: 42):

"A grande importância da Fenomenologia do Espírito de Hegel e do seu resultado final - a dialéctica, a negatividade enquanto princípio determinante e criador - consiste no facto de Hegel considerar a própria produção do homem como um processo, a materialização enquanto oposição concreta, enquanto exteriorização e supressão desta exteriorização; e no de conceber, portanto, a essência do trabalho e ver no homem objectivo, no homem verdadeiro porque real, o resultado do seu próprio trabalho" (sublinhado n a tradução francesa).

Como se sabe, o esquema de HEGEL foi invertido por MARX, como é patente neste passo, na medida em que a s u a concepção de espírito produtor de conhecimentos não é independente das relações sociais de produção:

"A moral, a religião, a metafísica ou qualquer ideologia, assim como as formas de consciência que lhes correspondam perdem aqui toda a aparência de autonomia. Elas não têm história, nem evolução. São os homens que, desenvolvendo a sua produção material e as suas relações materais, transformam simultaneamente a s u a própria realidade, a sua maneira de pensar e as suas ideias. Não é a consciência que determina a vida, é a vida que determina a consciência." (Ideologia Alemã,

1981: 84).

E é à luz deste princípio do materialismo dialéctico que MARX estabelece "que é apenas no seio d u m a sociedade concreta que as antinomias tais como subjectivismo e objectivismo, espiritualismo e materialismo, actividade e passividade perdem o seu carácter

antinómico e deixam, por isso mesmo de existir enquanto antinomias. Vê-se que a solução das contradições teóricas só podem ser obtidas por meios práticos, apenas pela energia prática do homem. A sua solução não é de modo nenhum apenas uma tarefa do conhecimento, mas uma tarefa real da vida" (III Manuscrito,Ib.: 25).

Os textos de Marx que tratam desta temática apontam, portanto, para o critério da prática como o fundamento da crítica da ideologia, donde procederá a possibilidade do conhecimento verdadeiro que é sempre uma síntese provisória, enquanto persistirem as contradições reais entre o capital e o trabalho. As contradições são, entretanto, função do grau de desenvolvimento das forças produtivas em interacção com o grau de desenvolvimento do trabalho científico, convertido em saber tecnicamente explorável, pelo que o conhecimento desempenha uma função fundamental na identificação dessas contradições.

O conhecimento não se limita, assim, a ser um instrumento de manipulação da natureza ao serviço da produção; ele é um meio de denúncia das contradições, da organização da consciência de classe, de activação da luta revolucionária e da supressão das contradições com vista à reconciliação da espécie. Este conhecimento passa, portanto, do plano técnico teórico, onde organiza o trabalho segundo uma relação meios/fins com causalidade necessária, para o plano prático onde prescreve a luta segundo uma relação prática teórica entre sujeito e objecto (a classe antagónica). Como diz HABERMAS (1976: 90) "forma-se, no primeiro caso, um saber de produção, no segundo um saber de reflexão". O fundamento da necessidade da acção de transformação que é político (e, portanto, prático) converte-se em necessidade teórica por transcendentalização da história (PÉQUIGNOT, 1990: 25).

Reconhece-se nesta concepção de conhecimento a típica tese

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